segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Reminiscências

Texto de autoria de Márcia Derbli Schafranski, professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficiente Investigadora pela Universidade de Extremadura, na Espanha, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 31/10/2023, no Portal CulturAção em 05/12/2023, no Portal TánoTipo em 13/02/2024, e publicado no Diário dos Campos em 15/11/2023.

Outro dia, conversando com um dos meus filhos, ele perguntou-me como havia sido minha vida, nos idos tempos da minha infância e juventude.

Essa pergunta reportou-me ao passado distante, quando inúmeras recordações assolaram a minha mente. Nascida em Ponta Grossa, estudei inicialmente no extinto Colégio Anchieta e, posteriormente, cursei o Ginásio e a Escola Normal no Colégio Santana.

Minha infância e juventude foram tranquilas, e creio que o nível de interação da minha geração com os adultos e as crianças era bem mais próximo. Conhecíamos e tínhamos amizade com todos os vizinhos, brincávamos na frente das nossas casas, jogávamos bola, pulávamos amarelinha, e, por vezes, fazíamos piquenique na escada de pedras até hoje existente na Rua Padre Ildefonso.

Ao crescermos, aos domingos, o programa era participar da missa das 10 horas na antiga Igreja Catedral e, depois, fazermos footing na Avenida Vicente Machado.

Tenho saudades dos almoços dominicais em família, nos quais conversávamos sobre trivialidades e assuntos diversos, e, posteriormente, nos preparávamos para ir à sessão das 19h30 no Cine Ópera, para assistir filminhos românticos. Lembro-me também dos saudosos carnavais do Clube Ponta-Grossense, onde as famílias, com muita alegria, reuniam-se para brincar ao som das antigas marchinhas como “Mamãe eu quero”, “Ó abre alas”, “Máscara Negra” e tantas outras.

Em 1968, ingressei no Ensino Superior, tendo-me formado em Pedagogia, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, em 1971. Dois anos mais tarde, casei-me. Foi no dia 8 de dezembro de 1973, sendo que, nessa mesma data, casaram-se as queridas amigas Maria Hercilia Piazetta e Isa Carvalho, recentemente falecida. Hoje, ao olhar para trás, vejo que a antiga Catedral, onde me casei, já não existe, e que o lugar onde foi feita a minha festa de casamento, ou seja, a sede social do antigo Clube da Lagoa, também foi descaracterizada.

Indagada por meu filho em que hospital ele e seus irmãos nasceram, respondi: na Maternidade Santana. E onde ela fica? Respondi: ela também serve a outros propósitos.

Meu filho então exclamou: “Que pena! E você não fica triste ao perder parte das suas referências?” Respondi, então, com lágrimas nos olhos: “Embora, alguns desses lugares já não existam, as melhores lembranças não se encontram em lugares, fotos ou em coisas materiais, mas vivem para sempre em nossas memórias e são gravadas eternamente, em nossos corações”.

Os Campos Gerais dos idosos

Texto de autoria de Silvia Maria Derbli Schafranski, advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal CulturAção em 07/11/2023, no Portal aRede em 28/11/2023, no Portal TánoTipo em 10/01/2024, e publicado no Diário dos Campos em 18/10/2023.

          No dia em que desembarcou no Rio, aos cinco anos de idade, ladeado por seus doze irmãos e trazendo consigo apenas a roupa do corpo, ele não imaginava que passaria a construir, nos próximos anos, também a nossa história.

          Cena pungente: minha bisavó descendo do navio com a filharada atrás, em escadinha e sem nenhum tostão. Ironicamente, Tostão foi o nome do terceiro cachorro de meu avô, que, já homem-feito, fixou residência na cidade de Ponta Grossa, em época coincidente com a chegada dos trilhos.

          Seus bem vividos noventa e oito anos me levaram a refletir sobre o paradoxo da velhice em um universo da longevidade. Outrora não era degradante ser idoso. Cabelos brancos eram reverenciados como símbolo de sabedoria. Os anciãos eram os guardiões da história, detentores de tradições e conselheiros sábios da comunidade. No entanto, em contraste com o atual paradigma da longevidade, a exclusão das pessoas idosas parece ser uma sombra onipresente.

