segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A Bomboniere Aurora

 

Texto de autoria de Carlos Mendes Fontes Neto, Engenheiro Civil, Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 04/11/2020, lido na CBN Ponta Grossa em 11/11/2020, postado no Portal aRede em 25/11/2020.

Quem se lembra da Bomboniere Aurora?  Ficava próxima do Campus Central da Universidade, lá pelos idos das décadas de 70, 80 do século passado. Bem ali onde a Júlio de Castilho cruza a Cel. Bittencourt.  Local de matar o tempo entre as aulas, e de quebra atrair a vizinhança que ali achava socorro para alguma necessidade de última hora.

Era um prédio térreo de esquina, nos moldes antigos, com mansardas no telhado, e com uma pequena panificadora tocada pelo marido da proprietária, D. Mafalda. Apresentava um balcão com gêneros de primeira necessidade, doces, chocolates e num canto um charmoso balcão revestido de fórmica marmorizada, cujos bancos lembravam drugstores de filmes dos anos 50, onde eram servidos lanches. 

E ali na pontinha do balcão, sempre uma pilha do Ponta a Ponta, misto de folheto literário e agenda das lides culturais, onde navegavam talentos que despontavam na escrita local, de circulação gratuita. Afinal a Bomboniere também era cultura.

A Bomboniere Aurora reinava soberana na vizinhança, nessa época ainda pacata. Vizinhança composta de famílias e algumas repúblicas de estudantes. Alguns personagens, bastante peculiares, compunham esse entorno. Tais como a velhinha chamada por todos de D. Boneca, mesmo que em nada lembrasse uma, que morava de frente para a Bomboniere e podia sempre ser vista controlando o movimento. Pouco acima, na Cel. Bittencourt, a casa de D. Jovina, simpática senhorinha que sofria com grandes nevralgias e usava sempre uma manta de lã enrolada na cabeça, pois achava que isso atenuava os sintomas. Comandava um pensionato para estudantes, abrigando quase exclusivamente estrangeiros. Eram bolivianos, peruanos, paraguaios, salvadorenhos, todos irmanados sob o mesmo teto. Mais acima, em uma casa de fundos, uma circunspecta família ucraniana de Prudentópolis. Na quadra de trás da Bomboniere, uma austríaca de Viena instalada numa casa paranista, cuja estranha característica era ter sempre as janelas venezianas cerradas, ao lado da Luterana, onde se ouvia às vezes o ensaio em alemão do coral.

Quase uma Nações Unidas nos Campos Gerais!

O tempo correu e a Bomboniere não existe mais. No seu lugar, mais um espigão! A casa paranista cedeu lugar a um terreno baldio, D. Boneca não espia mais o movimento, os estudantes estrangeiros há muito retornaram aos seus países, engenheiros, farmacêuticos, dentistas... Quem passa hoje pela esquina onde ficava a Bomboniere não imagina a riqueza humana e a pluralidade que por ali existiu.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Café em copo americano tem gosto de corrimão de casa de polaco

 

Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 23/12/2020, publicado no Diário dos Campos em 27/01/2021.

A casa de madeira, em meio à selva paranaense de sobreviventes araucárias, exalava odores com notas amadeiradas e ecoava os sons do ovo que espirrava ao ser frito. Um gavião gritava na janela acima do telhado. Assim como gritava em torno da casa há intermináveis três horas.

A acústica da casa de madeira deixava o “canto” impregnar todas as paredes e estremecer os sonhos dos moradores. O segundo andar da casa sempre era, ainda, inundado pelos cheiros alimentícios de temperos abrasileirados; mas, principalmente, de alho e cebola. Refogados no óleo quente, até que transparentes e dourados estivessem prontos para fundirem seus aromas nos sabores.

Em casa de polaco, tudo tem: passarinho disputando terreno consigo mesmo, cachorro latindo para formiga, formiga roubando as últimas migalhas, repolho colhido da horta do vizinho e café com gosto de “pão-chinelo”, ou no mínimo, de corrimão.

Sofia descia as escadas, encantada pelos cheiros. O disco de vinil rodava rangendo e cantando. As tábuas do chão resmungavam ante os passos.

A casa vibrava os sons do dia nascente, uma canção antiga gravada na superfície do long play e anedotas sobre acontecimentos triviais. Ela também absorvia o cotidiano. O subir e descer constantes da escadaria ficavam, então, gravados no corrimão. Assim como os sons, no vinil. O movimento, na madeira. Também o café, moído recentemente, absorvia toda a atmosfera sempre viva de uma casa interiorana de descendentes poloneses.

Barulho oco de copo de vidro batendo levemente na superfície da mesa. Os dedos de Sofia envolvem o copo americano, que é preenchido com café puro. Simultaneamente, o ovo frito pula para o seu prato de sobremesa (que anarquicamente é utilizado para todo tipo de refeição). Gema dura, como sempre. Os olhos? Fechados, para degustar o gosto de corrimão: piadas constantes, resmungos de braveza diante da fome, cansaço de um dia laborioso, beijo da sobrinha, lambida de cachorro, cheiros vindos do forno, briga de irmãos, sapo na varanda, “chinelada” de mãe, manhã de Natal.

Nada é mais brasileiro do que um copo americano, repleto de histórias miscigenadas.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Cores de outubro

 

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Publicado no Correio Carambeiense em 17/10/2020, postado no Portal aRede em 16/12/2020.

Chega o ano de 2020. No coração de todos o desejo de atingir metas, de realizar projetos, de sonhar sonhos. Aquela viagem há muito planejada não sai da cabeça, a festa de 15 anos da menina, os churrascos de domingo. Plano de conseguir o primeiro emprego, buscar uma promoção por mérito, a aposentadoria depois de cumprir o tempo de trabalho, uma cirurgia necessária. O intuito é sempre o de ser feliz, resolver as pendengas do ano anterior e seguir a vida como ela sempre foi. Continuar aspirando a novas oportunidades, o casamento marcado, ter o primeiro filho ou o segundo para ser companheiro do primeiro. Ah, quantos sonhos lindos! Mal sabíamos que uma pandemia invadiria nossa vida e, maldosamente, rasgaria nossa lista de desejos traçados no primeiro dia do ano. Não se apresentou a ninguém, não pediu licença para entrar. Veio de roldão, tomando a todos de assalto, fazendo-nos reféns no cativeiro. Com sua mão rude riscou nossos planos da agenda, agora abandonada no criado-mudo.

Já é outubro e o ano de tantas mudanças está terminando, mas a esperança não. O comércio, tão prejudicado pela pandemia, começa a tirar a cabeça pra fora d'água. Exibe decorações de Natal em suas vitrines e as crianças fazem seus inocentes pedidos ao Papai Noel: carrinho, bolas, bonecas ou um celular. As cores deste outubro foram inesperadas. O laranja avermelhado dos incêndios implacáveis e destruidores, os múltiplos tons de cinza da fumaça das queimadas, o azul-claro do céu sem nuvens de chuva. Campos Gerais em alerta! Cores de coisas que chocam e preocupam. Quase esquecemos de que estamos em plena primavera no Hemisfério Sul. Esticando o olhar para qualquer lado onde a vista alcance, a cor dos ipês floridos enfeitando praças, ruas, jardins e quintais.  É a estação mais bonita e colorida do ano.

Para as mulheres o mês de outubro tem mais uma cor, o rosa. Um movimento internacional criado em Nova Iorque, em 1990, visava alertar para os cuidados na detecção e no tratamento do câncer de mama, denominado “Outubro rosa”. A primeira ação no Brasil aconteceu somente em 2002 quando o obelisco do Parque Ibirapuera foi iluminado de cor-de-rosa. Aos poucos a campanha obtêm resultados mais efetivos, com a conscientização de que a doença é fatal, porém tem grande potencial de cura desde que constatada precocemente. Outubro ainda reserva outras cores no dia da padroeira do Brasil. A imagem da santa negra, com o sol dourado a pino, recebendo acenos de lenços brancos.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Amor ucraniano

 

Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Publicado no Correio Carambeiense em 10/10/2020 e no Diário dos Campos em 14/10/2020, postado no Portal aRede em 10/12/2020, lida na CBN Ponta Grossa em 23/12/2020.

Chegava o Circo Rivero aos Campos Gerais em 1935. Com a prerrogativa de transformar dilacerantes lembranças em sorrisos, lamentos em gargalhadas, Michel (o trapezista) tinha um sonho que concretizava todas as vezes que desafiava a pungente gravidade a alguns metros do chão, voando entre cordas. Mesmo nas atividades administrativas, sentia-se realizado. Fugira da Ucrânia cinco anos atrás, abandonando língua, costumes e amores. Sua alma repleta de cicatrizes e perdas buscava na euforia da plateia remédio para sua dor.

Francisca, 19 anos. Noiva há sete meses. Havia acordado naquela manhã primaveril de 1935 com estranha alegria pairando juntamente ao aroma de café recentemente coado. Colheu flores amarelas no campo. Levou-as até seu trabalho, na Padaria Glória. Entre comentários dos clientes, soubera da novidade: um circo argentino chegou à cidade. Animou-se e pensou no circo durante todo o dia. Trigo, ovos. Sova o pão. Deixa crescer. Abre a massa. Sua imaginação era acariciada por suaves promessas de diversão enquanto cumpria suas funções, planejou levar sua irmã mais nova. Voltou ao balcão para a venda de suas deliciosas panificações.

Seis e meia da tarde. O sol já havia deitado atrás das colinas verdes e macias, dando lentamente vez às estrelas. Fila. O vestido florido de Chica somado aos brilhos de seus olhos repletos de expectativa destacavam-se na multidão. “Buenas noches”. Chica somente sorriu, timidamente. Como flor simples, que entre capins arredios atreve-se a florescer; atrevida alegria inundava o íntimo de Michel.

Foi necessário um tímido sorriso que transbordava o que habitava em Chica, uma alma florida, para que toda a Primavera brotasse em Michel. Com a Primavera, vinham as borboletas. Seriam as borboletas as responsáveis por emudecer a razão?

Michel imantado pelo magnetismo de Chica, acompanhou com seu olhar todos os gestos doces da jovem alemã. Chica, por sua vez, não tão timidamente, observava-o quando sabia-se não vista – capacidade de dissimulação inata às mulheres.

Findo o espetáculo, as centenas de palmas ecoavam na mente de Michel como tambores que rufam ao antevir do toque da amada. Trocou-se rapidamente para outros “buenas noches” oferecer à Chica. Mas ofereceu-a uma fuga à Argentina.

Na manhã seguinte, Michel apareceu na padaria antes mesmo do amanhecer para buscar Chica. E os Campos Gerais foram palco do começo desse amor ucraniano, um pouco “porteño” e que durou uma vida. Tudo por um “boa noite” e um sorriso.

Emergência na costura

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Minha mãe nã...