segunda-feira, 28 de junho de 2021

Sant'Ana: entre a fé e as gostosuras

Texto de autoria de Alfredo Mourão de Andrade, aposentado do Serviço Público Municipal de Ponta Grossa.

Publicada na Folha Paranaense em 29/06/2021, no Diário dos Campos em 30/06/2021 e no Correio Carambeiense em 03/07/2021, postada no Portal D'Ponta News em 10/07/2021, no Portal aRede em 21/07/2021 e no Portal CulturAção, em 26/07/2022.

Atravessando a Praça Floriano Peixoto em Ponta Grossa, por volta do meio dia, de repente ouço conhecida cantoria (ou acho que ouço!) vinda da imponente Catedral de Sant'Ana. Arrepios me percorrem.  Vozes de um tempo distante: memória afetiva recheada de fé, odores e sabores. Busco abrigo em um banco da praça, pois as pernas tremem. A musicalidade preenche e abafa o burburinho dos carros, o falatório dos transeuntes. A catedral de vitrais coloridos vai-se desvanecendo ao sol do meio dia. Diante de mim surge a antiga catedral, teimosa em deixar resíduos da sua exuberante arquitetura. As pesadas portas abrem-se e escancaram o louvor: “Ó Sant'Ana aceitai os louvores / desse povo devoto e gentil.”  E bem ali, a alguns degraus do meu flashback, vejo e ouço (ou imagino ver e ouvir!) os fervorosos cantores do Coro Vozes Madrigal, regidos por Gabriel de Paula Machado. Rivalizando-se com a sonoridade divina do órgão de tubos. Emocionado, me pego cantando baixinho pra não chamar a atenção dos passantes.

Aos idos quinze, dezesseis anos me transporto. Festivamente.  Contava meses e dias para a chegada de julho: festa da Padroeira. Novena. Quermesse. Feriado da santa. Aquele frenesi de gente indo e vindo. Então me preencho de cheiros e sabores. Tudo bem ali. Na mesma praça: barraquinhas de gostosuras, bandas musicais, foguetório. Então me calo e me arrepio (de medo) diante dos atuais dias incertos, sem cheiros e sabores ao alcance dos sentidos.

Feriado de Sant'Ana. Pela manhã, os católicos acorriam às ruas centrais, por onde desfilava alegórica procissão: o belíssimo andor e a imagem da mãe e sua filha. Um primor de encher olhos e coração. À frente vinham as freiras, as noviças, em seus hábitos engomados, caminhando em fileiras. Depois dezenas de padres com suas túnicas branquíssimas. À frente do andor a banda musical, as crianças vestidas de anjos, o bispo Dom Geraldo Pellanda. Por último, o povo de Deus acompanhando cantos e rezas em seus rádios de pilha. De repente me vi cercado de fiéis.

Sentado naquele banco me revejo saudoso (e feliz!). Tanta coisa mudou. As décadas (invasivas e nada sutis!) transformaram a cara da cidade e das pessoas. Ali parado minh´alma reverbera o canto divino, ao odor do incenso, ao som do órgão de tubos, ao canto dos animados coralistas: “Salve Sant'Ana Senhora! Sois padroeira bondosa / desta cidade formosa / que vossas bênçãos implora!” Amém!

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Pilão dando uma mãozinha para a tina

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 26/06/2021 e no Diário dos Campos em 18/05/2022, postada no Portal aRede em 14/07/2021.

“Lá nos matos” do Tabuleiro, distrito de Guaragi, moravam meus avós, tios e tias descendentes de imigrantes italianos, os Antoniácomi. Nós, netos e netas, que já conhecíamos paçoquinha embrulhada em papel colorido, quando visitávamos Vô Júlio e Vó Mariuta (Maria) e as tias solteiras que ainda moravam no sítio com eles, comíamos paçoquinha preparada na hora, com café. Era a guloseima que havia no sítio, que a vó moía num pilão “manual”, de madeira, que ficava na cozinha dela. Juntava o amendoim torrado com farinha de milho e açúcar, e socava naquele pilão até virar paçoca. Uma delícia.

Mas no quintal, atrás da casa, havia uma engenhoca mais brutal. Era uma “arataca” de madeira rústica, cujos elementos eram o pilão, entalhado em um enorme e pesado cepo; a mão do pilão, que consistia numa viga de madeira com a ponta arredondada (que pendia de uma estrutura também de madeira firmemente fincada no chão), com um mecanismo que a fazia elevar-se do pilão a uma altura de, talvez, meio metro, despencando com a força da gravidade de novo para dentro do pilão; e uma espécie de gangorra, impulsionada por uma das tias, que participava dessa elevação e queda da mão do pilão como se fosse uma brincadeira (assim era vista pelas crianças). E as crianças? Uma por vez, sentavam-se na gangorra com uma das tias segurando-as para não caírem enquanto a outra tia, a da força motriz, aliviava controladamente o peso, produzindo a risada da criança que pulava para cima enquanto a mão do pilão despencava, e a ansiedade das que esperavam sua vez na fila.

Mas o interessante, é que tenho em minha memória uma imagem surreal dessa estrutura no quintal atrás da casa. Não sei dizer se vi acontecer, ou se imaginei de um modo muito vívido, ou se alguém inventou essa estória para impressionar a criança ingênua, que era bem eu, que acreditava em qualquer lorota. O fato é que a memória existe: uma tina com água e sabão, no lugar do pilão; uma corda ou algo assim, no lugar da mão do pilão; roupas penduradas de algum modo nessa corda; e a tia sorridente “brincando” de gangorra, soltando as roupas dentro da tina, fazendo borbulhas, espalhando pingos d’água para fora da tina, quando subiam de novo. Uma repetição que, certamente, acabava por limpar as roupas.

E aí? Imaginação, sonho, vida real, ou lorota? Não tenho mais vergonha de confrontar meus “micos”, mas agora também não tenho as tias para me dizerem se essa memória era realidade ou “mito”. Eu aposto no mito. E acho que prefiro mantê-lo intacto, pois a realidade costuma ser mais chatinha.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

A vida pela janela

Texto de autoria de Francielly da Rosa, professora da rede municipal de Ponta Grossa e estudante de Letras na UEPG.

Publicada no Correio Carambeiense em 19/06/2021 e no Diário dos Campos em 27/04/2022, postada no Portal D'Ponta News em 24/06/2021, no Portal aRede em 07/07/2021, e no Portal CulturAção em 20/09/2022.


“Bom dia, Ponta Grossa!” dizia o rádio anunciando a chegada de mais um dia. As vozes que outrora traziam boas notícias agora eram temidas. Após ouvir o obituário a avozinha silenciosamente desligava o rádio, dirigia-se até a televisão e repousava um pequeno copo de água enquanto esperava o padre iniciar a missa. Em harmonia com a reza vinda da televisão, um pequeno sabiá, parecendo adivinhar o horário, pousava em seu portão e, da janela, ela permanecia assistindo aquele gracioso show.

Em sua casinha sempre recebia a visita dos filhos, netos e irmãos. Preocupava-se com a situação da pandemia, mas não sabia dizer não às visitas tão queridas. Incomodados com aquela preocupação considerada exacerbada, alguns insistiam em convencer a avozinha a não ter medo de um simples vírus, amparando-se em teorias e boatos equivocados. A pobre senhora juntava as mãos como quem reza em silêncio e começava a se questionar sobre os fatos que ouvia: “Será?”.

Pela janela via a vizinhança movimentada andando tranquilamente pelas ruas, sem máscaras, sem preocupações, sorridentes e confiantes.  Aos poucos viu a cidade iniciar um de seus momentos mais delicados da pandemia, os hospitais cheios, o  longo obituário passava a ter rostos conhecidos, as recomendações eram rebatidas raivosamente pela população. Cada dia mais ela tinha certeza da escolha que fez: acompanhava a vida pela janela.