O falatório dos jovens e imposições da mídia revelam que ninguém mais quer envelhecer, até mesmo marginalizando os idosos. A luta pela juventude eterna transforma a velhice em doença. O culto à juventude parece estar enraizado em nossa cultura.

          Os Campos Gerais deram oportunidades para imigrantes, muitos deles analfabetos, e que, entre inúmeras dificuldades, construíram uma vida digna para as próximas gerações. Os chamados "velhos" foram criados sem quaisquer regalias ou conforto. Casamentos duravam até a viuvez e os utensílios eram reaproveitados e passavam entre gerações. Brinquedos eram raros ou improvisados.

          A comunicação era lenta e as pessoas se reuniam para tocar instrumentos musicais ou para ouvir rádio. Patife era palavra temida e as questões de honra eram decididas “na bala”. Assim contava meu avô, ao exibir os sinais de perfuração no crucifixo de madeira que lhe havia salvado a vida em uma desavença em honra da filha mais velha.

          Esse saudoso universo era composto por pessoas que tinham fome de vida e que relutavam em morrer. Daí por que insistia ele em não compreender Getúlio. Viúvo aos quarenta anos, com três filhos para criar, não deixou que o luto também o levasse, preferiu recomeçar. Conheceu minha avó, com quem teve mais uma filha e que abraçou sua prole como própria.

          Os Campos Gerais dos idosos abraçaram homens de palavra, de negócios realizados no “fio do bigode”.  Foram verdadeiros homens sobreviventes da escola da vida, lapidados com os mais inestimáveis valores.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Eu e meu capacete

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, natural de Palmeira, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal CulturAção em 31/10/2023, no Portal aRede em 12/12/2023, e publicado no Diário dos Campos em 25/10/2023.

          Nas idas e vindas, em ruas princesinas e estradas campesinas, descobri um lugar inusitado, onde os pensamentos, a filosofia e as ideias fervilham: meu capacete.

Pela necessidade do meu trabalho, minha locomoção é quase sempre com a moto. Neste momento de solidão, muitos pensamentos me ocorrem, desde reflexões sobre a vida, pensamentos sobre os afazeres diários e até mesmo algumas crônicas que surgem neste espaço pequeno fisicamente, mas ilimitado filosoficamente.

Enquanto vou para Castro, atendendo mais um cliente, me surge o pensamento de quanto penso dentro do capacete. Algumas músicas me surgem. Um caminhão aparece à frente, novo pensamento surge.

Indo de Uvaranas para Vila Oficinas, da Nova Rússia para o Contorno, planejo como devo executar mais um trabalho, por onde começo, onde devo procurar as peças que necessitarei em breve. O sinaleiro fecha, devo parar, e prestar atenção no próximo arranque. Deus lembra de mim?

A Balduíno se descortina à minha frente, então me surge a possibilidade de mais uma crônica. Seu título, o início, o descortinar do enredo, sua conclusão, o humor empregado. Opa, o semáforo com a Avenida Vicente Machado está aberto. Um toque mais intenso no acelerador para aproveitar o sinal aberto. Onde estou indo mesmo? Ah, lembrei!

Sim, muitas vezes me perco em meus próprios pensamentos, me sentindo tão só, parodiando o poeta, mas em excelente companhia, ou seja, comigo mesmo. Aliás, falar sozinho dentro do capacete é muito recorrente. Altos monólogos se desenrolam, talvez levando os transeuntes a duvidarem da lucidez do piloto.

Nas constantes idas até a capital do estado, cruzando os Campos Gerais, passando o Tibagi, Witmarsun e despencando pela Escarpa Devoniana, também conhecida como Serra do São Luiz do Purunã, penso na família, na sorte que tenho por ser casado com uma mulher maravilhosa, ser pai de uma filha ímpar. Um caminhão freia, o carro que está ao meu lado também reduz, minha manobra precisa ser milimétrica para que a moto se mantenha em pé.

Para chegar em casa, preciso tomar o rumo do Hospital Regional. Arredo um pouco para o lado, pois uma ambulância está com todos seus sinais de emergência acionados. Tomara que não seja muito grave, tomara que dê tempo. Ela passa, meus pensamentos se voltam aos cachorros de casa, fujões, preciso ser mais esperto que eles.

