segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Pra lá da ponte

Texto de autoria de Alfredo Mourão de Andrade, aposentado, mediador de leitura e contador de histórias.

 Lida na Rádio Clube em 03/12/21, postada no Blog da Mareli Martins em 04/12/21, publicado no Correio Carambeiense em 04/12/21 e no Diário dos Campos em 15/12/21 .


 “Expandir-se é a própria alegria de viver”, comentou Clarice Lispector em sua escrevência intimista. Pois esse expandir-se me fez atravessar a ponte-viaduto do Bairro Contorno, que prefiro chamar somente “ponte” (é mais charmoso!), unindo a cidade grande e a cidade satélite, ansiando expandir oportunidades intimidadas pelo corre-corre da excessiva urbanidade, para fixar moradia temporária. Uma casa simpática, cara de “casa de vó”: cumeeira alta, calçadas de coloridos cacos de azulejos, quintal com árvores frutíferas, copos-de-leite e sorridentes celósias multicores, perfumosas macegas de hortelã, espinafres rastejando folhudos tentáculos sobre a terra fofa...

Pra lá da ponte reencontrei afetivas memórias bairristas, saudosas algumas, repaginadas outras: o carro de quinta mão, cheirando óleo queimado, do hábil “consertador de coisas” ─ fogões entupidos, panelas amassadas, facas danificadas (ainda existe esse personagem sexagenário?!)... o apito marcante do sorveteiro, em floreios musicados, oferecendo gelados sabores artificiais... quitandas coloridamente perfumadas a instigar os instintos... gente batendo de portão em portão, vendendo de tudo um pouco, um pouco de tudo... gente fanzaça de um sacolejado sertanejão... deliciosos pastéis da Igreja de Guadalupe em sábados de bazares e usados, vendidos a “preço de banana”... gritero da piazada na agitada volta das escolas... cheirinho gostoso de comida caseira invadindo janelas e portas... sorrisos fartos... simplicitudes contagiantes.

Pitangueiras avermelhando gostosuras... sabiás sedutores despertando o alvorecer... furrupa da cachorrada em coro... saborosas sonoridades nas afiadas matracas e no rouco cantochão ambulante (─ Algodão doce! ─ Casquinha!)... futrica da passarinhada no arvoredo ao entardecer em franca competição com o conversê animado das vizinhas entre muros e trepadeiras... inebriante perfume das floradas... criançada de bem com a vida, livres e leves e soltas, no pega-pega das ruas tão tranquilas e tão diferentes das ruas do outro lado da ponte (alegria não se disfarça, se expande!).

Porque, pra lá da ponte, podem acreditar, acolhidas são efusivas, escutas calorosas, afetos solidários... Das oportunidades que a vida nos oferta, quero displicentemente, expandir-me em possibilidades!

 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Quem rouba os nossos sonhos?

Texto de autoria de Francielly da Rosa, professora da rede municipal de Ponta Grossa e estudante de Letras na UEPG.

 

Postada no Portal aRede em 15/12/2021 e no Portal CulturAção em 18/05/2022, publicada no Diário dos Campos em 09/03/2022.


Era um dia ensolarado, dia comum e rotineiro para todos, menos para mim, pois depois deste dia nunca mais fui a mesma pessoa. Como bem sabemos em nossa cidade, mas não apenas por aqui, encontramos muitos andarilhos, pessoas que por diversas circunstâncias fazem das ruas lares e perambulam por aí. Neste dia em questão encontrei esta personalidade insólita, Dani, pelo menos é assim como a conhecemos aqui na região de Oficinas.

Todos os dias, sentada ao lado do supermercado Tozetto, ela acompanhava a rotina dos passantes que transitavam por ali, cumprimentando as pessoas alegremente. Dani já me conhecia, mesmo que pouco, pois eu usualmente fazia aquele percurso e neste dia cumprimentando-a como de costume me detive mais um pouco quando ela lançou certas palavras objetivando prolongar o diálogo.

Atrasei os passos, voltando alguns, e parei em sua frente para ouví-la. Confesso que fui pega de surpresa já que nunca havia conversado com ela, além dos cumprimentos de sempre. Entre os diversos assuntos abordados algumas palavras em especial me chamaram atenção, incitando em mim tamanha reflexão, mal sabia ela.

─ Pois é, menina! A vida da gente às vezes vira de ponta cabeça, sabe? A gente pensa uma coisa, planeja, mas aí parece que vem uma coisa, sabe? Tipo um furacão e leva tudo embora. Parece que a gente não pode sonhar! É! A gente não pode sonhar! ─ disse ela.

Pela primeira vez não soube o que dizer.  Vi-me a reclamar diante de diversas situações da vida e de repente meus “problemas” não eram nada. Lembrei-me das vezes mencionadas por ela em relação ao tratamento que recebia das pessoas, os olhares e caminhos desviados. Nos detivemos por algum tempo neste diálogo que terminou com motivações e sorrisos. Segui meu caminho com suas palavras ecoando em minha mente. “A gente não pode sonhar!”. Assim como ela, tantas outras pessoas, em condições iguais ou não, devem se fazer este mesmo questionamento. Se nós não podemos sonhar então me pergunto ─ Quem rouba nossos sonhos?

 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

O Bielinha

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 20/11/2021 e no Diário dos Campos em 26/01/2022, postada no Portal aRede em 22/12/2021.