E permaneceu em sua casinha, cuidou-se como pode, cuidou de seus próximos, aconselhou. Porém em uma manhã sentiu-se mal, algo que sentia há dias, porém não se incomodou com isso. Abriu a janela e percebeu que o ar custava a entrar, tentou respirar fundo, mas era difícil, fechou os olhos por um minuto, ouviu o cantar do sabiá no portão, sentiu os raios de sol acariciando-lhe a pele, olhou pela janela as crianças brincando, os vizinhos festejando e pensou: “Será?”.

Amanheceu mais um dia, a janela não se abriu, o rádio e a TV desligados, o copo no armário, os filhos chegaram como de costume, mas a casa desfez-se no silêncio fúnebre da despedida. Assim a família positivou para o vírus, para o lamento e a culpa e, da janela daquela pequena casinha a vida já não se vê, restando apenas o cantar do sabiá que canta pra gente acordar.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Domingo no parque

Texto de autoria de Dalton Paulo Kossoski, auxiliar de bibliotecário e contador de histórias na Biblioteca Municipal de Ponta Grossa.

Publicado no Correio Carambeiense em 12/06/2021 e no Diário dos Campos em 05/10/2022, postado no Portal aRede em 30/06/2021.

A minha família já foi duas vezes ao Parque Estadual do Guartelá. Ele fica entre as cidades de Castro e Tibagi. A segunda vez que nós viajamos até lá foi a convite do Danilo (meu irmão camarada) e ele nos guiou na viagem. Na primeira vez que fomos para o Guartelá a viagem foi tranquila, fácil de achar a rota a seguir. Mas, a segunda viagem foi mais difícil, pois, decorridos alguns anos da primeira, o pai não lembrava mais como se chegava ao destino turístico.

Fomos. Ainda lembrávamos do visual do parque da primeira viagem: natureza e ar puro, árvores num espaço amplo (o Canyon Guartelá é o sexto maior do mundo). Algumas esculturas aqui e ali na grama, a réplica de um templo, com colunas gregas.

Depois da rodovia, pegamos mais dez minutos numa estrada de chão. E logo ali: a comunhão com a natureza! Aprazível e recompensadora!

A volta àquele lugar foi desafiadora. Ao fim do asfalto o caminho que antes nós tínhamos encontrado calmo (quer dizer, eu não me lembro bem se a poeira já estava lá na primeira viagem por causa do tempo que passou), agora era uma estrada poeirenta, com direito a muitos solavancos. O pó marrom subia com a passagem dos carros, era muito difícil vencer aquele desafio e ver os automóveis que vinham na direção contrária. Comparável a um rali, como o Danilo disse. Era também custoso ver o seu carro nos guiando alguns metros à frente.

Superado o problema da cortina de poeira, nos reencontramos com aquela paisagem fantástica. Passeamos pelo cenário natural até ver, não muito longe, as esculturas em meio ao parque. Paramos para ler os totens ao lado delas, explicando o motivo ou o significado de cada monumento.

Quando ficamos cansados de andar por lá, nós sentamos num banco que achamos junto a uma mesa de cimento (típica de parques estaduais e recantos). Uma fila de casinhas do tipo quiosque. Escolhemos um e comemos ali um pão com mortadela. De sobremesa, mimosa. Terminamos a fruta, deixamos as cascas na mesa e a natureza nos brindou com uma bela imagem: uma borboleta pousou numa das cascas e começou a sugar-lhe o suquinho... O inseto ficou ali uns dez minutos concentrado na sua tarefa e eu maravilhado com aquela visão no fim de uma tarde de domingo nos Campos Gerais.  

O Parque Estadual do Guartelá é um paraíso. O difícil é chegar lá.                       

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...