segunda-feira, 24 de abril de 2023

A hora do Angelus

Texto de autoria de Ludo Santos, jornalista e bancário aposentado, natural de Ponta Grossa, residente em Curitiba.

Postado no Portal aRede em 25/04/2023, no Portal CulturAção em 30/05/2023, publicado no Diário dos Campos em 27/06/2023 e, no Jornal Página Um em 29/03/2024.

(à minha mãe)

Mudei para um antigo bairro curitibano onde ainda há apito de sorveteiro e de trem. Como o moleque do picolé ganha a vida à luz do dia, seus silvos não me incomodam nem um pouco. Com a passagem do trem é diferente: o apito noturno grave no cruzamento, o atrito nos trilhos, o bufar do motor da locomotiva, às vezes me despertam de sonhos, pesadelos, fugas.

Cada vez que acordo com a buzina disparada pelo maquinista, me assusto e sou levado a noites de minha infância vivida num bairro riscado por uma linha férrea, em Ponta Grossa. Naquelas noites, cheio de medo e de fantasmas, aos prantos procurava os braços de minha mãe que então me acalmava passando a mão nos meus cabelos, num carinho de lã, e cantarolava cantigas italianas que ajudavam a espantar os sons vindos dos dormentes.

Confesso que um repicar de sinos ao entardecer também me desconcerta. Traz à memória um crepúsculo longínquo no bairro de Olarias e a igrejinha de madeira donde soavam rígidas badaladas anunciando a hora do Angelus. Logo depois, de um velho rádio cresciam os primeiros acordes da sublime Ave Maria de Schubert e em seguida, diante de um quadro da Virgem com o bambino, ouvíamos num silêncio secular o locutor desfiar o belo Magnificat de Lucas. Uma melancolia baixava em nossos corações e então agradecíamos o pão de cada dia e orávamos pedindo as benções do Senhor.

Havia dias que saíamos em procissão pelas ruas do bairro rezando, recitando cânticos e acendendo repetidas vezes as velas que o vento insistia em apagar durante o nosso périplo santo.

Todas essas lembranças são como as velas que carregávamos. O vento, o tempo, tentam apagar, mas vem uma mão, uma recordação de menino e acendem a vela, iluminam a memória e tudo fica escuro e nítido como naquelas noites.

Conheço a história de duas pessoas que pediram aos amigos que lhes tocassem Jesus Alegria dos Homens na hora da morte. Não sei se lhes fizeram a vontade. Rubem Braga sonhou com os sons dos carrilhões de um velho relógio de parede que marcou as horas da vida e morte de seus pais.  De minha parte, um lento dobrar de sino anunciando a hora do Angelus, tendo a Ave Maria de Schubert como fundo musical, seria perfeito. E que no derradeiro instante eu sentisse as sagradas mãos de minha mãe me acariciando os cabelos e ouvisse sua voz num último acalanto. E então poderia ecoar qualquer barulho de trem, apito de locomotiva, que pela primeira vez eu não teria medo. E assim, depois de muitos anos, me sentiria grande, tamanho de menino e, finalmente, fecharia os olhos e adormeceria feliz para sempre.


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Breves lembranças itinerantes

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica, escritor e jornalista aposentado, natural de Ponta Grossa e residente em Curitiba.

Postado no Portal aRede em 18/04/2023 e no Portal TánoTipo em 20/06/2023.

       Sabemos que a memória é seletiva e armazena por mais tempo os registros envoltos em maior carga emocional. Uma década e meia basta para compor um mosaico caótico, talvez, porém, entalhado no fundo da alma.

       Tudo começou nas esquinas da Rua Júlia Lopes com a Rio Grande do Norte, pelos cinco anos. De lá ficaram uma bicicleta azul de três rodas, a novidade de um copo de leite com chocolate gelado da casa da vizinha e o único Papai Noel da vida trazendo um “fenemê” em madeira de um metro de comprimento.