Tiro o capacete, parece que os pensamentos embaralham. Levo um tempo para que as coisas tomem eixo novamente. Sento em frente ao computador e os imprimo.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Zero Oito

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal CulturAção em 24/10/2023, no Portal aRede em 07/11/2023, e publicado no Diário dos Campos em 18/10/2023.

Uma cidade como Ponta Grossa, em seus intensos e longos anos de história, já produziu vários casos pitorescos. Cada morador sempre tem um para contar. Alguns desses casos são quase tão antigos quanto a cidade. Foram sendo contados de forma empírica através de gerações pelos avós, pais, tios e se perpetuaram, talvez com algum exagero. No tempo em que uma visita a parentes ou amigos era feita essencialmente para conversar, sem televisão ou celular que desviassem ou empobrecessem o assunto, os casos eram temas recorrentes e interessantes. Variados, eles transitavam de boca em boca. Um dos mais comentados envolvia o Zero Oito, um codinome que ninguém sabe de onde surgiu. Era um homem muito alto e demasiadamente forte segundo seus contemporâneos. Praticava luta livre e invariavelmente consagrava-se vencedor pela força de seus golpes nos oponentes que ousavam desafiá-lo. Tornou-se uma figura folclórica e suas lutas lotavam os locais onde eram realizadas. Outra figura lendária da cidade era a temida e invencível Mulher Gorila, lutadora que se apresentava no Circo Nhô Bastião com tremendo sucesso. Suas “voadoras” levavam os adversários à lona em segundos. Mesmo assim ela perdeu uma luta para o Zero Oito para delírio do público.

Um acontecimento dentro dos limites do quartel, quando o lutador servia ao exército, ficou marcado no imaginário da população. Num treinamento de rotina, Zero Oito estava encarregado de levar um burro de um ponto a outro. Era inverno, havia geado à noite e na caminhada o burro empacou, fincou as patas dianteiras no solo gelado e não saía do lugar nem por decreto. Irritado com a situação, já cansado de puxá-lo, empurrá-lo, o soldado tentou o último recurso para que o animal andasse. Deu um tapa na cara do burro que tombou morto com somente um golpe.

Depois da baixa do quartel, trabalhou no matadouro municipal, na matança, atividade que se adequava à sua personalidade. Em família levava uma vida normal. Não esperava, no entanto, que o destino lhe pregasse uma peça. Por volta do final dos anos 60, para reparar a antena de sua TV que não estava com bom sinal subiu no telhado da casa. Inadvertidamente esbarrou num fio de alta-tensão e caiu ao solo, eletrocutado. Foi o fim do valente Zero Oito, sem segunda chance, assim como aconteceu com aquele animal teimoso.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Imperiais

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Postado no Portal Culturação em 17/10/2023, no Portal aRede em 24/10/2023, no Portal TánoTipo em 29/11/2023, e publicado no Diário dos Campos em 11/10/2023.

Reinavam paz e harmonia no Império. Ninguém precisava angariar privilégios para viver satisfeito: as energias desgastadas em folguedos noturnos, em plena liberdade, os habitantes recuperavam com a ceia farta e, durante o dia, com o descanso sob abrigos de teto baixo (refúgios altos eram desnecessários, pois nenhum intruso mal-intencionado ou invasor perigoso colocava suas vidas em risco). Namoravam graciosamente no escurinho do cinema, com bom serviço de fast food. Os infantes brincavam de esconde-esconde, entre as fileiras de grandes estruturas desgastadas pelo tempo e uso.  

Mas os tempos mudam. Os subterrâneos, local da nascente do Arroio Pilão de Pedra, via de acesso secreta para as dependências do Império (um paraíso de diversões aquáticas dos imperiais), haviam sido invadidos. Aquelas criaturas descomunais de uma espécie assustadora, bem conhecida dos ancestrais, que antes pouco apareciam, iniciaram uma ocupação massiva dos subterrâneos, a princípio, sem aparente pretensão à conquista territorial, usufruindo pacificamente das ofertas generosas de alimento e lazer encontrados também ali.

