segunda-feira, 25 de julho de 2022

Bets à moda antiga

Texto de autoria de Murillo Emanuel de Lara, estudante de Administração da UEPG, Ponta Grossa.

Postado no Portal D'Ponta News, em 31/07/2022, e no Portal CulturAção em 06/12/2022.

Jogo derradeiro.

            — Jimmy, vamos — chamou Lúcio.

            — Calma aí.

            — Estamos atrasados.

            Jimmy seguiu o amigo até a última rua da vila. Uma rua ótima. Sem movimento.

            Chegaram à rua e encontraram seus outros amigos.

            — Por que demoraram tanto? — perguntou Cassandra.

            — Pergunta pro beleza aqui — respondeu Lúcio.

            — Larga do meu pé — retrucou Jimmy — Bora jogar!

            No último jogo, Jimmy, Lúcio, Cassandra e Alessandra foram os últimos a jogarem; portanto, seriam os primeiros a jogar.

            Jimmy e Alessandra foram para trás das duas bases desenhadas na rua, a sete metros uma da outra. Alessandra segurava a bolinha de tênis verde-limão. Eles colocaram os litros com pedrinhas no fundo no meio de cada base.

            Lúcio e Cassandra pegaram os bets e os fizeram girar no ar para testar o peso. E, mesmo sendo duas ripas de madeira lapidadas para formar um taco que se afinava em uma das pontas para melhorar a pegada, estavam equilibrados.

            Cassandra se posicionou na base de Alessandra e Lúcio na base de Jimmy, ambos deixando a ponta dos bets encostada no chão dentro do círculo desenhado. Foi quando Alessandra jogou a bolinha em direção ao litro da base oposta. A bola foi pingando; se você se distraísse, erraria a bolinha por pouco, mas macaco velho não pula em pau podre. Quando a bolinha quicou a um metro de Lúcio, ele pensou “é agora” e girou o taco. O taco acertou metade da bolinha e a fez voar até quase a outra esquina. Alessandra saiu correndo atrás dela, e Lúcio e Cassandra começaram a correr em direção às bases opostas, fazendo seus bets se chocarem quando se encontravam no meio do caminho. A cada batida, mais um ponto.

            Alessandra achou a bolinha, mirou e a atirou em direção à sua base. Lúcio e Cassandra viram a base desprotegida e cada um correu para a sua. A bolinha acertou o litro e o fez balançar, mas Cassandra colocou a ponta dos bets na base antes de o litro cair. Eles ainda estavam no jogo.

            Era a vez de Jimmy arremessar. Jogou bem, mas nem a melhor jogada deteria a rebatida de Cassandra. Ela acertou a bolinha em cheio e a fez sumir de vista. Jimmy correu atrás dela, e Cassandra e Lúcio já estavam correndo para marcarem mais pontos quando ouviram “bolinha perdida”, e todos foram até lá para ajudar o amigo a encontrar a bolinha, inclusive Lúcio e Cassandra.

            Esse foi o jogo derradeiro na vida das crianças. Quem imaginaria que o amanhã lhes reservava responsabilidades e preocupações? Com certeza não eles, pois, se imaginassem, teriam demorado mais para encontrar a última bolinha perdida.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

A explosão do pinhão

Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede em 20/07/2022, e publicada no Diário dos Campos em 07/09/2022.

    Mesmo entre os paranaenses, devo ser a única a ter visto tal cena. Além do mais, mesmo entre os resistentes defensores do cozimento da resiliente semente, provavelmente sou a primeira a manchar um livro dessa forma.

    Engenharia adquirida na popular Feira do Largo da Ordem, na vizinha Curitiba, o descascador de pinhão teve a infortuna chance de explodir a semente encharcada em sal e água. Durante os milésimos de segundos que antecederam o desmembramento da casca até o segundo exato em que o livro foi manchado pelas colorações sanguíneas, apenas as fendas sinápticas foram capazes de reagir, não entregando ao músculo a mensagem efetiva.

    Consequência: Lispector estava manchada de sangue. O constrangimento, por saber não ser possível retirar das páginas as marcas de “sangue”, me visita toda vez que observo as bordas tingidas das páginas. Em minha defesa: não é sangue verdadeiro — embora engane — e nem poderia eu adivinhar, com anos de prática outonal/invernal, que o delicioso alimento seria capaz de tamanha atrocidade. 

    Justo a Lispector que demorei tanto tempo para finalizar! Vandalizada pela cachorra filhote, que aliás adorou o sabor de Macabeia, também foi eternamente marcada pelas entranhas do endosperma.

    Aqui, nesta prateleira comprada em uma loja popular ponta-grossense, reside uma coletânea de tantos outros escritores (não mastigados). Fragmentos de almas que repousam nas páginas, até que sejam reabertas e ressuscitadas. Um desafio à imaginação: sequer suspeitavam eles que seus pensamentos escritos residiriam na ensolarada e fria Ponta Grossa, dos passados trânsitos tropeiros.

    Mencionando os desafios imaginativos, creio que Clarice jamais imaginou, ao imprimir suas histórias, acabassem elas quase digeridas por uma dachshund de seis meses. Tampouco ficaria feliz com os respingos vermelhos em suas páginas.

    Ora, a perdoável insaciedade canina. Ora, o imperdoável descuido.

    Eu? Como boa ponta-grossense, continuo cozinhando o pinhão na pressão. Porém, bem longe do ambiente de leitura. Nesse ambiente criado para sobreviver aos ditames tecnológicos e superar os traumas literários passados, abro um livro.