       Cesário Alvim, Olarias. Muito a dizer. Ou calar. Exumação de cadáveres. Melhor não tocá-los. Recordações amenas? Luz de lampião devido aos frequentes cortes de energia. Não por relaxo, mas pelo bolso paterno vazio. Quintal grande a espera da enxada para amenizar a carência: mandioca, milho, verduras, um pé de limão e outro de mimosa.

       Dois quilômetros e meio para ir e outros tantos para a volta do colégio. Às vezes, o gelo trincando sob a sola gasta. A Ave-Maria tocada na hora do Ângelus na pequena São Judas Tadeu e o aperto no coração. O fogão a lenha que queimava cavaco que era armazenado no porão onde dormia um enorme gato preto, morador da vizinhança, que numa noite escura voou assustado no peito do moleque apavorado.

Grande nojo pelas lesmas ‘pescadas’ no balde da água de poço. E os vizinhos? Ah, os vizinhos! Como podemos ser difíceis!

Um oásis na Barão de Capanema, casa da tia. Um rádio Semp na prateleira da salinha e uma menina na mesma rua com muitos olhares e nenhuma conversa.

Daqui para lá e de lá para cá. Até uma fazenda em Teixeira Soares. Diziam “Maiado”, decerto corruptela da cor de um boi. Som distante de fogos na virada de ano. Solidão. Frustração. Semana seguinte a fuga. Enchente no Rio Guaraúna cobrindo a ponte. Solução: quilômetros pelo pasto até o trem.

De volta ao São José, Rua Bahia. Outra tia, casa alugada. Preparando para bater asas para longe. Turbulências. Esperanças. Aos 16, serviço braçal.

Depois disso, só nas férias. Na Dal Col, muito barro nos sapatos até chegar ao ponto de ônibus. A sétima parada, próxima ao Hospital Vicentino. Na oitava, o Parque Nossa Senhora das Graças e muita coisa ali. A crise da primeira paixão, as corridas até o Canal 7. Nas tardes de verão o temporal armando pelos lados do Rio Pitangui. E teve uma décima na Rodovia do Café, sustento da casa tirado de um posto de gasolina.

Muito agito em tão pouco tempo. Meio século depois, visitas e até turismo. Da última vez, o Lago de Olarias e um futebol no Germano Krüger.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Cine Inajá

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 11/04/2023, e publicado no Diário dos Campos em 07/06/2023.

          De todas as vezes que fui ao cinema em minha vida, a que mais me marcou foi para assistir ao filme Contatos imediatos de terceiro grau.

          Eu tinha cerca de 10 anos na época, e não sei se foi pela emoção de, pela primeira vez, assistir a um filme adulto, ou por estar na companhia de meu pai, ou pelos dois motivos, mas as recordações ainda me são vívidas.

          Começa pelo local, o famoso e inigualável Cine Inajá. No centro de Ponta Grossa, era um local quase mítico, pois cinema não era uma diversão corriqueira. Suas poltronas confortáveis, vermelhas, em courvin, aquela iluminação com a intensidade característica das salas de projeção, o palco e aquele enorme e mágico telão branco, onde os sonhos e as realidades eram mostrados. Pipoca.

          Os momentos que antecediam o início da projeção eram marcados por um característico som e as luzes apagando lentamente. Canal 100. Notícias do Governo, as imagens dos atletas de futebol, em branco e preto ainda, alguns trailers de próximos filmes, então o momento esperado.

          Todas aquelas cenas, os atores, brilhando aos olhos do pequeno Mário, ainda a sensação de proteção que seu pai lhe proporcionava nos momentos mais tensos da exibição, ficaram impressos em minhas memórias. O som da música e das cenas, a alternância de cores, dias e noites passando rápida e intensamente em minha frente, criando a sensação de fazer parte da história.

