segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Procurando Deus em Ponta Grossa

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica e jornalista aposentado, residente em Curitiba.

Publicada no Diário dos Campos em 09/02/2022, postada no Portal aRede em 23/02/2022 e no Portal CulturAção em 25/05/2022.

Sempre gostou de igrejas. Silêncio, meditação, reconforto. Vocação de outras eras? Monge grego ou inquisidor espanhol?

Foi batizado e crismado na sólida e jesuítica igreja de São José. Na de Santa Terezinha, na Vila Estrela, recebeu a Primeira Comunhão. Entrou em quase todas da cidade: na do Rosário, na antiga Catedral, na “dos Polacos” e até na de São Sebastião, na Nova Rússia. Mas foi a modesta construção da São Judas Tadeu, em Olarias, a que mais marcou.

Sinos tocando na hora do Ângelus convidando à prece de Ave-Maria e às sublimes notas de Gounod. Muitas vezes o clima melancólico de final de tarde fez verter lágrimas nos olhos do menino-homem. Pobreza material, carência afetiva, os pais separados. E também da única irmãzinha.

Nunca faltou a fé. Inquieto, engoliu hóstia, marafa, docinho de Cosme e Damião e água fluidificada. Só não engoliu respostas prontas, quis iluminar as dúvidas. De joelhos, pediu ao padre perdão por pecados inexistentes. Aos caboclos e pretos-velhos, conselhos e proteção para encarar o futuro de sonhos e desafios. Deglutiu um pesado volume Rosacruz e obras esotéricas da gaveta do pai. Certa vez um culto protestante.

Sobrou o respeito e admiração pela beleza dos templos, de Aparecida a São Pedro e Notre Dame: a arte da arquitetura, os afrescos, os vitrais.

Ideias e experiências enriquecem o espírito, mas quando o ser encontra a si mesmo, não é necessário procurar mais. Basta abrir a porta do coração e deixar Deus entrar. Liberta-se dos formalismos, dispensa-se o supérfluo, fica a essência. O menino-homem cresceu, amadureceu e diferenciou religião, religiosidade e religiosismo.

Em que o homem-menino acredita hoje? Em um conjunto de princípios racionais que explicam a vida e suas aparentes incongruências. Descer da soberba. Descobrir que Deus está no canto e plumagem multicolorida dos pássaros, na graciosidade do voo da borboleta, na beleza e perfume das flores, na formiga preta e no urso-polar, no brilho das estrelas e na folha da grama, no nascer e pôr do sol, no tamborilar no telhado da chuva calma e na força da tempestade, no murmúrio do riacho e na impetuosidade da cachoeira, na suave correnteza do rio e nas ondas azuis do mar. E nos Campos Gerais prateados pelo luar.

Deus está no que vemos e no que não vemos. Mais que nas palavras e atos humanos, está no sentimento de bondade. Deus não só está, mas é. É o amor que move o universo. E o homem-menino descobriu que Deus está no olhar do desconhecido e, afinal, também, dentro de si mesmo.

 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Campinho de saibro

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, residente em Ponta Grossa.

 

 Lida na Rádio Clube em 04/02/2022, postada no Blog da Mareli Martins em 04/02/2022 e no Portal aRede em 16/02/2022, publicada no Diário dos Campos em 15/06/2022.


Onde hoje é o Ginásio de Esportes Oscar Pereira, antigamente, mas não muito, era um campinho de saibro. Sim, um pequeno campo de futebol, de areia compacta e dura, quase como pedra.

Muitos jogos aconteceram ali. Que eu saiba, nenhum profissional saiu destes embates, mas éramos todos craques. Jogávamos quase todos os dias em que o clima nos permitisse, nós contra nós mesmos, ou contra garotos de outros bairros.

As traves, feitas de tijolos, furtivamente adquiridos de construções ou demolições próximas, raramente eram guardadas por goleiros. Eram afastadas de cerca de um passo do maior de nós. Todos jogavam na linha, todos atacavam, todos defendiam.

Chuteiras? Nem pensar. Quando muito, usávamos o famoso Kichute, que, além de encardir meias e pés, proporcionava um odor bem característico que nossas mães sempre lutavam para remover nos banhos pós jogos.

Onde hoje termina a rua João Alfredo, era um “calipial”. Eucaliptos enormes, que proporcionavam sombra para o descanso dos intervalos das partidas, que geralmente virava em 5 e terminava em 10 (gols). Quase sempre, os jogos acabavam em 10 a 9, 10 a 8, raramente com placares muito elásticos.

Mas, não era apenas um campinho. Era um outro planeta, quando nós, travestidos dos personagens de Jornada nas Estrelas, nos aventurávamos com nossos “faser’s” de madeira pelo universo. Era um país longínquo que deveríamos tomar de assalto com nosso exército, munidos de espingardas de cabo de vassoura. Era ainda um palco de brincadeiras infinitas, com a turma toda, ou com apenas dois ou três de nós, como esconde-esconde, pega-pega, polícia-ladrão, ou ainda com nossos carrinhos de plástico, onde cidades inteiras, com estradas, túneis e pontes, foram construídas para nosso deleite.