Os anciãos preocupavam-se e confabulavam, mas os jovens — acostumados com os assíduos frequentadores do lugar, fornecedores de alimentos, tremendamente maiores e inofensivos —, encaravam com naturalidade os diferentes em seu meio. Viam nos filmes criaturas ainda mais assustadoras. Por que temeriam aqueles que, como seus ancestrais, vieram de outros lugares, buscando garantia de sobrevivência na fartura do Império, que os imperiais poderiam perfeitamente compartilhar, mostrando sua hospitalidade?

Num desfecho desastroso, as comilonas criaturas que se reproduziam assustadoramente, infestaram o Império, e o alimento que naturalmente abastecia as praças de alimentação passou a ficar escasso, gerando grande insatisfação naquelas criaturas desprovidas do bom senso que os imperiais herdaram dos ancestrais pré-históricos: "Na paz e na harmonia, em bons refúgios e sem luxúria, transmitiremos aos nossos descendentes o domínio do Universo". Tais gulosos tornaram-se predadores furiosos, investindo contra a pacífica comunidade que os acolheu, como em históricas invasões e conquistas territoriais. O próprio Cine Império não durou muito depois desses funestos acontecimentos. Nunca ficou provado o que o dito popular jocoso, largamente difundido entre os frequentadores humanos daquele cinema, proclamava: “Não há mais baratas no cine império; os ratos comeram todas”.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Brabeza

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, natural de Palmeira, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal Culturação em 10/10/2023, no Portal aRede em 21/11/2023, e publicado no Diário dos Campos em 04/10/2023.

Nascer e crescer em Palmeira é um privilégio de uma parcela da população dos Campos Gerais não muito ampla. Modestamente, admito ser parte destes, ou diria melhor, orgulhosamente me identifico palmeirense.

E, claro, tenho também minhas histórias, as histórias de um moleque “brabo”, que nasceu em casa, tinha a honra de vizinhar com os Kardush, Dona Linda e seu Assad, poder caminhar tranquilamente até a Praça Marechal Floriano, ou ir sozinho, com 5 ou 6 anos, até o pré-primário do Colégio das Freiras, que também nos vizinhava. Nos fundos de casa, além do pé de ariticum, já proseado aqui, a Rádio Ypiranga nos fornecia gratuitamente suas melodias e noticiários.

Dentre outras memórias, despertas pelo desejo de “cronicar”, lembro-me de ir até o Seu Paulo, o barbeiro que sempre cortava os cabelos masculinos de nossa casa, subindo a Conceição, quase na porta da rádio, vestido com uma camiseta do Coritiba F. C. Ao chegar lá, minha mãe, como de hábito pede a ele um corte bem caprichado, bem curto, “pra aproveitar bem o dinheiro, hein seu Paulo”. Ele olha para mim e me pergunta: “então, você é coxa branca?”. O moleque, muito “brabo” mostra a perna, e responde beiçudo: “eu não sou coxa branca...”. Deveria eu ter cerca de quatro ou cinco anos, e não fazia a mínima ideia do significado desta alcunha.

Minha mãe conta ainda que, talvez com um pouco menos idade, esse moleque, após ser repreendido em casa, alguma travessura certamente, saiu emburrado, com as mãos para trás e tomou o rumo Conceição acima, não dando bola para ninguém. Ela me seguiu, e, divertindo-se com seu rebento, acompanhou esta aventura. Relata que ao passar pelo Seu Paulo, que sempre “mexia” comigo, não me importei. Segui firme em meu propósito de “fugir de casa”. Passo a rádio, caminho, caminho, caminho, passo a Agottani, continuo até chegar em frente ao Cemitério. Naquela época, a Conceição não era calçadão como hoje. Bem, lá eu paro, provavelmente cansado, e já com o coração mais calmo, olho para minha mãe e falo: “mãe, vamos voltar para casa?” Ela me toma pela mão, e descemos a Conceição novamente.

Minhas irmãs sempre reclamaram que as botas ortopédicas que me obrigavam a usar para corrigir o “pé chato”, eram verdadeiras armas em meus pés. Os hematomas nas canelas delas, quase sempre eram consequências de um moleque bem “brabo”.

Não era fácil esse moleque!

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...