Minha Carteira de Trabalho contém a prova: com quinze anos de idade eu trabalhei no setor de polimento da Metalúrgica Santa Cecília, empresa da qual o trigésimo quarto prefeito de Ponta Grossa, Dr. Luiz Gonzaga Pinto, era sócio proprietário e diretor.  Não durou muito minha lida com bielas, anéis e outras peças que saíam das minhas mãos inexperientes. Acabei desistindo, com medo de “matar” mais peças do que poli-las, mesmo após um fato ocorrido nas vésperas das férias coletivas, às quais eu nem fazia jus plenamente. Na confraternização oferecida aos funcionários, regada a refrigerante com cachorro-quente, e com discurso do diretor, eu ouvi pela primeira vez a expressão “não dar o peixe, mas ensinar a pescar”. Na minha ingênua adolescência, isso me pareceu a melhor frase para se dizer a qualquer jovem. A imagem de um adulto experiente, se prontificando a ensinar um novato a “pescar”, não um peixe, mas o seu ganha-pão, me veio à mente como se fosse uma missão sacerdotal (hoje, essa frase me causa estremecimento, pois imagino as pessoas que a ela se referem, entregando a um pobre coitado um manual de pesca, uma vara de pescar, sem nenhuma isca, e o abandonando às margens de um rio podre). Apesar da frase sacerdotal, alguns dias após o retorno ao trabalho, eu me demiti. O ambiente do setor de polimento não era o cenário idealizado por mim. O ideal eu havia descrito, antes de conhecê-lo, num conto que escrevi para O Bielinha, um periódico, que minhas irmãs, funcionárias do setor administrativo, ajudavam a redigir. Não tenho nenhum arquivo do conto, nem me lembro do título. Inspirei-me em um fato que havia circulado pela fábrica como misterioso, relatado por minhas irmãs: haviam encontrado algumas peças ainda sem polimento no encanamento de esgoto de um banheiro. Criei um apólogo, cujo enredo apresentava o encontro de um anel e uma biela, que, num curto e idílico momento, cada um em sua bandeja de transporte para o setor de polimento, haviam se apaixonado. Cientes de que partiriam, após o procedimento, para destinos desencontrados, os apaixonados optaram por uma fuga, saltando das bandejas, tentando interferir em seus infelizes destinos. Uma aventura que acabou num trágico “afogamento” nos esgotos da fábrica.

            O contador da empresa, Sr. João Teles, apreciou a narrativa e efetivamente tentou me ensinar a pescar: emprestou-me, por intermédio de minha irmã, alguns livretos que ele próprio gostava de ler. Pesquei neles com muita satisfação.

 

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O beijo do fim

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Lida na Rádio Clube em 12/11/21, postada no Blog da Mareli Martins em 12/11/21 e no Portal aRede em 08/12/21, publicada no Correio Carambeiense em 13/11/21.

Festinha de garagem simples, comum na Ponta Grossa dos anos setenta, animada com um toca-discos sem DJ, refrigerantes e petiscos. Cada um que estivesse perto se mobilizava para trocar o vinil e engolir um petisco.

A adolescente, vencendo a timidez, convidara para o seu aniversário o menino que ocupava todos os confins de seus pensamentos e fazia vibrarem as fibras estreantes de seu coraçãozinho tomado de assalto pela puberdade.

Aos domingos, o “point” da época, no Bairro Oficinas, eram as matinês do Cine Teatro Pax. As moças chegavam cedo, pois queriam estar acomodadas, “guardando” poltrona ao lado, para os “paqueras”. As escadarias de entrada, por onde os viam entrar, desembocavam, como até hoje, bem à frente dos blocos de poltronas com assentos acolchoados e braços separando umas das outras. Torciam para serem vistas logo, pois aquele subir e descer de “paqueras” pelas alas entre os blocos podia levá-los para outra poltrona “guardada”.

Certo domingo, sem optar por subir e descer pelas alas, ele viera sentar-se ao lado dela como uma abelha vai a uma flor que exala um perfume de néctar. Num momento despretensioso, disputara com ela o apoio de braço da poltrona e deduziu: “Não sei se é meu ou seu, pois está entre nós dois... Podemos ser sócios?” E tomou-lhe a mão, sem mais nem menos. O coração dela quase parou. O filme podia ter sido uma lembrança que ela jamais esquecesse, mas tinha esquecido de prestar atenção, nem sabia que filme era. Quando o filme, fosse qual fosse, acabou, ele se despediu amavelmente, e foi ao encontro de amigos.

Nem acreditara que ele viria à sua festinha, mas estava lá. Chegara bem tarde, com uns amigos, quando outros já estavam indo embora. Antes de ir embora também, achou que podia conceder uma dança à aniversariante... Talvez valesse a pena conceder também um sorriso que não fosse muito comprometedor. Talvez achasse que uma menina tão tímida pudesse entender tudo errado. Havia poucas meninas tão tímidas nos anos setenta, como saber o que estaria pensando essa? Ela o acompanhou até a saída, pois ele não largara sua mão. Ao despedir-se, tocou sua boca com um beijo quase casto. E se foi.

Tudo se foi, com aquele beijo, enquanto ela quase desfalecia. Pois foi colocado em sua boca, como se coloca um bilhete embaixo da porta. O coração dela sabia que embaixo da porta não são colocados bilhetes de começo. Ela não era menina para um cara popular, disputado por garotas mais “descoladas”. Aquele era um bilhete de fim.

 

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...