segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Costumes, fins

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 02/04/2024, e publicado no Diário dos Campos em 28/02/2024.

Quando a boca imponderável do destino sopra as famílias espalhando mapas afora os farelos que são os seus indivíduos, tudo parece ser o fim, ter cor de fim, o odor o sabor o sombreado do fim, mas é somente o começo de algo indomável que é, também, destino. 

Ao ler neste espaço a crônica “Evolução de Costumes”, na qual a Sueli aborda os hábitos que as diferentes gerações de sua família tinham no arrumar a mesa, me lembrei de que a minha também punha à mesa hábitos que merecem registro, embora numa perspectiva outra. 

Consta do anedotário que tios-avós paternos meus e outros antepassados – tão mais remotos que o direito civil nem nominou os parentescos – foram pistoleiros na Paraíba, presumivelmente na primeira metade do século que findou. Duas das reses – o pai de meu pai e um irmão mais velho – desgarraram do clã e, se afastando das agruras locais (quando os patriarcas levavam a prole ao circo, distribuíam revólveres aos rapazinhos púberes, reunidos em torno da mesa, para se defenderem das famílias contrárias) se instalaram inicialmente no Estado de São Paulo e depois no Paraná. Meu tio-avô se estabeleceu como próspero dono de supermercado; meu avô, que gostava de mim e eu dele (com melhores razões agora, como se verá), metamorfoseado em gaiteiro lendário no nosso estado, não se fez ouvir pela Fortuna e faleceu precocemente como despretensioso alfaiate (o que houve com a gaita?). Unia os irmãos não serem fugitivos, por não deixarem delitos para trás, podendo fazer de alma leve o muito ou pouco que fizeram, sem nada dever aos tribunais. O que entristecia o mais velho, refletindo sobre a travessia próxima, era não ver a Copa de 94, que logo vinha e Romário colocou no bolso. 

Só uma vez, um dos que ficaram veio mapa abaixo para visitá-los. Idoso, enfermo, completamente só, pediu a meu pai que o acompanhasse numa consulta. Na hora de o médico auscultá-lo, meu pai lhes deu as costas, para guardar privacidade, quando ouviu o doutor gritar horrendamente. Ao virar-se, descobriu que seu tio tinha o torso tomado pelos projéteis que sua magreza acolhera em décadas de violência. “Eu mais novo gostava muito de umas feixxtas”, riu entredentes o parente, que pouco viveu depois da cena. 

O que este tio pensaria de minha geração, ou mais especificamente de mim, que sem ter levado nenhum tiro em festas faço pouco delas, e ponho para fora sem matá-la uma lagartixa que volta e meia me aparece em casa?

Penso eu que certos costumes, realmente, merecem ter fim.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Cidade

Texto de autoria de Ingrid Aparecida Ditzel Felchak, professora aposentada, escritora e fotógrafa, natural de Prudentópolis e residente em Ivaí.

Postado no Portal aRede em 05/03/2024, publicado no Diário dos Campos em 21/02/2024, e no Jornal Página Um em 05/03/2024.

Caminhei na direção do povoado. Os pés vagarosos eram picados pelas grimpas escondidas entre o capim. Os Campos Gerais estavam cobertos pela geada. O vento impiedoso rosou minha face e o chapéu de palha alçou voo frenético além das araucárias. A beleza encantou os olhos. Onde poderia estar?

 Casas de madeira pintavam a paisagem com cores variadas. Nos telhados, a fumaça dançava enquanto saia das chaminés. Aproximei-me... Crianças brincavam de esconde-esconde nas ruas de terra. Pessoas passavam apressadas carregando cestos de mantimentos ou conduzindo animais. Nas áreas e cercas, roupas secavam. Ainda posso sentir o cheiro de pão assado. Acordei.

Olhei pela vidraça respingada de chuva. As araucárias cederam lugar ao concreto e o povoado à cidade. Uma metamorfose orquestrada pelo progresso. Na calçada, o corre-corre dos transeuntes. Agora não há mais silêncio. Buzinas fazem queixas em meio ao congestionamento dos automóveis. Observo o movimento. Duzentos anos entre o sonho e a realidade. Olho o relógio na cabeceira. Levanto apressado em uma luta frenética pela sobrevivência cotidiana. Percorro a distância entre a praça e o colégio. Os alunos estão à espera da primeira aula do dia.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Evolução de costumes

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 16/04/2024, publicado no Diário dos Campos em 14/02/2024, e no Jornal Página Um em 16/02/2024.

