segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Caderno de receitas

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 30/10/2021, postada no Portal aRede em 24/11/2021, e no Portal CulturAção em 12/10/2022.

Quase totalmente azul, não fossem os pés e os puxadores das gavetas serem pretos, aquele armário de cozinha permaneceu estático e útil, no mesmo canto, por muitos anos. Móvel simples, composto por duas portas e duas gavetas. A tela de arame na metade superior das portas ventilava seu interior. Não havia geladeira e o armário, resignado, executava as duas funções: acomodar as louças e proteger os alimentos embora sem refrigeração.

Numa das gavetas os talheres. Na outra a toalha de mesa e o caderno de receitas. Com sua capa xadrez, folhas amareladas, esparsas manchas de gordura e alguns pingos de massa, provavelmente de cuca de banana, ele sobrevivia. Receitas registradas com letra caligráfica, a data e a identificação de quem a compartilhou, geralmente um parente, uma comadre ou vizinha. Sequilhos, pudim de mandioca, bolo de fubá, cabrito assado com batatas, costela na cerveja, empadão... O caderninho deitava sobre o trigo espalhado na mesa de madeira, que hoje seria chamada de “ilha”, dividindo espaço com o açúcar, fubá, ovos, fermento, margarina e logo um cheirinho bom tomava conta da casa quando a forma deixava o forno do fogão Econômico.

Assar alcatra e linguiça aos domingos era um costume que perdura. Era imperioso que a linguiça fosse do Açougue do Adi, a mais famosa da cidade, acompanhada de várias saladas. Ainda se podia consumir palmito in natura que os caminhoneiros traziam do litoral para a capital e cidades do interior. Após uma fumaceira num barril metálico no quintal, usado como churrasqueira, a carne era servida e o domingo se iluminava.

Alcatra é um corte nobre, carne macia e suculenta. Junto ao osso, um naco do filé mignon ainda mais macio. Entrelaçada num espeto tridente, a carne esticada era levada a assar no calor da brasa incandescente. Ao ser servida no próprio espeto, em pé sobre a mesa, formava uma cortina densa que se interpunha entre as pessoas dos dois lados da mesa, mas que logo se tornava transparente e esfarrapada. Ninguém ouvira falar em Pavlov e nem sabia o que era reflexo condicionado. A “baba” era aceita naturalmente.

Ponta Grossa não possuía um prato típico para chamar de seu. Foi assim que numa decisão coletiva e oficial, elegeu-se o “Alcatra no espeto” como o prato típico ponta-grossense. O tempero dessa perdição gastronômica estava anotado naquele caderninho de receitas.

 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Dom Afonso

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

 Postada no Portal aRede em 17/11/2021.

De repente, numa manhã cinzenta, últimos dias que precediam o outono, uma mensagem chega pelo celular: “Comunicamos aos nossos clientes que hoje encerramos as atividades do Restaurante Dom Afonso”. Como assim? Por quê? E a resposta vem rápida, quase atropelando a pergunta: deve ter sido a pandemia! A cruel pandemia foi a causadora culposa da melancólica notícia que surpreendeu a todos.

Resistiu a tantos decretos de abre e fecha, todos os dias uma nova resolução, proibição de atendimento presencial, só delivery, volta ao atendimento presencial com público reduzido, entrega de marmitas na porta do fundo, renda caindo... quanta angústia, quanta incerteza, preocupação com a equipe de funcionários...  Até quando resistiriam?

Os moradores do Jardim Carvalho estavam acostumados a frequentar aquele endereço na Avenida Monteiro Lobato, antes mesmo da instalação do restaurante. Havia ali um mercado que fornecia os itens necessários para a vida cotidiana, inclusive um açougue no fundo da loja. Era o melhor mercado do bairro, tocado pela Família Serenato.

Lembranças da Monteiro Lobato da época, rua de mão dupla, trânsito tranquilo, estacionamento em qualquer calçada. Velhos tempos, belos dias! A instalação da loja de uma grande rede de supermercados nas proximidades, a poucas quadras, carreou a maioria dos clientes, ávidos pela novidade e por preços mais atrativos; e o pequeno mercado foi engolido pelo grande. Fechou as portas.

Uma centelha ficou adormecida após a derrocada e, anos depois, a filha Priscila reacendeu a chama criando um restaurante naquele espaço e dando a ele o nome de seu avô, numa carinhosa homenagem. Apesar da luta diária, perdeu a guerra para um inimigo invisível mas muito forte, e sucumbiu a ele. O mesmo triste fim do mercado de seus pais. Assim como o vírus leva à falência de múltiplos órgãos e o paciente vai a óbito, a falência de múltiplas empresas está se tornando uma constante nos dias atuais.

Aos frequentadores do Dom Afonso era dado acolhimento simpático e familiar que gentilmente convidava-os a apreciar a deliciosa comida caseira que era servida no seu buffet self-service. Empresa bem administrada, protocolos rígidos de higiene, decoração agradável, ambiente que convidava a voltar. Por quase duas décadas, foi o caminho tomado por aqueles que queriam fazer uma refeição sentindo-se em casa. A saudade já nasceu e responde à chamada: Dom Afonso! Ausente! Esperança! Presente!

 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A igreja dos ateus

 

Texto de autoria de Rogério Geraldo Lima, empresário, redator e radialista, Palmeira.

Postada no Portal NCG.news em 14/10/21 e no Portal aRede em 10/11/21, publicada no Correio Carambeiense em 16/10/21 e no Diário dos Campos em 13/07/2022.

 

Operários pobres e, invariavelmente, condenados à pobreza podem trabalhar na construção de bancos e prédios luxuosos, sem contradições. O que pode gerar contradição aconteceu em Palmeira, precisamente na localidade de Santa Bárbara.

O ano: 1922. Personagens: cinco italianos, os irmãos Cafiero, Eliseo e Spartacus Corsi e os irmãos Alfredo e Emílio Dusi, descendentes de italianos da experiência anarquista da Colônia Cecília, ateus por convicção. Foi o quinteto que conduziu as obras de construção da igreja da localidade, habitada por imigrantes poloneses e seus descendentes, fervorosamente católicos.

Como a velha igreja de madeira, construída 30 anos antes, já se mostrava acanhada para acomodar os fiéis visto que a comunidade crescia , por iniciativa do padre Teodor Drapiewski 60 famílias assumiram o compromisso de colaborar na construção de uma igreja nova, maior e em alvenaria. Assim que o templo de madeira foi demolido, começou a obra da nova igreja, em março de 1922, sob a regência dos italianos ateus.

Em regime de mutirão chegavam ao local carregamentos de pedras, tijolos, areia, cal, madeira e telhas transportados em carroças e carroções. Em meio às obras, padre Teodor foi compulsoriamente transferido para Curitiba sob suspeita de mau uso dos recursos para a construção da igreja. Em substituição, chegou o padre Estanislau Cebula, que deu continuidade às obras. Mesmo inacabado, o novo templo era frequentemente utilizado para celebrações religiosas, inclusive casamentos.

A igreja foi construída seguindo o estilo arquitetônico tradicional dos templos poloneses, com uma torre frontal alta e em formato de cruz. No altar-mor, a imagem de Santa Bárbara. Acima dela, o quadro de Nossa Senhora de Czestochowa, considerada rainha e padroeira da Polônia.

Com a obra declarada concluída, um fotógrafo foi chamado para registrar o fato, imortalizando a imagem que mostra o novo templo e, à frente dele, os construtores: os Corsi e os Dusi.

Em dezembro de 1922 aconteceu a inauguração da igreja, com ato solene e presença de inúmeras pessoas, incluindo visitantes vindos de diversas comunidades da região. Os padres Teodor e Estanislau celebraram a missa. Foi um dia de festa e de comemoração para a comunidade católica de Santa Bárbara, mas os construtores do novo templo não compareceram. Certamente comungavam a alegria de beber um bom vinho, comprado com o dinheiro que ganharam honestamente construindo a igreja, dando vazão à sua alegria por mais uma obra concluída.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Futebol, férias, músicas...

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica, escritor e jornalista aposentado, residente em Curitiba.

Publicada no Diário dos Campos em 06/10/2021, postada no Portal aRede em 03/11/2021 e no Blog da Mareli Martins em 21/01/2022, lida na Rádio Clube em 21/01/22.

Futebol. Sete anos. Decisão entre Operário e Coritiba. Estádio abarrotado. Cigarro aceso no braço e choro de dor. O pai sócio, após um jogo, quis acertar soco no juiz ladrão na hora de embarcar no ônibus.

Mais tarde, pai ex-sócio, assistir agora só passando com um adulto ou esperar a liberação no intervalo. Bonito em campo a mistura do preto e branco do “graxeiro” e o preto e vermelho do “pó de arroz”. Clássico Ope-Guá no Paula Xavier. Bandeiras rubro-negras tremulando na torcida da casa. Paixão instantânea. Depois o coração ficou tripartite, dois terços em preto e vermelho.

Copa de 70. No auditório da Jota-2, Tv colorida para ver o Brasil. A cada gol canarinho, uma explosão de gritos. Os 4X1 na Itália foi na casa de um colega da 4ª série do Regente. Quando acabou, o pai dele nos aboletou na Kombi e fomos para a rua. Descemos a Balduíno Taques viramos na Avenida. Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, no meu coração...

Dezesseis anos. Cortei torinhas de lenha, ajudava um sujeito a fazer carretos num velho Chevrolet e vendi laranja na rua. Saía de São José com uma gaiota (caixote de madeira sobre duas rodas revestidas com tiras de borracha). Fiz freguesia na Vila Liane e Vila Estrela. Gritos na rua, palmas nas casas conhecidas. Com o dinheiro paguei inscrição e comprei passagens para ir a Curitiba prestar concurso para a Aeronáutica. Fui estudar fora.

Férias de duas semanas em julho, dois meses e meio na virada do ano. Toda tardinha ia ao centro. Às vezes, filme no Império. No domingo, programação melhor no Ópera ou no Inajá. Ao lado do Império marcava ponto para tomar uma Cuba Libre.

Para subir na vida, férias e curso de datilografia duas vezes por semana. O tec-tec das máquinas de escrever e no rádio o desfile das mais pedidas.  No topo “Eu disse adeus”, do Roberto e “For once in my life”. Quase meia-noite, último ônibus para a Palmeirinha. No ponto final, ruas escuras, subir uma ladeira de pedras traiçoeiras e atravessar campo no Nossa Senhora das Graças.

Ponta Grossa triplicou a população. Tem shopping, beleza na Catedral, arranha-céus, o Fantasma faz propaganda e orgulha a cidade. Os mistérios de Vila Velha são revelados de modo diferente; a Furna só de cima. Tomara que a Lagoa ainda seja dourada ao entardecer.

Princesa dos campos ou rainha? Filho da segunda, amante da primeira, sonho com grande festa de 200 velinhas. E canto com Timóteo: Se algum dia à minha terra eu voltar, quero encontrar as mesmas coisas que deixei...

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...