segunda-feira, 30 de março de 2020

Tamancos imigrantes


Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 01/04/2020, lido na Rádio CBN Ponta Grossa em 07/04/2020, postado no Portal aRede em 13/05/2020..

Nos tempos de meus avós, aprendemos a tirar os chinelos ao sair para o quintal (quando havia chinelos nos pés para tirar...), e colocar tamancos. Aqueles tamancos que os imigrantes italianos costumavam deixar ao lado de fora da porta, perto do raspapé. A sola era uma placa de madeira malemar talhada no formato do pé, com um naco de couro cru com as extremidades pregadas nas laterais, onde o metatarso se acomodava, ficando os dedos espremidos, às vezes, pois não eram confortáveis. Eram para o trabalho no quintal.  Antes de entrar em casa, o tamanco era trocado pelas alpargatas, que eram de lona, com solado de cordinhas trançadas e costuradas em caracol. Duravam a vida inteira. As pessoas compravam maior que o pé dois números. Para não ficar escapando do calcanhar, viravam pra dentro a carcanha (alguns chamavam assim a parte de trás do calçado) e as alpargatas viravam chinelos para sempre, pois ninguém se lembrava de desvirar a carcanha quando o pé crescia. Quando viam, já era o calcanhar que estava sobrando para fora da carcanha.
Eu lembro que tive um par de tamancos, quando criança. Foi um presente que eu... (pasmem!) havia pedido. Eu usava para fazer barulho na calçada de tijolos que circundava a casa. Não me lembro onde foi parar. Passou o interesse, eu não era requisitada para o trabalho no quintal... Sumiu! Devo ter perdido em algum atoleiro, na rua, quando a patrola passava para alisar os buracos, e ... batata! Chovia em cima. Quando cresci, algumas vezes ajudei no quintal. Passava os pés no primeiro par de tamancos estacionado perto do raspapé, e lá eu ia “morrer” de trabalhar no quintal. Ah! Raspapé é uma lâmina de ferro enfiada na terra, na qual as solas dos calçados eram esfregadas, para tirar a crosta de barro que o quintal perdia para elas. Sem quintal para virar a terra e plantar, sem tamancos, a vida se modernizando, perdi o hábito de trocar calçados de fora por chinelos de dentro.

Em tempos de Covid19 me atrapalho um pouco, mas estou me acostumando com a volta desse hábito antigo, para evitar de convidá-lo a entrar grudado nas solas dos sapatos de fora. Estou também usando tiara para não ter que ajeitar com a mão a franja teimosa (cabelo pode ser a mais próxima superfície para pouso do vírus, principalmente cabelo de baixinhos), que a todo o momento quer se fazer de importante, caindo na testa. Perdão. C-a-i-n-d-o na testa parece ser um toque de charme – tendo uma cãibra capilar, que creme de pentear nenhum ajeita.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Viajando pelos Campos Gerais – minha rota


Texto de autoria de Antonio Marques de Castro, Agente Administrativo da Prefeitura de Telêmaco Borba.

Publicada no Diário dos Campos em 30/04/2020, postado no Portal aRede em 29/07/2020.

Levantei cedinho, peguei as malas, que depois de dois dias ficaram prontas, e dei partida. Parti com minha tropa de 150 cavalos. Lembrei de meu falecido avô materno – que fora tropeiro. Não sem antes tomar aquele maravilhoso café expresso do “Jerusalém” (Jesus amém)! Onde abasteço “minha tropa” – esse é o ato primeiro.
Logo na saída da minha cidade, na localidade Triângulo (que não é o mineiro), uma placa anunciando a famosa rota. Saio de Monte Alegre e parto em direção às terras do Tibagi; estrada sinuosa em que não dá pra andar muito ligeiro. Devagar também se vai ao longe – muita calma, companheiro.
Numa das melhores cidadezinhas do interior do Brasil, para almoçar, recomendo “O Tropeiro”. Se for sábado à tarde, não dá para perder o café colonial do Cristal – ambiente hospitaleiro.
Pego a saída para o Guartelá, “aguar-te-lá” onde se encontra o canyon do Rio Iapó – um dos mais belos sítios arqueológicos brasileiro. Aberto a visitação de janeiro a janeiro.
Continuo firme na minha direção, passando pela “Aparição” – lembro dos causos antigos de visagem. Sigo firme rumo à cidade mãe do Paraná – levo Castro no nome o tempo inteiro. Aproveito para visitar o museu, que conta um pouquinho da história desses “velhos guerreiros”.
Lembro então, que o maior museu a céu aberto do Brasil fica em Carambeí. “Caramba” é logo ali, façamos um “paradeiro”. Sem esquecer que aquela torta holandesa é uma beleza. Quando enxergo o “Moinho”, logo à beira do caminho, me rendo ao descaminho e me curvo ao mestre confeiteiro.
Viajar pelos campos gerais é bom demais. Desse ponto em diante já se avista a “Princesa dos Campos”, onde irei repousar no “capão de Ponta Grossa” – meu novo paradeiro.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Xuxa do Calçadão


Texto de autoria de Marivete Souta, Professora, Ponta Grossa.

Publicada no Portal aRede em 25/03/2020, lida na Rádio CBN Ponta Grossa em 19/05/2020.

Hoje, ao passar no cruzamento da esquina da avenida Vicente Machado com a rua Coronel Dulcídio, o sinal fechou, olhei para o lado e senti falta do sorriso de uma figura carismática e peculiar que vinha até à janela de meu carro. Aquele sorriso sempre levava meus trocados.
 No calçadão, nos anos 90, uma moça trajando roupas chamativas como as de sua musa inspiradora – Xuxa Meneguel, a rainha dos baixinhos – iniciou sua trajetória como ícone desta cidade dançando ao som de Ilariê, entre outros sucessos.
Talvez meu olhar de poeta é que me fazia tantas perguntas ao observar aquela moça: Quem é ela? Tem família? Onde dorme? Tem um lugar para voltar quando o manto negro da noite cobrir a cidade?
Essa mania de ver como se fosse a primeira vez o que de fato ninguém vê é coisa de poeta, como disse o escritor Otto Lara Resende, porque nossos olhos se gastam, no dia a dia, opacos. É por isso que acaba se instalando nos corações o monstro da indiferença.
Mas um dia o cruzamento silenciou, eu senti falta da alegria que me acostumei a encontrar ali. Passaram-se dias, semanas, meses, até que vi no noticiário que a Xuxa do Calçadão estava doente, que a família a mantinha encarcerada em casa para preservá-la, pois ela se perdera algumas vezes nos últimos tempos. Foi assim que soube que a Xuxa do Calçadão era Dirce Maria Alves, mãe, tinha três filhas.  Agora soube até sua idade: 65 anos, e que morava no núcleo Cristo Rei. Mas nunca saberei o que sentia, pensava, sobre seus sonhos e o que a impeliu a dançar e pedir esmolas.
A mulher que ficou conhecida como Xuxa do Calçadão era a personificação da liberdade, pois essa personagem ponta-grossense agia segundo seu livre arbítrio, de acordo com sua vontade
Ela faleceu após ser diagnosticada com o Mal de Alzheimer, doença degenerativa que atinge as funções intelectuais. E como uma artista, ao som de aplausos, o cortejo fúnebre seguiu até o cemitério. Dirce, a Xuxa do Calçadão, nunca será esquecida, continua a inspirar poetas e escritores. Diferentemente do porteiro, personagem de Otto Lara Resende, que para ser notado teve que cometer a descortesia de morrer, Xuxa do Calçadão, como artista que foi, despertou curiosidade na população quando desapareceu das ruas de Ponta Grossa, a ponto de repórteres procurarem saber de seu paradeiro. Por quê? Porque um artista é singular, faz falta e nunca morre. Xuxa do Calçadão não morreu, se tornou história.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Trocadilho


Texto de autoria de Rosana Justus Braga, revisora, Curitiba (natural de Ponta Grossa).

Publicado no Portal aRede em 01/04/2020, lido na Rádio CBN Ponta Grossa em 02/06/2020.

Meu avô tinha comércio em Monjolinho, na época um pequeno vilarejo quase desconhecido de quem vivesse na capital.
Tratava-se de um armazém, daqueles que vendiam de tudo, de selas e arreios a finos tecidos, de espingardas e revólveres a quinquilharias domésticas, de conservas caseiras a ferramentas e pelegos, de atavios femininos a bornais de couro curtido. Sem falar nas tulhas repletas de cereais, as especiarias, o vinho de garrafão, o fumo de corda, as réstias de alho e cebola. E como pérola da casa, a cuca que minha avó trazia todas as manhãs, do forno para o balcão da loja.
Ali, também se vendia cachaça, o famoso dedinho de pinga que fazia a alegria de uns e a desgraceira de muita família de bem.
Assim que meu avô abria as portas, chegava a cuca quentinha, perfumada, revestindo o armazém de inusitado aconchego, um gosto de entrar ali e gastar um bocadinho de prosa, fartar-se de aromas e conversa fiada.
Pois nesse dia, minha avó cuidava da venda, enquanto o avô cochilava a sesta na varanda sombreada. Foi quando o caboclo chegou, cheio de maneiras, e quis ver os cachimbos à venda. A avó colocou a caixa sobre o balcão, já antevendo o que viria, e o sujeito deu de experimentar o fôlego de cada um, pacientemente, puxando o ar de um e outro com vontade, a boca murcha cheia de entendimento.   
Passados os dez pelo beiço entendido, escolheu, finalmente, o que melhor lhe parecera e mandou pendurar a despesa.  A avó, que a esta altura já gastara a paciência que tinha, disparou:
— Aqui não se vende fiado; se tivesse dito que não tinha com que pagar, o senhor não teria perdido o seu tempo, nem eu o meu...
Vexado, mas sem perder a galhardia, o caboclo desembaraçou-se como pôde da situação embaraçosa:
— A dona que me “descurpe”, fica o dito pelo não dito. O cachimbo, então, eu não levo, mas o pito eu levo.
Minha avó, a quem não escapavam as sutilezas da alma humana, deixou-nos esse precioso registro.

Fila de banco


Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Publicada no Portal aRede em 18/03/2020 e no Correio Carambeiense em 20/03/2021.

            Desejava conhecer o Parque Estadual de Vila Velha, sobre o qual havia lido em um folheto de turismo. Vila Velha, a cidade de pedra, a Lagoa Dourada e as impressionantes Furnas. Aproveitando o feriado de Carnaval, já que não sou apreciadora da folia momesca, desembarquei em Ponta Grossa. Depois daquele feriado prolongado, estive na agência de um banco da cidade. Havia várias pessoas na fila e mais clientes chegando. Muito calor naquele verão. Por coincidência o senhor de camisa azul à minha frente conhecia o que chegou logo depois de mim, e iniciaram uma conversa com um cumprimento ao recém-chegado.
            — Oi, Toninho. Bão?
            E o outro respondeu:
            — Tudo nos trinques. E você, caboco véio, o que anda fazendo da vida?
            E eu, entre os dois clientes, não podia deixar de ouvir o diálogo, percebendo, pelo palavreado, que ambos eram da região. Ansiava que a fila fluísse mais rápido. E o calor aumentando...
            — Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece! Você conhece a minha filha Zélia, né? Aquela magrinha, raspa de tacho?
            — Aquela que tem o nome da avó?
            — Não! A que tem o nome da minha sogra é a Filó. Está morando fora. A Zélia tem o nome daquela escritora da Bahia. Frescura da minha mulher. Coisa de quem não tem mais o que inventar. Diz que é homenagem.
            — Mas o que houve?
            — Um sobrinho da minha mulher veio do interior passar o feriado aqui em casa. E ontem eu levei a mulher, o piá e a Zélia para almoçar fora, num restaurante por quilo. A Zélia pega um pouco de farofa, duas folhas de alface e umas vinas e fica satisfeita. Sempre foi assim. Mas o sobrinho... Rapaz!!  Fez um prato tão grande que eu pensei que o piá estivesse se preparando para hibernar.
            — E daí, homem?
            — Quando fui pagar a conta, deu mais de cenzão! Acredita numa coisa dessas?! Gastei tudo o que eu tinha no bolso.
            — Não quis usar o cartão de crédito?
            — Eu nem tenho porque não me acostumo com essas coisas modernas. Hoje vim aqui buscar um dinheirinho pra semana e também para a passagem de ônibus. Quero despachar o piá pra casa dele antes que chegue o próximo domingo. Tá loco!
            O painel eletrônico anunciou o número da senha seguinte: 138. Antes de o senhor de camisa azul dirigir-se ao guichê, ainda se virou para o amigo e desabafou:
            — Tá vendo o número da senha? Foi exatamente este o preço que eu paguei no restaurante. É só comigo que essas coisas acontecem!
            E, numa marcha decidida, desapareceu atrás do biombo.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Casa do índio


