segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Biografia dos meus pés

 

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.


Lido na Rádio Clube de Ponta Grossa em 01/10/21, postado no Blog da Mareli Martins em 02/10/21, publicado no Correio Carambeiense em 09/10/21 e no Diário dos Campos em 22/06/2022, postado no Portal aRede em 20/10/2021.

 

Pequeninos, rosados e enrugados, eles chegaram. Aos poucos, mais rechonchudos, menos frágeis, pisoteavam a barriga da mãe e das avós quando, amparada pelas axilas, tentavam manter-me ereta, provocando risos que surgiam espontâneos e fartos. Meus pezinhos de criança palmilharam o trajeto de casa até o grupo escolar Júlio Teodorico, meias soquete e tênis, por anos seguidos. Aos domingos iam ao circo do Nhô Bastião, ao parquinho da praça ou subiam na roda gigante, em ocasiões especiais. Já usavam tênis maiores, faziam trajetos mais longos pelos corredores do Regente Feijó, atravessando a praça e rezando uma rápida Ave-Maria na Igreja do Rosário.

O tempo trouxe a juventude e com ela a permissão para usar saltos altos. Horas de ensaio com um livro sobre a cabeça buscando usá-los com elegância. Os pés se acomodaram muito bem dentro deles, sustentavam o corpo com leveza, dançaram valsas e boleros. Nus, pisaram a areia da praia, sentiram o frescor da água do mar. Andaram pelos bosques e campinas nos piqueniques de fim de semana, correram até o ponto de ônibus chegando quase sem fôlego até ele, para evitar atraso no trabalho.

O namoro, no banco em frente à Igreja São José nas tardes de domingo, se tornou mais sério e meses depois, vestida de noiva, meus pés desfilaram sobre o tapete branco até o altar.

Pés adultos enroscados em outros pés, o encontro de corpos e almas à procura do aconchego, na quentura da chama ardente do amor. As ruas da cidade passaram a sentir meus passos com um par de pezinhos ao lado dos meus, depois mais um par do outro lado. Era a vida que seguia em frente, se desenrolava, também andava. Vieram os passos céleres pelas escadarias da universidade. Havia pressa!  Aconteciam ao mesmo tempo em que davam aulas, iam à feira, às reuniões do colégio, lavavam, passavam, preparavam o jantar, mamadeiras, lancheiras... Estiveram em terras longínquas onde nunca cogitaram estar, terras com outros idiomas, costumes diversos, proveitosas andanças pelo mundo. E os pés, incansáveis, nunca me abandonaram. Foram eles que me colocaram na posição vertical e me conduziram pelos caminhos que a vida traçou. Após o fim, eles é que estarão na vertical, voltados para o firmamento, orgulhosos de sua jornada, de terem sido meu esteio durante uma vida inteira.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A voz do silêncio

Texto de autoria de Rosana Justus Braga, revisora, Curitiba (natural de Ponta Grossa).

Publicada no Correio Carambeiense em 25/09/2021 e no Diário dos Campos em 20/10/2021, postada no Portal CulturAção em 14/09/2022.

De tudo, o que mais lembro é o silêncio da tarde, a sinfonia de insetos lá fora, o ressonar do avô no quarto ao lado, o relógio da sala a contabilizar o tempo. Na hora da sesta a rua também dormia seu sono breve, e a casa seria a própria morte, não fosse o ressonar do avô.

No quarto ao lado, a vida pulsava no peito da menina que se fazia de morta, os sentidos todos despertos, à espera do instante da ressurreição.

De repente, um tilintar na cozinha, um ruído de água na torneira, um avivar o fogo, logo o cheirinho de café coado invadiria os quartos e a vida voltaria a pulsar. Morte e renascimento diários era o que eu via na casa dos avós, nas férias escolares.

Gosto de pensar que a cidade natal dorme dentro da gente, como se fora a sesta da tarde à espera do que seja capaz de despertá-la.

O que me faz pensar em Proust, que viu o passado brotar de sua xícara de chá. A cidade, a infância, as pessoas, mas antes a emoção avassaladora até entender o que se passava, chegar na essência de tudo, reencontrar ali um tempo em que já nada mais subsistia, após a morte dos seres amados, a destruição das coisas, apenas o sabor e o odor permaneciam ainda muito tempo, como almas a penetrar o edifício imenso da memória.

A voz do silêncio sempre foi meu despertador pessoal, a me introduzir nas dobras, onde ficam as lembranças já esmaecidas.

Mas a roda da vida vai girando e, hoje, tenho quem me leve a viajar no tempo sem a precisão de silêncios. Netos. Netos que parecem não acreditar que avós já foram crianças, tal o empenho em querer ouvir as histórias do passado.

E eu me entrego, sem resistência.

Banho de chuva? Guerra de lama? Briga de rua? Chego a pensar que talvez exagere, mas não, as mãos esfoladas, as unhas encardidas, os joelhos ralados sempre foram a confirmação da coragem, do arrojo das ideias, das incursões destemidas mato adentro, dos sustos inevitáveis, da corrida desenfreada na hora do aperto.

É sob os alaridos de hoje que me vejo embarcar nesta nave do tempo, na companhia de uma plateia atenta e incrédula.

Quando eles se cansarem, tudo voltará ao silêncio da sesta.

Até que algo inesperado faça a memória vibrar outra vez.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Um cocho plebeu

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 18/09/21, postada no Portal aRede em 15/10/21.

Os frios de julho mais intensos, na região de Ponta Grossa, trazem-me à lembrança o cocho do galinheiro, que amanhecia com uma fina camada de gelo lacrando a superfície da água. Havia uma hierarquia entre as crianças para quebrar o gelo, e me lembro de algumas vezes em que a princesa do gelo era eu, antes de ser destronada pela criança mais nova que já estava apta a assumir o poder do riso, ante a novidade.

Nessa época eu ainda não tinha perdido também meu castelo, o que tem muito a ver com o mesmo cocho. O castelo, um abacateiro enorme, com infinitas alas (cada galhada que se estendia lateralmente com bifurcações suficientemente resistentes para sustentar o peso de uma “princesa”), era o cenário para o encantamento da infância, com minhas irmãs e vizinhas. Eu gostava de subir até os galhos ainda tenros que empinavam para o alto, formando uma copada de coloração mais clara — a torre — de onde eu podia avistar todo o reino (os arredores de Ponta Grossa) em várias direções: as baixadas sombreadas, ainda com natureza intacta, e as colinas ainda não tomadas por habitações humanas. E sentia o vento balançar os galhos que me sustentavam, e embaraçar meus cabelos finos, que nem conheciam condicionador, naquela época. Era esperado que um desses galhos finos, algum dia, vergasse ao meu peso. Mas isso nunca aconteceu. Creio que enquanto a princesa crescia, também a torre se fortificava.

Entretanto, certo dia, despenquei direto em cima do cocho do galinheiro. Fiquei sem fala (ou seria uma parada respiratória?), que só voltou com os brados da mãe ameaçando-me com o exílio, que me destituía do título de Alteza, da coroa, da vista da torre, e da infância. O primeiro patamar da subida, um toco de galho, que já era toco de tanto perder partes de sua extremidade ressequida pelo tempo, não suportou o peso da princesa que não queria amadurecer. Nunca esperei essa traição do bom e fiel toco de galho...

Nada mais de alturas. O exílio concedido a quem perde seus direitos de infante fica no rés do chão, aonde as fantasias flutuantes e balançantes não conseguem descer, restando apenas secas passadas sobre o eito da vida real (nada a ver com realeza). 

Hoje vejo o retalho de uma daquelas colinas, que se estende até o reino do fim do dia, onde o céu adormece mostrando, por uma fresta, o seu pijama de cores do ocaso, até que ela se vista com o brilho das luzes artificiais. Na fantasia ainda ardente em mim, lembram-me tochas de um exército acampado na fronteira do infinito, aguardando o toque de avançar para a conquista do derradeiro sonho.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Privatizações

Texto de autoria de Murillo Emanuel de Lara, estudante de Administração da UEPG, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede em 06/10/2021.

Seu Joaquim estava em casa, era sexta-feira e sua filha Aline e o namorado dela, Jonatan, vieram para o café da tarde. Não é segredo para ninguém que Seu Joaquim não se bicava com o genro.

Estavam sentados no sofá enquanto as mulheres preparavam o café. Vez ou outra eles se olhavam, mas não tinham assunto; nenhum que os agradasse.

Foi quando Jonatan arriscou:

— E o senhor ficou sabendo da privatização dos Correios, Seu Joaquim?

— Sim, eu li algo sobre isso nos jornais. — Seu Joaquim era assinante fiel da Gazeta do Povo, recebia todos os dias em sua casa um exemplar do jornal impresso, mas ele estava começando a ler as colunas on-line, mas ainda estava engatinhando nesse processo.

— Pois é, né — comentou Jonatan —. Agora esse povo vadio trabalha.

— Como é, meu jovem? — perguntou Seu Joaquim se inclinando para a frente.

— Ah, esse povo concursado dos Correios. Todo mundo sabe que eles não trabalham e quando trabalham ainda não fazem direito. Quem sabe com essa privatização eles acordem, ou estarão logo no olho da rua.

— Você acha que é simples assim, rapaz?

— Não, claro que não. Mas já poupa o governo de ficar investindo neles.

— Sim, o governo não precisa mais investir, mas então quem que passa a ser o investidor direto? O povo com os novos valores cobrados.

— Sim, mas... — antes que ele pudesse terminar, Seu Joaquim continuou:

— E de onde você tirou esse papo de que eles não trabalham?

— Bom, uma vez uma encomenda minha atrasou cinco dias. Em uma empresa privada isso não aconteceria.

— E por causa de uma encomenda ruim você vai julgar todos eles?

— Bom...

— E quanto àqueles que ficarão sem emprego e têm família para manter?

— Acho que eles conseguirão outro emprego, né?

— Você acha? — perguntou Seu Joaquim sarcástico. — Meu jovem, eu que sou velho sei que isso é furada, e olha que eu aprendi ontem a como ver um vídeo no Youtube.

— Eu consigo ouvir vocês lá da cozinha — disse Aline. — Além do mais, pai, essa privatização vai gerar muitos empregos novos.

— Sim, mas e os que serão demitidos? Trocará seis por meia dúzia, minha filha.

— Pai, podemos ir comer, por favor?

— Tudo bem, vamos. — concordou Seu Joaquim. Mas quando ele se levantou, ouviu uma moto encostar na frente da sua casa.

— Eu vejo quem é — disse Joaquim indo em direção à porta.

Quando ele voltou para dentro, já estavam todos à mesa.

— Quem era, meu velho? — perguntou Marta.

— Era o carteiro com nossos boletos. — respondeu Joaquim olhando torto para Jonatan.


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Texto de autoria de  Márcia Derbli Schafranski , professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficien...