segunda-feira, 31 de julho de 2023

Dois casamentos e um quase funeral

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, natural de Palmeira e residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 01/08/2023 e no Blog Luciana Pombo em 02/08/2023.

Contar histórias de família é sempre divertido e nos remete às boas lembranças, em que pese, estas eu não vivi, me contaram. Minha mãe, Sirley e sua irmã Carmen, ou Quita, como era mais conhecida, casaram-se no mesmo dia, na mesma cidade, em diferentes igrejas, e, óbvio, com diferentes noivos.

Sirley com Mário e Carmen com Ary. Pelas informações obtidas, foi em julho de 1958. A minha mãe na Igreja do Cristianismo Decidido, que ainda hoje está na rua Riachuelo, quase na Balduíno, porém já não a capela em madeira da época. Minha tia na tradicional Igreja São José.

A primeira celebração foi feita pelo pastor, com a presença dos convidados e dos noivos que celebrariam logo após, inclusive devidamente aparamentados para sua cerimônia. Findas as primeiras bodas, todos os convidados dirigem-se em caravana, juntamente com ambos os casais, ao templo católico e o padre assume os ritos.

Todos os convivas foram recepcionados no Clube Recreativo Dante Alighieri para um delicioso almoço ao som da orquestra do maestro José Maria Perez, que já preenchia o ambiente com sua música antes mesmo da chegada dos noivos.

Os dois sogros de meu lado da família, meus avós, eram músicos. Pai de minha mãe, Max Oberst, músico profissional, pianista, tocava em diversos ambientes ponta-grossenses, inclusive em alguns cabarés. Já o pai de meu pai, Francisco Pavelec, o vô França, era baixo-tuba na Tupynambá Jazz Band, depois na Banda Velhos Camaradas e marceneiro. Dá para imaginar como foi essa comemoração.

Mas as curiosidades não acabam. Segundo consta, o padre, que não vem ao caso precisar quem era, não queria celebrar o casamento da minha tia, pois a mesma não era batizada na igreja Católica. O irmão das noivas, como bom gaúcho, não deixou por menos, ameaçou o padre com um revólver. O que é contado, que durante a cerimônia, meu tio garantiu a “bênção” com uma mão no coração e a outra no cabo da arma. Se o clérigo não se esperta, seria dele o funeral.

Bem, o fato é que ambos os casamentos não “duraram até que a morte os separe”. Em pouco tempo, 7 ou 8 anos, minha tia e o Ary se divorciaram, e, após uns 20 anos de casados, meus pais também.

Cá com meus botões penso: será que não foi por maldição do Padre?

Há beleza no rústico!

Texto de autoria de Alfredo Mourão, aposentado, graduado e especialista em Letras - UEPG, criador de textos e contador de histórias, residente em Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 02/08/2023.

De repente me vejo em meio a muita palha de milho: rústicas, pigmentadas, leves, soltas, habitando todos os becos da Casa do Artesão de Ponta Grossa. Enquanto proseio com as artistas da palha – Maria, Odete, Vanderli e Andreia –, sentindo o cheiro, a textura, a essência, me afundo nas memórias da infância, como se afundasse no macio colchão de palha que pinicava, coçava, tão quentinho nas madrugadas frias do Cará-Cará e Olarias. E lá estou eu de enxada à mão, carpindo o milho miúdo, crescendo teimoso, abrindo-se em verdes braços, bebendo do sol majestoso. Me abraço às canas. Me bailo com as bonecas de milho de cabelos dourados avermelhados. Me afogo em uma espiga de milho assado e um perfumoso café tropeiro. Há grandeza na ancestralidade do milho! Há riqueza na rusticidade do milho, quando se transforma!

Entre prosa e risos, a palha encorpada se estica preguiçosa, se enrola teimosa, se ajeita jeitosa aos rasgos, picotes, puxa-puxa, mesclando-se faceira nos arranjos de folhas e flores desidratadas, galhos secos, cascas e sementes da terra boa: surge arteiro o artefato brejeiro! Simples e sofisticado! Popular e chique! Então me deleito em estar bem ali, ao lado daquelas mulheres criativas e plenas de histórias pra contar. E me encanto a cada palha transformada.

Nos idos 2000, a artesã Adelaide (s.m.) deu as primeiras formas à palha do milho por aqui. A palha deixou-se moldar, acarinhada por dedos habilidosos de mágicas mãos femininas: brincos, adornos, guirlandas, arranjos, personagens religiosos, personagens lendários. A natureza e a cultura paranaense estimularam a pesquisa, que inspirou a criação, que se tornou fruição do patrimônio imaterial da nossa gente. 

Hoje, o artesanato da palha do milho festeja sua salvaguarda artística, brilhante e oportuna iniciativa do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, oficializada em agosto de 2022. Esse pertencimento é motivo de festança, pois é nossa identidade cultural.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Um ou dois Natais

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica, escritor e jornalista aposentado, natural de Ponta Grossa e residente em Curitiba.

Postado no Portal CulturAção em 25/07/2023.

O Natal, apesar do apelo comercial, ainda é e sempre será uma época especial que instiga, emocionalmente falando. Se o dia da Paixão de Cristo provoca piedade e tristeza, o do seu nascimento desperta alegria e esperança em dias melhores.

Muito lá atrás, além de tudo o mais, a evocação principal se fazia pelo pinheirinho enfeitado. E era o verdadeiro, natural, cortado do mato ou, então, comprado de algum carroceiro que passava oferecendo na rua. Hoje em dia essa prática é desaconselhada ou proibida por conta da obrigatoriedade da preservação da araucária quase em extinção.

Mas naquele tempo... Bolas brilhantes e coloridas: verdes, vermelhas, amarelas, azuis. Umas poucas bem grandes e as pequenas em maior número. Miniaturas de Papai Noel e velinhas, também coloridas, eram distribuídas nos galhos verdes. Estas eram acesas por poucos minutos à meia-noite quando a família reunida cantava “Noite-Feliz”, com direito a ser repetida uma vez. Depois, só no ano seguinte.

Os presentes eram desembrulhados na hora, embora quase sempre já se soubesse o que os pacotes continham, em geral, roupas e calçados comprados com todos juntos, pais e filhos para experimentar o tamanho e escolher as cores. O melhor lugar era as lojas “dos turcos” na Rua da Estação, cognome da Coronel Cláudio.

Depois, anos mais tarde, quando a autonomia já permitia andar sozinho à noite na rua, o encanto estava na Loja Telma, descendo a Balduíno Taques, no lado direito, a meio caminho entre o Cemitério Municipal e a Praça Barão de Guaraúna.

O diferencial da decoração para as outras grandes lojas como a João Vargas ou a Tango é que na Telma o que se via por detrás da vitrine era um presépio em movimento, atração irresistível para os olhos de crianças e adultos.

Tudo perfeito e lindo. Tudo estava lá: José e Maria, os Reis Magos, o anjo e sua trombeta, as ovelhas e o burrico, as estrelas cadentes e no centro de tudo a manjedoura de palhinha com o Menino Jesus.

Mas o fascínio estava mesmo no fato de que, por um efeito de mágica ou milagre, muitas peças, de algum modo se moviam por força hidráulica do monjolo que fazia um pequeno fluxo de água percorrer todo o cenário.

Eu não me cansava de olhar para aquele vaivém suave e hipnotizante. Mesmo parado ali na calçada, indiferente às pessoas e ao mundo, podia sentir o clima de amor e paz que irradiava daquela representação.

E eu tinha a certeza de que Ele seria o meu caminho, a minha verdade e a minha vida e a noite de Natal sempre deveria ser feliz.

Sobre sogras e pastéis

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 26/07/2023.

Quem me contou essa comovente crônica familiar autorizou a sua publicação e até pediu que fossem dados os nomes, mas nesse ponto não pude atendê-la devido à delicadeza do tema “sogra”, como se verá.

Sucedia que ela, a sogra, era das mais arrojadas cozinheiras de seu tempo nos Campos Gerais e a todos que cruzassem seu caminho não perdoava, antes lhes infligia doces e salgados em quantidade que incrementava com força o pecado da gula e fazia tremerem os fundos dos infernos.

Até aí, tudo bem, não fosse que nossa personagem, prestes a casar com o filho único da santa senhora em questão, já não tolerava mais sentar à sua mesa e passar pelo périplo de tamanha diversidade de pratos. E, para maior açoite de sua consciência, quanto mais enjoava, mais o destino prodigalizava oportunidades para naquela casa se servir, já que a sogra morava pertinho de seu trabalho e fazia questão de que lá almoçasse todos os dias.

O educado leitor e a educada leitora – principalmente se tiverem filhos marmanjos – devem estar achando absurdo que a indivídua (inventei essa palavra porque soa pejorativa) comendo em abundância, com qualidade e gratuitamente, ainda fizesse desfeita. Sei disso e concordo, ela também sabia e sofria muito, é a vida.

Mas havia esperança. Como sabem os habitantes de Ponta Grossa e adjacências, por aqui multiplicam-se festividades religiosas para as quais contribuem, com sua experiência e talento, exércitos de senhoras e senhores geniais em tudo que se asse, frite e cozinhe para comer. Veio a festa da Igreja do Sa... melhor não dizer o santo, e a nossa heroína, que já passara da calça 42 para 38 e de olho no simples, porém elevado nível gastronômico dos pastéis lá servidos, viu a chance de comer uma coisinha diferente, mesmo porque era boa de garfo, essa questão de refeição de sogra é que a traumatizava um pouco.

No almejado dia, encarando o pastel de cenho franzido como quem contempla no longe uma glória duramente buscada, ela mastigou a massa e, para seu desalento, descobriu que sogras (é duro dizer, pois particularmente sempre gostei das minhas, mas é verdade) nos encontram por caminhos sorrateiros e imprevisíveis. É que essa em específico, além de ótima cozinheira e boa parenta, era também devotada fiel da paróquia, a cuja cozinha se dedicava com amor e fúria em eventos tais, tanto que seu pastel foi a iguaria mais vendida naquele ano e levantou recursos surpreendentes para a Santa Madre.

Como eu disse, é a vida. O casamento, pelo menos, deu certo.

Semana Santa

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 25/07/2023.

Com os acordes menores e murmurantes da celebração litúrgica da tarde de Sexta-feira Santa ainda ecoando nos ouvidos, com os olhos ainda brilhando por lágrimas de uma contrição despertada pelas imagens da Paixão de Cristo, expressas pelo celebrante, pela liturgia da palavra e pelo ministério dos cantos, é que escrevo estas palavras.

Pela manhã, a Adoração Eucarística na Igreja Santa Terezinha, na Vila Estrela, envolta em preces, leituras bíblicas exaltando o grande amor de Deus, que tomou forma e pendores humanos em Jesus Cristo, representou um bálsamo de fé e esperança. Vou repetir, a meu modo, uma parte das meditações: o amor tem sido caracterizado erroneamente como abstrato. Não faz sentido, já que a melhor forma de expressar o amor é por meio de atos concretos de empatia, caridade, e a maior prova disso são a Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.

Pela tarde, na Igreja São Cristóvão, em Oficinas, contemplando os suplícios da cruz, que o Amor encarnado teve que sofrer, constatar a natureza cruel da Humanidade desde os tempos mais remotos, que ainda hoje aflora violentamente, me fez chorar. Num sermão anterior, o Padre havia esclarecido os fiéis sobre as motivações de Judas para trair e entregar Jesus aos que temiam perder terreno político para um pregador plebeu. Consegui entender que a sordidez dessa traição era tudo que poderia ser esperado de qualquer humano: manipulação de forças independentes e puras para realização dos próprios propósitos. Ele era um revolucionário à espera de um líder que fosse de tal forma poderoso que pudesse aniquilar os opressores do povo judeu. Sabia que Jesus tinha esse poder, havia visto os milagres, as curas, os pães multiplicados, as multidões o seguindo. Entretanto, achou que esse líder precisava de um empurrãozinho para transformar todo esse poder em fúria suficiente para incendiar a revolução, e numa demonstração de grandeza reconquistasse a libertação para o povo judeu, que sofria sob o jugo romano, com a cumplicidade de seus próprios líderes. Entretanto, na Sexta-feira, o Mestre estava morto. Morreu humilhado e sem expressar fúria alguma.

Para Judas não houve o regozijo da gloriosa vitória do Mestre sobre a própria morte, legando a mesma vitória àqueles que comeram sua carne e beberam seu sangue, na Última Ceia. Não pôde ver que Jesus teve uma Sexta-feira de horror para que os seus pudessem herdar o Domingo da Ressurreição. Judas só teve o Sábado Santo, e a malhação de seus restos mortais.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Uma ideia toda azul

Texto de autoria de Dalton Paulo Kossoski, auxiliar de bibliotecário e contador de histórias na Biblioteca Municipal de Ponta Grossa.

Postado no Portal CulturAção em 18/07/2023.

Foi o que o Alfredo, na sua despedida como gestor da Biblioteca Municipal, disse tomando como fala o título do livro da Marina Colasanti, que se vê também como título desta crônica. Que a turma deveria continuar tendo essa “ideia toda azul” a fim de encher aquele espaço de manifestações culturais e alegria. E é exatamente isso que fazemos!

Através da vidraça azul da biblioteca eu posso ver, em frente, o seu “irmão gêmeo”, o Conservatório Maestro Paulino: um prédio de mesma altura, mesma arquitetura, mesmos vidros azuis. É orgulho o que eu sinto de trabalhar na Biblioteca, não só profissional, o sentimento é pessoal também. Há quase 30 anos – no lugar onde abriga agora a praça chamada pomposa e orgulhosamente Complexo Cultural Jovanni Pedro Masini – ficava a indústria Wagner. Meu pai trabalhava na produção de compensados de madeira e outros itens para outras áreas da construção. A fábrica foi demolida, só restando em pé a alta chaminé, “tombada” (acho um sarro essa expressão...) como patrimônio histórico.        

Tal pai tal filho! Agora estou onde meu velho trabalhava. A chaminé é um sinal a recordar dos tempos áureos da cidade, com o progresso sendo levado por meio da indústria Wagner e de muitas outras fábricas do passado e do presente.       

Vício

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, natural de Palmeira, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 18/07/2023.

Tudo começou com um convite da minha professora: “experimenta, é gostoso, não dá nada...”. Meus pais apoiaram e então comecei. Como todo “vício”, a gente começa devagar. Hoje uma vez, amanhã mais um pouquinho, fica uns dias sem, bem de boa, mas chega um momento em que a situação fica crítica e nossa vida nunca mais é a mesma.

No começo foi “Pato Donald, Mickey Mouse, Tio Patinhas, Chico Bento, Turma da Mônica...” coisas leves, mas viciantes. Juntamente, começaram a aparecer alguns livros infantis, muita figura, pouca letra, mas, com o tempo, a letra começa a ficar mais pesada.

Os gibis começam a mudar, Tex, Marvels, aparecem algumas revistas “Duas Rodas, Quatro Rodas, Superinteressante, Veja (nem sempre)”. Alguns livros, meio que por obrigação da escola, como a coleção Primeiros Passos, coleções de mistérios, aventuras.

Antes, lia apenas alguns artigos das revistas, depois comecei a ler o periódico inteiro, no mês. Passei para duas semanas, uma semana, dois dias. Começa a “síndrome de abstinência”. Passo a ler absolutamente qualquer coisa. Rótulo de Shampoo, bula de remédio, receita de comida, enfim, torna-se praticamente incontrolável.

Tenho contato com os Irmãos Grimm. A situação começa a piorar. Monteiro Lobato, Machado de Assis, Camões, Saint-Exupéry, Clássicos da Literatura mundial infantojuvenil. Minha primeira experiência de um romance adulto foi “Tuareg” de Alberto Vásquez-Figueroa. Foi minha perdição. Não consegui parar mais. Foi aí que comprei uma coleção de livros de Honoré de Balzac.

A literatura fica mais pesada. Então experimentei poesia: Drummond, Cora Coralina, Mario Quintana, Manuel Bandeira, J. G. de Araújo Jorge, e por aí vai. Achei que tinha chegado ao fundo do poço. O trabalho me afasta um pouco do vício.

Mas como todo vício, quando se retoma, volta-se ao nível anterior, e as coisas só ficam mais pesadas. Dostoievski, Marx, Nietzsche, Rui Barbosa, Orwell, Cervantes, Malba Tahan, Economia, Romances, Biografias, História, Humor, perdi a conta dos gêneros e livros que li. A compra de livros, o ciúme dos empréstimos, a necessidade do cheiro de livro novo, o garimpo nos sebos, a compra pela internet.

Quando você pensa que não dá para ficar pior, acontece, tornei o que mais temia: ESCRITOR. Crônicas, contos, textos, às vezes poesia, um blog, a coautoria de um livro. As Crônicas dos Campos Gerais.

O que virá agora? Um Romance? Faculdade de Letras ou Jornalismo? Livros de Humor? Não sei onde vai parar isso tudo.

Mundo das Meninas

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 19/07/2023.

Escrevo hoje, dia 10 de julho de 2023, sobre a semana que passou. Nessa semana, eu tive certeza: o mundo pertence às meninas.

Naquela semana, eu assisti a um magistral concerto, no Teatro Ópera, do Coral das Meninas Cantoras, do Conservatório Maestro Paulino, regido por Eudes Jr. Stockler. O mundo pertence às meninas porque aquelas vozes angelicais, afinadíssimas, e somente elas, conseguiriam alçar ao topo do empoderamento o repertório regional de Silvestre Alves, e engrandecer as raízes princesinas, sua fauna e flora, seu folclore, sua importância sócio-econômica no Estado do Paraná e no Brasil. Elas, somente, fizeram permanecer suspensos os aplausos do farfalhar das folhas ao vento, “sustenidos” nos compassos de um trote de mula, do cantar dos pássaros, nas claves de portais das lendas.

Naquela semana, que considerei fechada com um domingo primoroso, também no palco do Teatro Ópera (embora o domingo seja o dia que inicia semana, ele é o principal dia do “final de semana”), eu assisti à Mostra de Dança Pró-Arte, na qual brilharam... quem? As meninas! Meninas de todas as idades, desde as professoras, estagiárias, bailarinas do nível avançado, intermediário, preparatório e as iniciantes. E também as quase bebês ainda. Sim, ELES também puderam participar: um bailarino promissor, alguns parceiros da dança de salão, técnicos de som e iluminação. Sem fazer contas exatas (que não são minha especialidade), posso dizer que noventa e oito por cento do espetáculo se deve a elas: as meninas. Sem falar nos camarins, plenamente farto DELAS, como auxiliares responsáveis, eficientes e empáticas. Mas vamos falar da arte: a graça, a força, a destreza, a técnica do balé, do jazz, da dança de salão, invadiram o palco, numa alegria contagiante, que inundou a plateia. Das pontas, eixos, linhas do balé clássico aos movimentos alongados e ondulados do jazz; da técnica perseguida exaustivamente nos treinos intensos das bailarinas mais experientes à espontaneidade infantil do aprendizado lúdico e gracioso das pequenas bailarinas iniciantes: um resultado elegante e ao mesmo tempo festivo da felicidade de apresentar seus talentos aos amigos e familiares.

