segunda-feira, 25 de março de 2024

Emergência na costura

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 09/04/2024, publicado no Jornal Página Um em 26/03/2024, e no Diário dos Campos em 27/03/2024.

          Minha mãe não perdia liquidação de retalhos das Casas Reunidas, Casa dos Milagres, ou Casa Íris. Na minha infância, os retalhos ficavam guardados em um baú, e, mais adiante no tempo, na parte debaixo de uma estante que eu mesma comprei — depois de pagar as prestações do meu primeiro relógio de pulso, e de minha cama com colchão de espuma (minha antiga era cama de molas, já sem as molas, e o colchão de palhas). Cama, colchão e estante, “tirei no crédito” nas Casas Blanc, onde eu já trabalhava como auxiliar do auxiliar de contabilidade. Nunca me ocorrera que ter crédito na loja que me dava emprego podia significar, nas entrelinhas, que eu não estava na lista negra do Setor de Recursos Humanos...

Eram tão longos os dias e tão empoeirados os palcos das brincadeiras, na minha infância! Com seis filhas e um filho, Jandira — minha mãe, minha costureira, minha advogada em negociações com o pai, ou entreveros com as irmãs (ainda conto, dia desses, os bullyings “inocentes” que me faziam) —, se virava com trabalhos árduos, “malmente” auxiliada pelas irmãs mais velhas, lavando roupas no tanque com água tirada do poço, assando grandes formadas de pães, cuidando da horta. E ainda achava tempo para costurar nossas roupas, sempre em manequins maiores e com tecidos resistentes, para durarem mais tempo e ainda ficarem inteiros para a “segunda mão” das crianças mais novas. Cada uma das crianças tinha duas ou três “mudas” de roupas, incluindo a “domingueira”. Mas “eram tão longos os dias (...)”, que certa vez eu simplesmente não tinha roupa limpa para ir à escola. O uniforme escolar daquela época não era mais que um avental amarrado nas costas com um laço. Se eu aparecesse na escola apenas vestindo o avental, seria um escândalo. Sem titubear, ela deixou as panelas no fogo aos cuidados de uma das outras filhas, tirou do baú um retalho que dava para costurar rapidamente um vestido com alças, com uma parte da costura interrompida na altura da cintura, para que passasse facilmente pelos ombros, sem precisar de botões ou zíper, com bainhas simples nas barras. Eu, ao lado, vestida escandalosamente apenas com o avental sem amarrar o laço, mal cobrindo a calcinha (milagrosamente parece que eu tinha uma calcinha limpa naquele momento), esperando para enfiar o vestido e sair correndo pela Rua Franco Grilo, em direção ao Grupo Escolar Jesus Divino Operário.

Ah, terminei hoje de customizar uma saia para servir à personagem Mirabel, com retalhos que também tenho guardados...

segunda-feira, 18 de março de 2024

Amor sobre rodas

Texto de autoria de Sílvia Maria Derbli Schafranski, advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 20/03/2024, e no Jornal Página Um em 22/03/2024.

No aconchego do nosso lar, em uma noite tranquila, meu filho, com olhos curiosos e mente inquisitiva, decidiu mergulhar em um dos capítulos mais lindos da minha juventude. Sentados à bancada da cozinha, ele me olhou com um sorriso jocoso e indagou-me:

"Mamãe, qual era o Uber que te buscava nas festas, quando você era jovem?"

Foi como abrir um baú empoeirado de lembranças. Um sorriso nostálgico surgiu em meus lábios, enquanto eu rememorava os dias de outrora.

"Bem, filho, na verdade não tínhamos Uber naquela época. Mas havia alguém muito melhor."

“Nos anos 90, quando as festas eram regadas à música alta, roupas coloridas e um misto de ansiedade e excitação adolescentes, havia uma figura que se destacava entre os jovens: meu pai. Com seu espírito jovial, ele abraçava uma peculiar missão com uma dedicação quase sagrada.”

"Quem me levava e me trazia das festas durante toda minha adolescência era o seu avô.”

"O vovô? Mas como ele conseguia te acompanhar na balada?”

Eu ri com a inocência, e abriu-se uma janela para um passado repleto de amor paternal.

"Bem, filho, seu avô não dirigia qualquer carro. Ele tinha uma verdadeira carruagem, um gigante de metal que acomodava treze outras meninas!", expliquei, vendo seu espanto.

"Treze outras garotas? Mas como cabiam?"

"Ah, isso era parte da mágica", respondi com olhos brilhando de nostalgia. "Seu avô tinha um Landau, um carro grande e espaçoso. Ele fazia questão de nos levar e nos devolver em segurança, mesmo que isso significasse várias viagens pela cidade."

Seus olhos brilhavam com curiosidade. "Seu avô era um homem gentil e preocupado com o bem-estar das pessoas. Fazia-se sempre presente. Ainda, tentava captar as nossas conversas e, quando chegava em casa, ele as transmitia à sua avó”. Não era apenas um motorista, mas um observador atento, um ouvinte discreto das confidências e segredos das garotas que transportava.

Durante o trajeto, as conversas fluíam. Falávamos sobre paqueras, expectativas para a noite, dilemas adolescentes e sonhos futuros. Ele geralmente permanecia em silêncio, mas, ocasionalmente, lançava um comentário sábio ou uma piada bem-humorada que arrancava risos.

Lembro-me da sensação de segurança e conforto, do jeito carinhoso com que ele nos tratava e da sabedoria tácita que emanava de sua presença.

Com esse ritual contínuo, compreendi que o amor verdadeiro não se traduz apenas em palavras, mas em atitudes incondicionais de sacrifícios, devoção, proteção, amizade e responsabilidade.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Metáfora do moinho

Texto de autoria de Sílvia Maria Derbli Schafranski, advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 13/03/2024, e no Jornal Página Um em 15/03/2024.

No coração da pequena Colônia Castrolanda, encravada no interior do Paraná, ergue-se majestoso o imponente moinho de vento, um dos símbolos mais marcantes da região.

Elevam-se as grandes pás giratórias e estrutura de madeira robusta. Não apenas um marco histórico, é também um ponto de referência para moradores e visitantes.

Naquela tarde ensolarada, enquanto o movimento turístico se intensificava, algo incomum acontecia. Entre os turistas tirando fotos e os moradores aproveitando o dia de folga, uma figura se esgueirava pelas sombras, tentando passar despercebida.

Era Ariel, um jovem inquieto em busca de um momento de paz e introspecção. Envolto pelo ruído da cidade e as conversas animadas dos visitantes, seus pensamentos pareciam barulhentos demais: – O moinho, erguido como um guardião solene na vastidão da paisagem, é mais do que uma estrutura de madeira que desafia o vento. Ele é um símbolo poderoso, um eco sussurrante da jornada humana através das estações da vida, pensou.

Em meio aos seus pensamentos, ouviu um guia gritar: – Vejam senhores esse moinho, com sua capacidade de transformar o vento em energia, nos ensina a arte da adaptação. Assim como ele ajusta as velas para aproveitar ao máximo cada rajada, nós também aprendemos a ajustar nossas velas da alma, navegando com coragem e sabedoria através das mudanças que a vida nos impõe.

Ariel imediatamente pensou: – À medida que as estações passam e os anos fluem como rios sinuosos, o moinho permanece como um farol silencioso de esperança e renovação. Ele nos lembra que, mesmo em momentos sombrios, há sempre a promessa de uma nova aurora, um novo começo esperando para nascer.

Enquanto o sol se punha lentamente, Ariel finalmente emergiu do moinho, renovado e revitalizado. Ao sair, trouxe consigo um pouco da calma e da serenidade que encontrara naquele lugar tão especial.

Quando contemplou o moinho, viu não apenas uma estrutura de madeira, mas o reflexo da própria jornada. Metaforicamente se imaginou como suas pás, girando, impulsionado pela força dos ventos da mudança. Descobriu que cada revés, cada desafio, é apenas mais uma oportunidade de crescer, de aprender, e sedimentar verdadeiros valores.

Para Ariel, o moinho se tornou um símbolo de resiliência. Entendeu que somos capazes de transformar as tempestades em calmarias, assim como o moinho converte o vento em energia.

E assim seguiu seu caminho, com propósito de voar alto e livre, como as pás de um moinho, em direção aos sonhos mais audaciosos.

segunda-feira, 4 de março de 2024

A camiseta e a vaca

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica, escritor e jornalista aposentado, natural de Ponta Grossa e residente em Curitiba.

Postado no Portal aRede em 19/03/2024, publicado no Diário dos Campos em 06/03/2024, e no Jornal Página Um em 12/03/2024.

    Ainda início da década de 1990. Um cunhado trabalhava na Indústria Wagner. Por algum laço especial de amizade dele com a direção, minha mãe e o padrasto foram contratados para cuidar de uma chácara de um dos gerentes, localizada na Colônia Dona Luiza.

Em visita a Ponta Grossa, num domingo de verão, fomos, minha família e a do cunhado, passar o dia na tal chácara. A casa em que minha mãe estava instalada não era muito grande, mas o suficiente para duas pessoas morarem como caseiros. As cercas de arame delimitavam a propriedade, mas não havia separação entre a casa e uma área de campo que se estendia para todos os lados por algumas centenas de metros. Outros detalhes não me chamaram a atenção.

O fato é que, enquanto aguardávamos o almoço ser servido, adultos e crianças se envolveram em uma brincadeira com bola. Devido ao sol forte, tirei a camiseta regata e a pendurei em um arame utilizado como varal. Este foi o início de uma tragédia afetiva.

Embora fosse uma camiseta tricolor (azul com duas listas, uma branca e outra vermelha nas laterais), portanto, em desacordo com as minhas preferências clubísticas, eu a tinha por predileta.

Quando a procurei para vesti-la para sentar-me à mesa, dei-me conta de tê-la deixado lá fora e, ao sair para buscá-la, deparei-me com uma cena inusitada e alarmante. Uma vaca, simplesmente, estava a mastigar a dita cuja. Desesperei-me não só porque gostava muito dela, a camiseta e não a vaca, mas porque precisaria dela para poder dirigir de volta.

Confesso que minhas relações com os bovinos sempre foram muito discretas e nossa intimidade limitava-se a alguns olhares desconfiados trocados a uma distância segura. Foi, então, que eu me equipei de toda a coragem que jamais suspeitei possuir e avancei em direção à vaca alvinegra e, entre uma mastigada e outra, consegui arrancar a camiseta de sua boca.

Ao fazê-lo, uma mistura de sentimentos tomou conta de mim. Tristeza por constatar os estragos causados à preciosa peça de vestuário. Ela sofrera uma traumática transformação. Tomara-se de uma cor diferente decorrente do suco de grama. Estava mascada, gosmenta e quente, formando uma pasta heterogênea de tecido, grama e baba do ruminante.

Porém, não pude deixar de exibir à rival um ar de triunfo por ter recuperado o meu pertence.

Lavei a camiseta – ou o que sobrou dela – sob muitas gargalhadas e enquanto secava – em outro varal –, saboreamos uma peixada fantástica de taraíras como dizemos nós, ponta-grossenses, pescadas ali próximo, no rio Tibagi.

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...