Raramente íamos até lá à noite, pois nos foi dito que ali fora um antigo cemitério, onde algumas almas penadas pairavam sob o campinho, e pegariam qualquer criança que ali ousasse entrar sob as estrelas. Hoje vejo que havia um conluio entre nossos pais, para nossa própria segurança.

Aqueles moleques, agora dentistas, advogados, trabalhadores, escritores, pais, avôs, não depuseram o Capitão Kirk, sargentos, capitães, soldados e motoristas, além dos craques que ali viviam. Apenas o nosso espaço foi transformado. Para melhor? Certamente, para Ponta Grossa; mas para nós, não.

 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Audiência de instrução

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 22/01/2022, postada no Portal aRede em 09/02/2022 e no Portal CulturAção em 07/06/2022.

Escutei o relato abaixo de diversas pessoas nesses anos em que resido nos Campos Gerais. Se é crônica, farsa, lenda ou parábola, desconheço, mas vez em quando alguém me conta.

Era audiência de instrução numa ação de aposentadoria rural. Audiência corriqueira, quase todos os dias saem várias. Juiz e advogados a postos, a parte com aquele semblante que as pessoas ostentam quando vão a fóruns e hospitais.

Dali a pouco, o juiz pergunta se a parte (a saber: um agricultor idoso) tinha documento que provasse o tempo que dizia ter trabalhado no campo. Pergunta reta assim, é bom que se diga, era coisa rara naqueles tempos (não sei quando foi, estou fabulando que seja história velha). A Justiça não estava próxima do cidadão comum, juízes interrogavam as partes sobre animus domini, actor voluntarius agitur e outros latinórios acessíveis somente aos bacharéis, rábulas e outros adeptos da Corte.

Mas a parte, isto é, o idoso, não tinha documento nem testemunha viva. O sujeito nascia em casa mesmo, desde a primeira infância lavrava a terra com os irmãos (os que sobreviviam), gerava filhos para continuar trabalhando a terra (os que sobreviviam), em algum momento morria e era enterrado debaixo da mesma terra; nem certidão de nascimento às vezes tinha.

Sempre foi e talvez continue sendo a crônica desse brasileiro até o dia em que o homem finalmente logre aniquilar a natureza e por ela ser aniquilado, pondo fim a todas as coisas conhecidas e desconhecidas. Sobreviver ao parto, não se desfazer em disenteria nem perecer de meningite, dominar o solo – arar e cultivar, semear, colher –, suportar as sucessões de chuva – pouca ou excessiva – e o mormaço cruel, as pragas e as pestes, evitar a morte até morrer, lidar escassamente com papéis.

O pobre do agricultor pobre era tão analfabeto nesse dia como naquele em que nasceu, mas sem entender de lei escutou a pergunta e já viu tudo: documento? Prova? Isso não se usava naquelas bandas. Adeus aposentadoria rural. Levou as mãos ao rosto por puro desalento.

E aí o juiz deu com aquelas mãos. Nunca tinha visto coisa semelhante, eram grossas, escalavradas de puro calo, queimadas por mil anos de sol. O juiz era nascido e crescido na cidade, mas já havia visto raízes de carvalho; era nisso que as mãos de dedos tortos faziam pensar: em raízes de carvalho.

Prolatou na audiência mesmo a sentença: ao idoso, a aposentadoria. Sequer usou o latim cuique suum ("a cada um o seu"). Poder prolatar sentença em audiência, está no Código.

 

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Ponta Grossa, topo do mundo

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Lida na Rádio Clube em 14/01/2022, postada no Blog da Mareli Martins em 15/01/2022 e no Portal aRede em 02/02/2022, publicada no Correio Carambeiense em 15/12/2022 e no Diário dos Campos em 13/04/2022.

Eram tantas curvas, tantos lamaçais e atoleiros e tantas subidas...  E a infância tão demorada na vida quanto nas estradas de chão do Taboleiro. Meu pai tinha um calhambeque ― um Dodge 1928, raridade, do qual a originalidade tinha sido roubada pelo acréscimo de uma carroceria, tornando-o um utilitário. O trajeto que os veículos mais modernos fazem em meia hora, o calhambeque percorria em mais de uma hora, numa viagem de solavancos. Meu pai adorava dirigir nas curvas da “Estrada da Cerâmica São Sebastião”, embora não apreciasse os “areões”, e a considerasse mais “perigosa”, pois também era mais movimentada. A outra opção não tinha tantas curvas, era margeada por matas nativas que a mantinham lamacenta por mais tempo, após uma chuva forte. Nós crianças viajávamos na carroceria, preservadas de quedas e traquinagens por um toldo amarrado às grades laterais, o que não nos impedia de produzir imprevistos – previstos, quando se trata de crianças – como desamarrar algumas tiras para podermos apreciar a paisagem. Depois de rezarmos o Pai Nosso, Ave-Maria e Santo Anjo, seguíamos viagem cantando os sucessos do rádio: de Estúpido Cupido e Banho de Lua, aos sucessos dos galãs Wanderley Cardoso, Jerry Adriani e outros. E, claro, O Calhambeque, de Roberto Carlos.

