segunda-feira, 31 de outubro de 2022

A alma mais virtuosa (ou: história cínica)

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa. 

Postada no Portal CulturAção no dia 16/11/2022, e publicada no Diário dos Campos em 23/11/2022.

          Uma sociedade de economia mista é, segundo os especialistas, uma pessoa jurídica regida por normas de direito privado, porém derrogadas por disposições de ordem pública, cujo capital votante pertence, em sua maioria, a um ente federativo – Município, Estado ou União. Frequentemente é um banco fundado para explorar atividade econômica.
          Um ser humano é, segundo ensinam outros especialistas, um representante da mais complexa etapa evolutiva dentre os seres vivos; o habitante de um arcabouço vertical estruturado – chamado corpo – composto principalmente por oxigênio, carbono, hidrogênio, fósforo, cálcio, enxofre e outras coisas mais. Frequentemente, falha em explorar atividade econômica e, por isso, deve aos bancos.

          João, que ainda não devia a nenhuma sociedade de economia mista, entrou em uma e pediu um empréstimo. Os funcionários dessas instituições são comumente recrutados mediante severo concurso público e se sujeitam a rigorosa fiscalização, por isso se espera deles que prestem serviço qualificado, o que veio a ser precisamente o caso, pois o portador do crachá analisou criteriosamente os papéis, realizou a respectiva análise de crédito e, ao fim, declarou que sinto muito, esse valor não dá pra emprestar.

          – O que fazemos, então?, perguntou João, que nas horas de aperto tinha a sabedoria de granjear alguma simpatia aos seus problemas valendo-se da proverbial primeira pessoa do plural.

          – Podemos penhorar a sua alma, informou o prestimoso atendente.

          – Penhorar a… alma?

          – Sim, sua alma. O mercado de almas está em ascensão, paga-se um valor até razoável – não chega ao da carne bovina ou de algum mineral betuminoso, mas exporta-se bem, se você não resgata. Aliás, vai me desculpar a indiscrição, mas a sua alma é das mais limpinhas que já vi; quando você chegou no guichê reparei logo que é das mais virtuosas que já negociei nessa cidade. Começou tarde no pecado, hein? Pouca maracutaia, uns deslizes veniais. Se casou ou juntou, separou logo, isso de morar junto, compartilhar banheiro, polui demais a alma da gente, falo por experiência própria.

          Como se percebe, um banco, não sendo constituído por hidrogênio, cálcio e etc, não chega a ser muito humano. Às vezes, é só enxofre.

          João assinou o contrato, o dinheiro caiu na conta e ele saiu feliz. Tão feliz que não viu o caminhão do ovo dobrar a esquina e passar por cima dele.

          João morreu na hora e a alma mais virtuosa da cidade ficou sendo do poder econômico.
          Igual a alma de quase todo mundo, portanto.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Redescobrindo

Texto de autoria de Marcelo Derbli Schafranski, médico reumatologista, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 01/11/2022, no Portal CulturAção em 29/11/2022, e publicado no Diário dos Campos em 21/12/2022.

          Os infortúnios da vida inauguram novas rotinas. Após um acidente automobilístico, felizmente sem culpa e sem vítimas, optamos por uma experiência inédita: viver sem automóvel próprio. De início, pensamos que a atitude não perduraria. Entretanto, já se vão quase dois meses de caminhadas das mais variadas extensões e do uso de motoristas de aplicativos, quando indispensável.

          Na arte, buscamos motivação. E, notadamente na literatura, encontramos inspiração. “Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam”, afirmava Nelson Rodrigues, célebre dramaturgo e cronista. Que assim seja. E a pé, somos ainda mais lentos. Ao longo dos itinerários variados que percorremos, temos tido a oportunidade de conhecer e admirar características da nossa Princesa dos Campos antes totalmente desconhecidas ou ignoradas: detalhes da arquitetura de casarões e casebres, meandros de praças antes inexplorados, particularidades da fachada de edificações e igrejas, o semblante dos transeuntes apressados ou não. E a imaginação nos transporta a épocas não vividas, mas pelas quais guardamos prestimosa consideração.

          Na impossibilidade da locomoção a pé, recorremos aos aplicativos, símbolos de uma nova era na prestação de serviços. Abrimos um parêntesis aqui para uma recordação: há alguns anos, quando dentro de um táxi, indagamos o motorista sobre o futuro dos aplicativos de transporte em nossa cidade. “Ponta Grossa não está preparada para esse tipo de modernidade”, respondeu-me. Previsão equivocada.

          Malcolm Gladwell, jornalista e escritor britânico, autor de diversos best sellers, asseverava que todos temos a capacidade de tornar qualquer diálogo interessante, pois qualquer ser humano tem algo valioso a compartilhar, ansioso apenas pela oportunidade adequada e por um ouvinte atento. E é com essa postura que temos mergulhado na vida e na personalidade dos indivíduos que trabalham com o transporte de passageiros, sempre que nos é permitido. Alguns com dedicação exclusiva ao ofício, outros não. Homens e mulheres com diferentes histórias, sejam elas presentes, pretéritas ou futuras, frequentemente plenas de significados e de sentidos. Causos peculiares não faltam nessas breves mas significativas interações de benefício mútuo.

          E, dessa maneira inusitada, aprofundamos um pouco mais o nosso conhecimento sobre Ponta Grossa, suas imagens e o seu povo. Uma cidade antes invisível aos olhos de um sempre apressado e solitário motorista.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Minha infância em Ponta Grossa

Texto de autoria de Celso Parubocz, artista visual, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 18/10/2022, lido no Blog Mareli Martins em 22/10/2022, publicado no Diário dos Campos em 30/11/2022.

Bons tempos de correr pelas ruas do Bairro de Olarias, brincar com outras crianças, soltar pipa, descer com o carrinho de rolimã, nadar nas cavas formadas pelas chuvas e pelas vertentes onde era tirado o barro para fazer telhas e tijolos.

Andar pelas toras do Wagner procurando resina, ou nas valetas depois da chuva para pegar girinos e colocar em vidros de palmito, meus primeiros aquários.

Descer no antigo curtume, apanhar taquara para fazer pipa, morrendo de medo de encontrar a Biriba, figura folclórica do nosso bairro, que andava enrolada em roupas velhas e cercada de cachorros.

O medo de ficar na rua quando ouvia ao longe o som do cincerro da vaca madrinha, que puxava o rebanho que tinha ido comer capim na beira da linha, que dividia o Bairro de Olarias do Centro e à tardinha voltava para casa.

Bons tempos de uma cidade tranquila, cujo silêncio só era quebrado por alguns sons que até hoje ficaram marcados na memória: o apito do Wagner que avisava que ia começar ou terminar o turno dos operários, cuja grande movimentação deu nome à rua onde moro; o sino badalando e o alto-falante tocando Il Silenzio, avisando que estava na hora da missa da igreja São Judas Tadeu; a sirene do Sandu (ambulância) que levava e trazia os doentes; o som do martelo incessante na bigorna do meu avô Basílio, que fazia ferramentas e consertos no paiol nos fundos da casa.

No fim do ano, o batuque das escolas de samba trazia alegria; não era uma, nem duas, eram três, todas ali em nosso bairro. Mês de junho então, a cidade toda descia para Olarias para participar das festas juninas, organizadas por famílias simples que mantinham a tradição de muitos e muitos anos.

E quando minha avó materna chegava de viagem na estação, trazendo farofa de frango que só ela sabia fazer, ficava feliz ao ganhar um dinheirinho e comprar doces no bar do Seu Germano ou no Seu Zinho.

Ah! E quando ela ia voltar então, íamos todos no carro de praça do Seu Ernesto levá-la até a estação, uma alegria imensa, tanto o passeio quanto a despedida, ao ver o trem partir na plataforma da estação.

Com o passar dos anos já eram possíveis algumas aventuras no centro da cidade, ir à missa das dez horas na catedral, na matinê do Cine Inajá ou passear pela avenida que era fechada para os veículos nos domingos; mas nada era tão divertido quanto as subidas e descidas do meu bairro.

Minha saudade é deste tempo, que ficou marcado com tantas belas lembranças.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Os últimos ipês da Biblioteca!

Texto de autoria de Carlos Mendes Fontes Neto, engenheiro civil, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 25/10/2022, publicado no Diário dos Campos em 02/11/2022, e lido na Rádio MZ FM em 05/11/2022.

Ontem os últimos ipês que ficam numa nesga de canteiro sobrevivente da Biblioteca Municipal começaram a florescer. Antes, alguns anos atrás, quando as instalações da Biblioteca e do Centro de Música ficaram prontas, haviam plantado pés de ipê em toda a frente para a rua Frederico Wagner, distribuídas na área destinada ao estacionamento de veículos. Mas só tiveram a chance de uma florada. Rapidamente foram sumindo para permitir que o espaço fosse utilizado como local de eventos. Muitas tendas, muitos feirões de veículos usados, até encontro de carros modificados com tremenda barulheira ali passaram a acontecer. Mesmo que, nos prédios ao lado, as atividades fossem voltadas à concentração e ao estudo. Sem falar da escola do outro lado da rua.

Dizem que os ipês foram mudados para o lado oposto da enorme chaminé. Chaminé que sobreviveu ao apagamento do importante ciclo industrial que ali ocorreu. Mas, se foram transplantados, também acabaram tendo um triste destino, derrubados pelos sucessivos circos que ali se instalaram. Tiveram o mesmo fim que a centenária paineira que existia ao lado da escola, do outro lado da rua.   

Agora, despontando a primavera, os ipês remanescentes parecem explodir em amarelo. Flores admiradas, ao mesmo tempo que vão pausadamente caindo, transformando a grama meio praguejada em tapete dourado. Uma falsa impressão de “noblesse oblige” de algo que ficou a desejar. Chamam a atenção, pois há muito os ipês da cidade já floresceram.  Amarelos, roxos e até o branco, mais perene que os outros, cujas flores só resistem três dias, já deixaram os galhos pelados e se encheram de folhas. Tardiamente, sem saber que a temporada é cada vez mais precoce e já passou. Talvez por não terem noção da “passagem da boiada”...

Esses ipês ainda se quedam a contemplar o Memorial dos Tropeiros, sentinela da história e do patrimônio cultural, testemunhando a indiferença com que as pessoas por ali passam...

Atrás, sobre o grande e agora totalmente cimentado pátio, alijado de qualquer possibilidade de uma mínima sombrinha benfazeja, resta apenas a aridez da função ordinária a que foi proposto: estacionar veículos. Apesar de que, às vezes, se preste a ser procurado por grupos para se encontrar, pela falta de opção de local, para jogar conversa fora. Coisas de Ponta Grossa.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Vizinhos animais

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 05/10/2022, e publicado no Diário dos Campos em 14/12/2022. 

           Há coisa que uma pandemia não altera em nada.

Na vizinhança tem um galinheiro. Desde o início da madrugada (Que horas é o início da madrugada, mesmo?) o canto desafinado do galo já interrompeu meu sono diversas vezes. Mal o dia clareou, ele já deu duas "trepadas", duas galinhas já puseram seus ovos e, pelo jeito, o cachorro invasor da outra vizinha já atacou um pintinho.

          Hein? Se eu fico futricando a vida dos vizinhos, por isso sei de tudo isso? Nah. Apenas não sou surda. Nas investidas do galo, as galinhas fazem um "griteiro" desesperado. Tudo bem que tem humanas que se manifestam de um jeito que parecem desesperadas, e nem é isso. Talvez a galinha em questão queira apenas contar vantagem, e o jeito é fazer o "griteiro" desesperado. Afinal, o que é aquilo quando elas põem os ovos? Só pode ser pra contar vantagem, também. Tem que anunciar pra todo mundo saber. Que bobagem! Não seria melhor ficar quietinha, esconder o ovo num cantinho pra depois chocar? Faz a gritaria, vem o dono do galinheiro e leva o ovo embora. Se o lagarto predador de ovos fosse esperto, também já ia saber que o prato estava servido.

O que esperar de um bicho que tem asas, mas não voa?

Se eu me incomodo de haver um galinheiro na vizinhança? Nah. Há alguns inconvenientes, moscas que aparecem na minha cozinha quando faço nega maluca, ou quando asso um churrasco, e tal. No geral, fico na minha. Nossa Princesa acrescentou muitas joias de arranha-céus à sua coroa, mas ainda existem bairros com o privilégio de uma paisagem bucólica à vista das sacadas de um condomínio.

Como passo meu dia, depois de um amanhecer desses? Bem, obrigada. Aproveito o momento em que os eventos matinais da família Galo dão lugar a um interminável có-có-có.  O galo a ciscar, chama as matronas com seus pintinhos para a degustação dos vermezinhos que se escondem debaixo das folhas secas e entre as moitas do capim. Isso dá um sono! Viro de lado, volto a dormir.

Pensou que eu ia ficar resmungando a manhã toda, ou que, sendo aposentada, para sempre em férias, vou madrugar para reclamar da vizinhança? Nem se o “coronga” tivesse derretido os meus miolos!

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...