Os costumes mudam de acordo com a época, com o nível social, cultural ou econômico de uma família. Lembro bem dos costumes da minha infância, trazidos por meus pais que, por sua vez, os herdaram de suas famílias. Meus avós de ambos os lados eram muito religiosos, frequentavam missas, novenas, participavam ativamente das atividades da igreja São José. Chamávamos a Vó Maria, da Barão de Capanema, de “Vó de Baixo” e a Vó Luísa, da Prefeito Brasílio Ribas, de “Vó de Cima”, tomando por base a localização da nossa casa na Júlia Lopes. Minha mãe não seguiu o mesmo esquema religioso. Tornou-se mais liberal depois do casamento. Já independente da mãe, vivia segundo suas regras.

Meus avós arrumavam a mesa para as refeições sem preocupação com louças ou talheres. Diziam que ninguém come o prato e que o importante era o alimento. O café era adoçado no bule, um caneco para cada pessoa, a manteiga com uma faca dentro do pote, compartilhada por todos. O mesmo acontecia com a geleia. A nata do leite fervido afastada com um pequeno sopro antes de adicioná-lo ao café. Simples assim, trivial.

Na minha casa, mesmo na humildade, a relação com o visual e o conforto era mais estreita, sem nenhuma conexão com luxo, sofisticação ou requinte.  O café era servido num bule, porém amargo. Para tanto minha mãe abandonou os canecos, adotou xícaras, pires, açucareiro e colherzinhas. Facas individuais para cortar e preparar o pão, garfinho para o bolo e pratinhos de sobremesa onde colocar o alimento evitando deitá-lo sobre a toalha. Aumento de louça na pia, porém mais conforto e higiene.

Enquanto meus avós e tias ainda usavam toalhas de plástico pela praticidade com as crianças, lá em casa se usava toalha de tecido e guardanapos. Aprendemos desde criança a usar talheres básicos, não lamber a colherzinha do café e não apoiar os cotovelos na mesa. Os copos eram do tipo americano e taças só no Ano Novo para o brinde com frisante.

Agora que conheço, embora não use, talher para peixe, taças para água, vinho tinto, vinho branco, enfileiradas, fico imaginando o que diriam meus avós sobre isso. Com certeza diriam: “Que frescura”! “Luxo não enche o bucho”, ainda com a visão antiquada que não incluía boas maneiras. Mesmo assim sinto saudade das cucas de uva da Vó de Cima que eu segurava com a mão e ia mordendo. A outra segurava o caneco de café já adoçado, sem frescura.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Causa mortis

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, natural de Palmeira, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 27/02/2024, publicado no Diário dos Campos em 07/02/2024, e no Jornal Página Um em 06/02/2024.

Já contei algumas das “aprontações” do pequeno piá que habitou (ou habita?) em mim. Passamos pela brabeza, as aventuras do pescador, o deslumbre cinematográfico no Cine Inajá, as tampinhas no Júlio Teodorico, as peripécias no campinho de saibro e os banhos refrescantes no Recanto dos Papagaios. Desta vez, o pequeno menino atacou de médico legista.

Alguns de nossos queridos parentes que transpuseram o plano da existência física para a existência espiritual estão descansando no Cemitério da Colônia Dona Luiza, inclusive meu pai. Não sei ao certo se meu destino final será lá também, mas, desde muito pequeno, por um motivo ou outro, frequento aquele campo santo.

Provavelmente foi no sepultamento de algum parente, ou em uma das idas até lá para verificar as condições da carneira da família, mas, estava este moleque com seus familiares já de saída, de mãos dadas com sua mãe, muito próximo ao portão principal, e, virando o olhar para sua genitora, dispara:

— Eu sei do que este homem morreu! — apontando para um túmulo grande, coberto de granito preto.

— De quê? — pergunta minha mãe, bem curiosa.

— Cerveja! — rebato eu de bate-pronto.

— Como assim?

— Olha ali, tem a marca da Antarctica no túmulo dele. Morreu de cerveja — sentencio.

Uma Estrela de Davi, aquela de seis pontas, enorme, ocupava grande parte da lápide, ao lado do nome do cidadão. Certamente um judeu ali sepultado, resguardado pelos seus símbolos religiosos e sagrados. Esta estrela também era, na época, o símbolo de muitas cervejarias, dentre elas a da Antarctica, que tinha sua fabricação em Ponta Grossa pela Cervejaria Adriática, no final da Avenida Vicente Machado.

Para as cervejarias, a estrela de seis pontas representava o símbolo da alquimia, posto que, por muito tempo, a ciência cervejeira era um mistério fortemente guardado. O pequeno moleque sempre via esse símbolo nos rótulos que circulavam em sua casa. Ligar a cerveja ao estampado na lápide daquele senhor não foi difícil. Causa mortis: cerveja.

Me perdoem os judeus, mas eu tinha, no máximo, uns cinco anos de idade.

Hoje em dia, quando abro uma, geladinha, tomo todo o cuidado para esta não seja a minha causa mortis.

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...