As meninas não estão apenas nas artes, mostrando sua força na composição de um mundo mais afável para ser legado ao futuro. Elas, ponta-grossenses da mais nova geração, estão inseridas em movimentos sociais, políticos, brilham na ciência, no esporte, e também encaram atividades menos brilhantes, porque o mundo melhor pertence às meninas.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Proparoxítonas

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal TánoTipo em 02/08/2023, e publicado no Diário dos Campos em 12/07/2023.

No finalzinho da tarde, quando começam a silenciar os ruídos da rua, o tilintar de louças e talheres na cozinha, a tranquilidade se apresenta e é nesse momento que gosto de relaxar corpo e mente.  Aconchego-me a uma rede, fecho os olhos e entrego-me à paz reinante. Inicia-se, então, o meu relaxamento, o qual, já me disseram, é um tanto esquisito. Descanso buscando na memória, aleatoriamente, somente palavras proparoxítonas, todas as que lembro. Criei esse hábito desde a infância. Morávamos numa casa de madeira rodeada de flores e verduras no lado ímpar da Rua Júlia Lopes, na tranquila Órfãs, em Ponta Grossa. Meu quarto era contíguo ao dos meus pais. Após o jantar, quando todos já estavam recolhidos, escuridão total, minha mãe e eu rompíamos o silêncio da noite. Apesar da parede que nos separava, o som de nossas vozes alcançava uma e outra e começava o jogo de palavras proparoxítonas ditas alternadamente. Nenhuma queria desistir e encontrávamos palavras do arco-da-velha para não perder aquele jogo: médico, pêssego, cólica, lágrima, dívida, hálito, matemática, abóbora, vírgula, palavras do nosso cotidiano, até que uma das duas era vencida pelo sono, a brincadeira se encerrava e ouvia-se somente o ressonar do meu pai. Leitora contumaz, minha mãe lia o que quer que fosse e, como diz o provérbio latino, “as palavras movem e o exemplo arrasta”. Através das leituras nosso vocabulário foi crescendo e já desfilavam na brincadeira vocábulos mais sofisticados, pouco usuais como sôfrego, elíptico, lânguida, píncaro, cósmico, arquétipo, artrópode, insólito, trôpego, sândalo, mármore, flâmula, plácida, uníssono, calêndula, efêmero, diagnóstico...

A mentora desta e de outras incríveis brincadeiras se foi. A casa onde vivíamos, agora vazia, foi invadida por estranhos que furtaram a fiação elétrica, tomadas e interruptores, danificando paredes e teto. Não satisfeitos, voltaram uma segunda vez e arrancaram todos os metais. Não sobrou nada intacto, tudo foi destruído por esses seres estúpidos. Ao ver aquela cena dantesca minha indignação e repulsa explodiram em proparoxítonas: vândalos, crápulas, bárbaros, toxicômanos... A casa ficou oca, quase demolida. O número 633, em bronze, também interessou aos patifes. Com as experiências vividas muitas palavras se juntaram às já dominadas e a rede não tem ciência que embala centenas de proparoxítonas que habitam em mim enquanto relaxo no finalzinho da tarde. Não é mais um jogo, é um prazeroso e relaxante vício. Quiçá esquisito.

Giovanni Rossi

Texto de autoria de Sílvia Maria Derbli Schafranski, advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 11/07/2023.

Palmeira é uma cidade do interior, pacata e acolhedora, que esconde muitas histórias curiosas e engraçadas.

Amanda era uma juíza do trabalho recém-chegada, cujos dias começavam muito cedo e o trabalho se estendia até muito tarde.

Em uma segunda-feira, ela olhou para o relógio e suspirou. Era seu aniversário de casamento e seu marido havia ignorado o fato. Não era a primeira vez, mas desta feita ela ficou realmente furiosa.

O relógio bateu oito horas e o meirinho começou a apregoar as partes:

- Giovanni Rossi! Giovanni Rossi! gritava pelos corredores do fórum. Na vigésima chamada ouviu-se um grito histérico oriundo da sala de audiência:

- Pode parar de chamar porque esse aí já morreu!

Amanda se descontrolou, indagando o advogado sobre o que estaria pensando ao colocar o nome de um falecido como reclamante.

Desconcertado, ele disse que o estagiário que redigiu a peça processual inaugural provavelmente colocou o endereço da parte em substituição ao seu nome.

Enraivecida, Amanda arremessou uma CLT em direção à cabeça do advogado, perguntando se ele pretendia transformar o fórum trabalhista numa anarquia.

- Não, Excelência. Aliás, a senhora é quem está faltando com o dever de urbanidade. E a propósito, mencionou, o falecido Giovanni Rossi coincidentemente foi quem transformou Palmeira em palco da única experiência anarquista na América Latina.

E continuou: tivesse implementado o anarquismo a senhora já teria perdido a função. Explicou ele que este pregava a abolição do Estado e a organização da sociedade de forma igualitária e autogerida pelos trabalhadores. Palmeira era terreno fértil, com seus imigrantes italianos e comunidades de trabalhadores que se sentiam explorados pelo sistema político vigente.

A juíza lamentou o ocorrido, desculpou-se e desmaiou. Foi levada às pressas ao hospital.

Era apenas ansiedade. E, ao acordar, ainda no hospital, foi surpreendida pelo marido que a presenteou com flores e com um livro.

A história do surto se espalhou. Sobrecarga de trabalho, insanidade mental ou o próprio marido podiam ser a causa.

Assim, Amanda percebeu a sua rotina sufocante. E os compromissos com os filhos geravam uma jornada dupla de trabalho.

Tudo foi minuciosamente colocado por ela a seu marido, que percebeu que precisava se dedicar mais à esposa, passando a fazer elogios sinceros e demonstrando mais carinho e atenção.

Contudo, cada vez que se aproxima o seu aniversário de casamento, os advogados trabalhistas ainda têm muito receio de adentrar o fórum.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

O dramaturgo inglês e as lágrimas da princesa

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica, escritor e jornalista aposentado, natural de Ponta Grossa e residente em Curitiba.

Postado no Portal aRede em 04/07/2023.

Últimos minutos de 2019. E mais gente chegava ao Parque Ambiental. Milhares já ocupavam as calçadas e o gramado, garrafas de espumante na mão.

A passarela abarrotada. Namorados, famílias inteiras. Uma mãe com o bebê no colo, um pai com o garotinho nos ombros. Atrás, o Palladium e à frente a Estação Saudade e o futuro a partir de uma página virada, de esperanças que teimam em não morrer, novos e velhos sonhos.

Pouco antes da meia-noite, à direita, esvaziado, o parque de diversões desligou todos os brinquedos e, à esquerda, o entra-e-sai dos ônibus no terminal cessou de vez para que motoristas e cobradores também pudessem comemorar o ano-novo.

Expectativa crescente para a queima de fogos que, chegado o segundo exato, romperam os céus de Ponta Grossa, fascinantes, coloridos, ruidosos. Quando acabou e as pessoas alegremente começaram a voltar para suas casas, continuariam celebrando. Almoço especial, brindes, abraços, o otimismo de todo início de ano. Mal sabiam o que estava por vir. O destino a pregar peças. Nenhuma vidente previu a catástrofe que se abateria sobre todos.

Uma dúvida biológica shakespeariana. Um ser-não-ser vivo, genoma empacotado em uma proteína que não sobrevive sem vítimas. Vírus sinistro que deixaram ou fizeram escapar de um laboratório chinês. Que pôs de joelhos os orgulhosos, que não escolheu alvos.