 O retorno pela estrada do bueiro não era uma subida tão longa como a da estrada da cerâmica, mas era bastante íngreme justamente no topo, onde se encontrava uma porteira. Com chuva, tanto transpor o bueiro como encarar a subida da porteira era uma temeridade, e a estrada da cerâmica era a opção menos pior, por isso, sempre de olho nos sinais da Natureza, meu pai previa o momento em que, obrigatoriamente, encerraríamos o passeio, a fim de alcançarmos a estrada principal antes de qualquer pingo de chuva cair naqueles caminhos de areões, curvas e na longa subida. Nosso calhambeque chegava ao topo já em primeira marcha, e eu temia que o coitadinho não “aguentasse” tanto esforço. Cessavam as cantigas, pois nossos corpos em suspense exerciam “força solidária”, até sentirmos o alívio do motor, com a troca de marcha, e a retomada da “alta” velocidade de cinquenta por hora.

Mais larga e cascalhada, a estrada principal parecia ser o topo do mundo, os horizontes se alargavam e de longe já se viam o edifício Marieta e o Itapoã, na colina mais habitada de Ponta Grossa. Nos Campos Gerais, todas as subidas alcançam o caminho das tropas e levam a Ponta Grossa, assim como na minha infância. 

 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Faíscas no asfalto

Texto de autoria de Rogério Geraldo Lima, empresário, redator e radialista, Palmeira.

Lida na Rádio Clube em 07/01/2022, postada no Blog da Mareli Martins em 07/01/2022 e no Portal aRede em 26/01/2022, publicada no Diário dos Campos em 12/01/2022..

Nos anos 1970 as ruas da cidade começaram a ser pavimentadas com asfalto. A maioria delas tinha paralelepípedos e algumas só leito natural com uma camada de cascalho. Antes dos paralelepípedos e do asfalto, a rua principal também tinha o leito natural e, em dias de chuva, formava-se lama. Em períodos de seca, a poeira era constante. Nestes casos, o caminhão-pipa da prefeitura molhava a rua para evitar que o pó levantasse e invadisse casas, lojas e outros espaços.

Durante as obras de pavimentação, uma das ruas transformou-se em parque de diversões. Quando a noite começava, máquinas e homens saíam e a rua, fechada para veículos, recebia dezenas de meninos e seus carrinhos de rolimã. Em aproximadamente 600 metros, carrinhos de todos os tipos e tamanhos desciam em uma corrida cheia de emoções. As faíscas do atrito das rodinhas contra o asfalto chegavam a compensar a tímida iluminação, entre gritos de comemoração dos vencedores e as lamentações dos que não conseguiam cruzar a linha de chegada à frente dos demais. Na parte alta da rua, onde era dada a largada, os gritos ecoavam, perguntando: “Quem ganhou?”.

Improvisados “mecânicos” ajustavam seus bólidos, apertando parafusos e porcas, lubrificando partes móveis e rolamentos com óleo para máquina de costura, um item que todos tinham em casa, pois as mães dispunham de uma máquina para confeccionar roupas para a família e fazer reparos nas calças de brim, rasgadas em pontos estratégicos devido ao futebol, brincadeiras e corridas de carrinhos de rolimã.

Ninguém pensava em equipamentos de segurança, como capacetes, e, vez por outra, dos cortes e escoriações jorrava sangue, devidamente estancado com as sujas estopas usadas para absorver o excesso de óleo aplicado nos rolimãs. Importante era não perder a vez da descida, arrojadamente buscando a vitória, mesmo que não representasse prêmio, pódio ou beijo da namorada.

Tempos depois, pavimentação concluída e a rua aberta para a passagem de veículos. Terminou a movimentação de carrinhos de rolimã descendo a faiscar no asfalto e subindo, carregados por seus pilotos, até o ponto de partida para nova largada.

Hoje, nas mágicas horas de início da noite, passo por ali e ouço o ruído ensandecido das rodinhas a ganhar velocidade na descida, vejo o clarão das faíscas ─ mesmo que sejam lágrimas teimosas atingidas pela luz das lâmpadas de LED. Porém, quando chego ao ponto mais baixo da rua, onde as corridas terminavam, olho para trás e consigo escutar: “Quem ganhou?”.

 

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...