          Creio que não somente eu, mas todos que assistiram ao filme, principalmente no cinema, não conseguem esquecer aquela música tocada pela nave extraterrestre (ré, mi, dó, dó, sol...), e repetida pelos cientistas, sobre a icônica montanha, vinda de todos os lados dentro do Inajá. Emocionante, mágico, verdadeiramente um contato muito intenso, muito vivo.

          Devo ter apertado inúmeras vezes as mãos de meu pai naquela noite. Sobem os créditos, a luz vagarosamente retoma sua intensidade inicial, e as pessoas lentamente levantam-se e começam a sair. Também nos levantamos e saímos. Vagarosamente nos dirigimos à saída, alguns cartazes de filmes anunciam as próximas atrações, mas suspeito que nenhum destes possa equiparar ao então assistido.

        Descemos alguns metros pela XV de Novembro, subimos no Opala amarelo e voltamos para casa. Amanhã tem aula e meu pai volta para Palmeira, para trabalhar. Mas os ETs nunca mais me abandonaram. Nem as emoções que me proporcionaram. Nem o cheiro do CINE INAJÁ. 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Minha primeira bicicleta

Texto de autoria de Yonara Cheres, professora de Educação Física, natural de Reserva, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 04/04/2023, no Portal TánoTipo em 15/06/2023, e publicado no Diário dos Campos em 17/05/2023.

Minha primeira bicicleta, eu ainda a tenho em casa. Está toda enferrujada, com as marcas do tempo, porque, quando a ganhei, já era de segunda mão. E de uma segunda mão extremamente operária. Daquelas mãos que te servem e você nem as vê.

Se eu exagerava e brincava por muito tempo, caía a correia, ou arrebentava. Aí eu ficava dias de castigo, sem poder colocar meus pezinhos naquele pedal grande; então, para me distrair, passava horas na frente da casa, olhando os operários que construíam o asfalto que ia da minha cidade, Reserva, até Cândido de Abreu. De longe, sempre ficava pensando na hora que, por estradas imaginárias, poderia voltar a praticar exercícios físicos na minha bichinha — mesmo sem ter consciência de que eram exercícios físicos. A especialista em mecânica de bicicletas era a vó Lena, mas ela geralmente se chateava, quando precisava arrumar o brinquedo, porque isso atrapalhava seus planos do dia: como morávamos no Bairro de Lourdes, a vó tinha que ir “pra cidade” para comprar outra correia. Consertada a bicicleta, eu corria para pedalar com toda a força de minha infância; como os freios quase nunca funcionavam, o capotamento era certo. E eu acabava apertando ou luxando os dedos dos pés ou das mãos.

O barulho do ferro era ensurdecedor, desde parte da manhã até a noite; e o óleo passado nas peças muitas vezes sujava minhas roupas já batidinhas. A bronca vinha, mas, mesmo com ela, eu sentia as mãos enrugadas e calorosas na minha cabeça, um carinho guardado até hoje no fundo do coração.

Apenas anos depois, já adulta, soube que meu brinquedo favorito era muito antigo. E que a vó Lena havia comprado a bicicleta de uma senhora polonesa, pagando com uma carroça velha. Vó Lena fizera uma troca justa, ela não precisava da carroça, nem tinha mais cavalos, e a “Polaca” — como era chamada carinhosamente a senhora — não sabia andar no “trem” do brinquedo.

Vó Lena também andava na bicicleta, era uma disputa em que eu corria para sentar, e ela sentava para correr. Eu ganhava o mundo, o meu mundo dos sonhos; e ela conquistava o seu mundo real, um mundo onde tudo cobra seu preço, sempre com o brinquedo rangendo ferros para nós duas.

Hoje aposentada, mesmo funcionando, a minha máquina Pfaff 30, da cidade de Kaiserslautern, fabricada no início do século XX, guarda ainda o cheiro gostoso da vó Lena, o barulho do trabalho da vó Lena e os fios bem trançados das costuras da “Dona Negrinha”, como a conheciam suas clientes.

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...