segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Carta póstuma

Texto de autoria de Lívia Kim Philipovsky Schroeder Reis, bacharel em Direito, analista judiciária da Justiça Federal do Paraná, Brasília (natural de Ponta Grossa). 

Postado no Portal aRede em 28/09/2022, no Portal CulturAção em 08/02/2023, e publicado no Diário dos Campos em 26/10/2022.

Há exatos 150 anos, deixei minha terra natal, Viena, na Áustria, rumo a um novo país, com melhores oportunidades e alheio às guerras que assolavam a Europa. Ansiava estar longe do cenário de tantos acontecimentos trágicos. Sabia que não poderia apagar a dolorosa reminiscência que insistia orbitar meu coração e mente, mas me animava a ideia de ressignificar a vida com memórias mais felizes.

Depois de passar meses em um hospital de sangue, devido a feridas contraídas na guerra, onde vi sucumbir amigos e familiares; depois de perder meu pai, que não resistiu após longo tratamento em um manicômio; e também vivenciar o passamento de minha mãe, abatida pela tuberculose quando eu tinha apenas 10 anos, minha alma clamava um recomeço.

Ouvi então falar do Brasil, onde se instalava uma incipiente, mas promissora estrutura ferroviária, que bem serviria ao meu propósito como engenheiro agrimensor. Deixei a Europa sem saber o que esperar desse novo e desconhecido país. Não tinha planos bem definidos, mas àquela altura, com pouca idade, mas muita bagagem de experiências acumuladas, senti-me aberto e liberto; apto a iniciar esse novo capítulo. O que seria feito dali em diante não competia a mim, mas às casualidades que somente a mão invisível do destino, paulatinamente, viria a revelar.

Depois de idas e vindas em ferrovias pelo Brasil, conheci a princesa. Não me refiro à compatriota, princesa Leopoldina, mas sim à princesa dos Campos Gerais, minha estimada Ponta Grossa, local onde, finalmente, pude construir um lar. O que vivi nesta cidade bem daria um livro, mas creio que um parágrafo pode resumir.

Foi aqui que conheci e casei com uma mulher que compreendeu e aceitou toda minha complexidade. Não preenchia ela o ideário de esposa frágil, calada e submissa, mas era justamente esse tipo de alma, inquieta e desafiadora, que me completava.  Foi aqui que plantei o eucalipto que até hoje adorna o bairro de Santa Terezinha e por meio do qual pude materializar o trabalho que, de minha mão brotou, em auxílio à construção dessa cidade. Por fim, foi aqui que deixei minha descendência e transmiti meu legado mais rico. Por intermédio dela, nas palavras da minha dileta Anita, pude ver no papel, a expressão da virtuosa paisagem que também eu contemplava; o sentimento que dela transcendia, que eu  também compartilhava:  “Nesta terra é assim: quando termina o dia, uma mão invisível, misteriosa, pinta onde acaba o céu, e com as tintas que quer, Pinta tudo que há de emocionante”.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

A casa

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa. 

Postado no Portal aRede em 21/09/2022 e publicado no Diário dos Campos em 08/11/2022.

A casa foi vendida a preço quase vil para uma incorporadora que pretendia arrasar o quarteirão para explorar ali um estacionamento. A crise na construção civil, a reboque da baixa das commodities e da majoração do preço do aço, trouxe o mercado para o fundo. Durante algum tempo a casa ficou como estava; depois os invasores percorreram os seus cômodos, furtaram a porta de alumínio e os gradis, puxaram a fiação, grafitaram seus codinomes nas paredes, depredaram tudo.

Mas, antes, houve vários "antes". O antes de aquela casa ser mera edificação e dormitório, o antes de ser residência e habitação de pessoas satisfeitas ou não (domicílio civil e nada mais) e inclusive o antes de ser um verdadeiro lar, embora por pouco tempo.

Esse antes específico foi o dos últimos moradores ─ um lar, sim ─, mas de repente as coisas não andaram bem. Numa época qualquer, o proprietário teve um dia feliz: a sorte fugitiva veio ao seu encontro de hora em hora, no ritmo mecânico do moto-contínuo e com a regularidade dos movimentos planetários, transformando-o e transformando o seu entorno. Com a alma banhada pela gratidão, ele voltou pela calçada pensando em tomar assento no sofá, convocar os seus, dar as boas notícias e lhes dizer: "Tudo isso também é por vocês todos". Mas quando ele cruzou o hall de entrada segurando esse pensamento com as duas mãos, um leve estremecimento na atmosfera ou deslocamento imperceptível no ar anteciparam o que em seguida ficou claro: que tudo estava desfeito, aquele lugar já não seria mais seu, que os retratos cairiam das paredes, o ciclo estava findando, o mundo conhecido se degradara.

Num raio de apenas três quilômetros dali, a administração municipal já promovera o tombamento de cinco edificações históricas ─ mas não daquela casa. Por esse motivo, a memória histórica e urbanística não preservou exatamente o que aconteceu naquele dia em especial. Certo é que algo aconteceu lá, destinos foram definidos, e depois foi como no poema de Drummond: "A casa foi vendida com todas as lembranças / todos os móveis / todos os pesadelos / todos os pecados cometidos e em vias de cometer".

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Amigos do Parque

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 15/09/2022.

No sábado, dia 13, na Vila Jamil, aconteceu o 1º Encontro dos Amigos do Parque. Amigos de amigos, que também são amigos do Parque Estadual de Vila Velha. Desnecessário identificar-se, declarando o sobrenome; ser filho, filha, irmão, irmã ou neto desse ou daquele morador é apresentação suficiente. De alguma forma, eram pessoas ligadas pelo convívio naquela vila, ou amigos: Erickson e Jacqueline, da Coruja Store; Ivan e Adriely, da IDS Sports & Presentes; Marina, Maria e Alan, da Anna’s Doces; Vilmar, dos refrigerantes; Wilson Coelho, escritor do livro A História dos Pioneiros (Vila Velha), e Roselene; Lucélia, contadora de histórias, e seus familiares Liriane, Denise, Amelu e Rosa Serena, e o genro Fabrício, que, por infeliz fatalidade, não pôde inaugurar seus pulmões de recém-nascido aspirando os ares do parque; os adolescentes Caíque, Samuel, Kauan e Samira, que conheci jogando o Jogo do Tropeiro, com Silvestre Alves;  Alessandro, da Rádio Nova FM 101.7; os organizadores do evento Adriano, Ana e Kátia; e ainda a cutia, o veado catingueiro, o bugio, a lontra, a anta, a jaguatirica, o tatu pela e outro tatu, que sendo também amigos do parque não podiam faltar, ainda que por obra da taxidermia, e apresentados ao público pela polícia ambiental – os amigos fardados; e simpáticos servidores do parque.

Aproveitando a tarde ensolarada, debaixo do sol mesmo, enquanto outros se abrigavam entre as amigas frondosas (que teriam sido plantadas no local para fazerem sombra, pois antigamente ali ficava a entrada de uma fazenda de pecuária), ouvi do escritor alguns nomes muito bem ornados com sobrenomes: de Manoel Ribas e de Domingos Ferreira Pinto, o Barão de Guaraúna, primeiros proprietários, os pioneiros do parque.

Amigos “mais antigos” e até os que já estão na dimensão etérea do parque foram homenageados, e também a professora da antiga escolinha, que pôde reunir sua turminha de primeiro ano de quase meio século atrás para uma foto. Núcleos familiares compartilhavam as alegrias pequenas dos brindes sorteados, ou as grandes, como a indizível felicidade de olharem-se nos olhos ao cantarem a Oração da Família, de Padre Zezinho, portando os balões brancos da paz e da amizade.

Alheio a esse burburinho animado, passa ao largo um jovem, num passo lento de quem despediu a pressa e abraçou a amiga folga, em busca de uma amplidão favorecida pelos ventos de agosto, bem ao seu gosto, para empinar a pipa que leva consigo, cuja rabiola dançante roçava o chão, ansiosa pelo céu do parque.



segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Bolo vulcão

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 07/09/2022, e no Portal CulturAção em 21/11/2022.

        Hoje resolvi testar uma receita de bolo cocada, que vi no YouTube.  Bem, testar a receita não era bem a questão, eu tinha que testar a minha capacidade de chef com essa receita, pois terei que preparar uma iguaria para o arraiá do condomínio. Outra pessoa se adiantou para oferecer cachorro quente, que é justamente o que eu sei fazer... Então... cocada, bolo, arraiá... Melhor testar. Tão bonitinho aquele caramelo, no vídeo... Cor de... caramelo. O meu ficou... mais escuro. Ah, no vídeo sempre fica mais bonito. Minha massa até que ficou semelhante, embora eu tenha trocado o trigo por um combo de farinhas sem glúten. Desconfiei que a massa, embora bonitinha, pudesse estragar meu teste. Mas não. Saiu do forno com uma cara boa. “Deixe cinco minutos esfriando, não mais, para o caramelo da cocada não misturar com a massa”. Cinco minutos depois: o bolo não queria sair da forma... saiu... parte da cocada, ainda rebelada, acabou desgrudando e caindo de um modo... plaft, em cima do bolo. Tudo bem. Ficou meio calombuda aquela cobertura, mas... Epa! Os calombos resolveram escorregar do topo do bolo para fora e para dentro da cratera, como uma lava inCANdecente, que nada segurava, sem que se aderisse peRIgajosamente. Então lancei meu olhar condescendente para o meu bolo vulcão e decidi seguir as instruções do vídeo: “depois de desenformar, espere o bolo esfriar, antes de cortar”. Praticamente frio, decidi cortar, para testar a rigidez da lava. Rígida. Mas cortável, se utilizada a estratégia adequada, usando uma faca, e com FORTE pressão e rebolados cortantes. Terrivelmente doce. Mastigável por fortes mandíbulas. O gosto daquela lava-cocada me lembrou a cocada puxa-puxa que um cocadeiro vendia na saída do Regente, diretamente da fôrma em que fora preparada. Deliciosa, com pedaços grandes de coco, que eu adorava. Ele também cortava com uma espátula afiada que rebolava ao cortar. Porém, aquela cocada não vinha despencando de cima de uma massa fofinha... como a massa do meu bolo vulcão, incapaz de resistir a tamanha pressão e rebolado. Meu olhar condescendente ainda não estava a ponto de julgar o teste um perfeito desastre, apesar do rombo causado pelo corte esmigalhador: o sabor estava ótimo, nem parecia massa sem glúten, se me entendem. Esperei a hora do café para saborear meu bolo vulcão depois do resfriamento total da lava. Pense numa cocada-lava resfriada, virada numa rocha vulcânica... ao redor de uma cratera rombuda de massa fofinha...

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...