E Ponta Grossa teve que assumir o seu quinhão de tragédia. As ruas vazias, tristes e silenciosas. As pessoas condenadas à prisão domiciliar. Pais mais ricos, próximos dos filhos, célula familiar fortalecida, mas apartada do corpo social. Avós sem netos, idosos reclusos, engolidos pela solidão.

Portas cerradas. Sinal de vida só nos supermercados, farmácias e postos de gasolina. Comida para os vivos, remédio para os ameaçados, ambulâncias para socorrer os contaminados e carros pretos para levar os mortos, sem tempo para a despedida.

Liberdade subtraída, especialistas em nada baixando decretos, ameaçando, proibindo. Máscaras, lockdowns, experimentos vacinais. Um olhar divino. Perguntas sem respostas. O caos e a vida suspensa. Pesadelo. E volta o dramaturgo inglês lembrando que Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia. Ou ciência.

A agonia dos hospitalizados, superlotação, gente nos corredores, heróis de branco exauridos, falta de vagas, famílias torturadas.

A espécie humana sobreviveu, mas milhares de soldados caíram no campo de batalha. E as lágrimas derramadas pela Princesa dos Campos, jamais serão esquecidas.

O cachorro do saneamento

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa. 

Postado no Portal CulturAção em 01/08/2023, e publicado no Diário dos Campos em 05/07/2023.

É fato comprovado pela experiência de conhecidos que atuaram no ramo: embora seja próprio de cachorros de qualquer naturalidade atacar trabalhadores que passam a pé ou de bicicleta, os cães princesinos são especialmente ferozes e não perdoam os operários semoventes (no bom sentido).

Os casos contados nessa quadra são numerosos e as vítimas descrevem um caleidoscópio narrativo que varia entre a ira completa e as mal confessadas saudades. Segundo um amigo, daqueles tempos só lhe faz falta o excelente condicionamento físico que adquiriu fugindo das matilhas que campeavam os distritos de Ponta Grossa. Privado desse estímulo, resta-lhe agora o esboço do esboço de uma vida de atleta, praticando triatlo e correndo as maratonas que a Unimed promove na cidade.

Outro indivíduo que consultei a respeito lastima muito o canino desapreço, mas pondera que tragédia alguma surpreende o trabalhador bem precavido e conhecedor das mazelas que assolam seu ofício. Por isso, quando visitava o Centro, onde morava um animal que nutria por ele especial e injustificada predileção, punha a mesma e castigada calça, pois soubera que o bicho andara padecendo forte congestão após digerir alguns fiapos da peça numa investida anterior.

Agora (referência gratuita!), tal como bem demonstrou Machado de Assis em seu A Igreja do Diabo, no meio das desgraças mais fundas e quando a devassidão se torna generalizada, resplandece o Bem que não imagináramos brotando lá.

Contou-me um servidor da Sanepar. Nesta cidade tomada por animais contrários à CLT, apareceu pelos lados do Cristo Rei o Niki, labrador de forte têmpera republicana e cuja veia nacional-desenvolvimentista não tolerava ofensa aos funcionários da Companhia de Águas.

Mal via passar um leiturista para fazer as medições nos hidrômetros, o Niki saltava e ia escoltá-lo rua abaixo, rosnando contra as ameaças e exigindo urbanidade de seus pares. Nos primeiros dias, os cães da vizinhança não fizeram caso, mas as bordoadas pedagógicas do Niki puseram todos na linha. Dali a pouco não havia lugar melhor para pegar no batente, o espírito cívico de Niki impôs na região a pax Romana; com gente trabalhando o tratamento passou a ser de “bom dia”, “pois não” e “muito obrigado”.

Com a aposentadoria do velho labrador, o ideal seria arranjar uns oitenta dele e distribuí-los por pontos estratégicos da região. Mas onde se acham outros Nikis? Lide com essa, ó, Diretoria.


Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...