    Ainda que a Natureza esteja perigosamente cozinhando tempo demais em uma panela de pressão, e mesmo que não seja possível limpar as manchas da ação humana, abro um livro. Abro-o como quem abre as portas do Universo. Dali ressurgem humanos de outras épocas, belezas findas e, sobretudo, a alma humana. Vez ou outra, mastigada ou tingida.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Corações ardentes

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede, em 13/07/2022.

Voltei para casa com dois corações. Um de doce de abóbora e outro de bolacha de melado. Não dei conta de comer tudo que havia: cachorro quente, quentão, pinhão, canjica, bolo de mimosa, nega maluca... e o rei das quermesses, o pastel.

Crianças pulavam numa cama elástica, destacando suas silhuetas na penumbra entre duas fogueiras: a que o pôr do sol estendia no horizonte, retalhado pelo bosque que ladeava o pomar, e a que incendiava grossos troncos de árvores e jogava as faíscas em direção à lua crescente, competindo com o fulgurante pôr do sol. O proprietário do sítio garantiu que esses troncos vieram de árvores mortas, já “ardidas” (apodrecidas), recolhidas no capão. Ele também explicou que a pedra da grande mesa, no salão de recepção interno, era uma pedra vinda de Carrara, Itália, há aproximadamente 120 anos, e que até pouco tempo funcionava como uma bancada de curtir couros, do curtume da família. Para uma menininha junina, ela apenas tornava perigosamente mais interessante a sua brincadeira de correr, pois lhe apresentava o desafio de abaixar-se para passar debaixo dela.

Não era uma festa qualquer, de folguedos juninos. Há dias programada e organizada pela família e “chegados”, o evento transformou em “junino”, estendido a dezenas de convidados, o espaço de acolher as gerações contemporâneas da família para os avós e tios “chamegarem”.

Na tarde de 3 de julho, Silvestre Alves, minha irmã Luci e eu, ponta-grossenses, nos dirigimos a Palmeira, onde fica esse sítio encantador. Não era uma festa qualquer, nem se tornaria extraordinária, se não houvesse um vetor muito especial, capaz de conjurar, além dos encantamentos naturais, também os da solidariedade, da empatia e da amizade. Esse vetor era Maria Edite Lederer, membro da Academia de Letras dos Campos Gerais, guerreira que há anos desafia dificuldades físicas resultantes de uma paralisia na infância, autora dos livros Gotas de Sentimentos, Pedacinhos de Amor e Um pouco de Mim. Maria Edite enfrenta, atualmente, mais uma batalha que a vida não deixa de apresentar aos guerreiros que encaram seus desafios e ousam combater com as precárias armas que lhes são permitidas. Os familiares organizadores da festa, movidos pela solidariedade, engajaram-se nessa batalha de Maria Edite, e a fizeram com sorrisos, cantos, danças e fogueiras de amor nos corações. E, munidos desses encantamentos, continuarão a auxiliar a guerreira até que possa levantar-se e retornar ao combate. 

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Crônica do desaparecido

Texto de autoria de Carlos Mendes Fontes Neto, engenheiro civil, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede, em 06/07/2022, no Portal CulturAção, em 03/02/2023 e publicada no Diário dos Campos em 31/08/2022.

    Andando pela cidade, percebemos que tudo está desaparecendo. Quando a gente passa por uma rua e procura alguma coisa de que se lembra, espanta-se por não conseguir achar qualquer vestígio. Desde a casa paranista com lambrequins até os mercadinhos tocados por rostos familiares.

    Não se acha mais o antigo palacete do bispo, não existem mais as pastilhas de vidro da fachada do Cine Ópera, o Império virou cratera, a fonte luminosa sumiu da praça, de onde também sumiu o busto da Judith. O Bianchi virou estacionamento. Aquela rádio com programas de auditório sumiu da XV. Na esquina da Eng. Schamber, o som dos programas vespertinos parece ecoar, mas só o vento continua soprando inclemente. E assim vai, a cidade se transformando e se modificando. Sumiram as personagens “sui generis” das ruas centrais, tais como aquela velhinha que esmolava na esquina do antigo correio (que também sumiu) e contavam viver à larga com proventos de várias casas de aluguel. Sumiu o barulho de reco-reco que os sorveteiros faziam nas tardes modorrentas do verão princesino. Sumiu o box da Dona Maria no demolido Mercadão, onde se vendiam frutas e verduras trazidas das chácaras de Uvaranas acompanhadas de notícias e fofocas contadas de parentes que não se davam.  Foi-se Dona Olívia que comandava um exército de mulheres que limpavam túmulos no São José.  Foi-se a Galeria de Artes da Profa. Carol, onde se trocava uma crítica de arte entre dois dedos de prosa com a proprietária. As irmãs Paczkowski não ensinam mais arte e profissão. Até as vitrines de doces e chocolates da antiga Glória, com ovos Sönksen na época de Páscoa, sumiu. Assim a cidade vai crescendo e engolindo a própria identidade, temperada com casas modernistas. Foram-se há muito a Branca de Neve com os anões da Brinquedolândia, a quarta feira de cardápio alemão na lanchonete do Tuma, o lanche no Vagão em frente da Universidade...

    E nem lembrei da chorada Catedral...

    Mas a verdade é flagrante na percepção de que a princesa é cada vez menos princesa e mais, muito mais, parecida com qualquer cidade moderna. Placas sucessivas de vende ou aluga, intercaladas de terrenos baldios transformados em estacionamento ou ocupados por farmácias. Muitas farmácias...

    De longe, a cidade é bela, ornamentada por edifícios cada vez mais altos. Mas olhando bem de perto, entre calçadas nem sempre cuidadas e trânsito cada vez mais caótico, guarda um quê de nostalgia mal resolvida.

   

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...