Texto de autoria de Marivete Souta, Professora, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede em 04/03/2020, publicada na Correio Carambeiense em 20/02/2021.

É mais um dia de trabalho na mesma escola que me espera todas as manhãs. Nesse dia, a pressa não me acompanha e posso ir observando o que há no percurso tão curto entre minha casa e o local onde trabalho há tantos anos.
 Meu olhar segue percorrendo o entorno das ruas, passo pelo cemitério São João e penso no quão sou abençoada por poder respirar esse ar fresquinho que enche meus pulmões numa manhã cheia de nuvens, anunciando a música que mais gosto: o som da chuva. As poucas árvores que há em frente às casas já estão desfolhando para deixar espaço para o nascimento de novas flores.
Ao lado da escola uma casa me espia todos os dias, mas hoje ela me chamou para conhecê-la.
É uma casa desbotada pelo tempo, decrépita, a sujeira impera em todas as extensões que meus olhos alcançam. Percebo a fuligem, sinais que ficaram de um incêndio que ocorrera ali. A causa foi uma fogueira feita pelos esporádicos moradores que têm como cultural essa prática. O lixo se acumula por todos os lugares e o odor é desagradável, demonstrando que não há condições básicas para abrigar os fortuitos moradores.
 A Casa do Índio – alcunha que tem sua origem devido à serventia que a casa tem -, apesar de seu aspecto reprovável, é a moradia temporária de indígenas que vêm a Ponta Grossa para vender seus artesanatos.
 Hoje, pela janela da alma, vejo essa casa e me faço tantas perguntas que nunca fiz.  Tantas vezes passei por ela sem reparar que abriga fortuitamente cultura e história.
Penso no chimarrão que tanto gosto... O consumo de erva-mate fria ou quente vem dos indígenas, como também o preparo de alimentos com mandioca, milho e pinhão, como o mingau, a pamonha e a deliciosa paçoca, que me enche a boca de água, alimentos tão comuns em minha mesa.
Penso na guabiroba de sabor doce e suave. No maracujá azedinho, no butiá amarelinho. Capivara, jabuti, cutia, Goioerê, Candói, são palavras de origem indígena que me vêm à mente. Nós absorvemos sua língua, sua cultura, e esquecemos deles, de sua história, de sua contribuição cultural.
 Apesar de terem tentado apagá-los de nossa história, a cultura desse povo tão sofrido pela quase dizimação, permanece viva. É uma ideia errada pensar que são um povo atrasado e primitivo, pois onde há um indígena há cultura. O que se poderia fazer por eles? Creio que estaremos dando o primeiro passo quando pararmos não apenas para olhar, mas para enxergar.

Esqueci o meu idioma!

Texto de autoria de  Márcia Derbli Schafranski , professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficien...