segunda-feira, 31 de maio de 2021

Encantos do Guartelá

Texto de autoria de Maurício Chizini Barreto, servidor público municipal de Tibagi, natural de Ponta Grossa.

Publicada no Diário dos Campos em 02/06/2021 e no Correio Carambeiense em 05/06/2021, postada no Portal aRede em 23/06/2021 e no Portal CulturAção, em 21/07/2022.

Certa vez, ao caminhar pelo grande canyon do Guartelá, conhecido por ser o sexto maior do mundo, sendo o único com vegetação de cerrado do planeta, deparei-me com uma cena que no mínimo me surpreendeu. A cidade de Tibagi é dona de um cabedal de histórias, costumes e lendas. Cresci ouvindo lendas e causos que meus pais, tios e avós contavam nas rodadas de causo que faziam após o jantar. O município de Tibagi é conhecido pela extração do diamante, histórias de riquezas e aventuras daqueles que buscam na gema preciosa um futuro melhor. Outros falam da Fazenda Fortaleza, uma fazenda escravocrata, onde conta a lenda que seu proprietário, José Felix da Silva, na ânsia de preservar sua fortuna, antes de morrer, enterrou todo o seu tesouro. Seu capitão do mato, Antônio Machado Ribeiro, após comandar uma grande investida contra os indígenas, que ficou conhecida como Mortandade, vindo a exterminar centenas de bugres, onde hoje está instalada a Fábrica de Papel da Cidade de Telêmaco Borba, ganhou de presente a Fazenda Tibagy, a qual mais tarde formou a cidade. Enfim, nossa região é recheada de histórias e lendas, e, nesse dia em que eu caminhava pelas terras do Guartelá, avistei ao longe um pequeno indiozinho, que acenava para mim me chamando. Resolvi segui-lo; após algum tempo passou a ser acompanhado por um menino negro. Lembrei-me dos causos de meus avós, que relatavam que existe no Guartelá um tesouro enterrado que é vigiado por dois meninos, um indígena e outro negro. Não sabia ao certo o que estava vendo: seriam os guardiões de um grande tesouro? estaria eu prestes a ficar rico? Padres jesuítas, grandes fazendeiros, trabalhadores negros e indígenas da grande família tupi, sempre estiveram pela região. Lembro-me da história da Redução Jesuíta, onde hoje é a Fazenda Igreja Velha, o quilombo do São Dama, onde hoje existe uma fazenda, e por fim a fazenda escravocrata da Fortaleza, onde até hoje parte da antiga sede mantém objetos e construções desta época. Já caminhava cerca de duas horas quando me veio à lembrança que a lenda fala que quem tirar essa fortuna, que alguns chamam de panela de ouro, por ser um dinheiro encantado, amaldiçoado ou fruto do sangue de inocentes, terá sua vida encurtada, vindo a morrer em pouco tempo. Temeroso do triste destino, acenei para os dois meninos me despedindo, e como por mágica eles desapareceram no mesmo instante. E assim o tesouro do Guartelá continuou intacto à espera de quem tenha a coragem para retirá-lo.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Um jardim de copos-de-leite

 

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 29/05/2021 e no Diário dos Campos em 10/11/2021, postada no Portal aRede em 1º/06/2021 e no Portal D'Ponta News em 19/06/2021.

Imigrantes do Volga na Argentina, a família de Dorothea Luzia Scheiffer Knapp, minha avó “Nhata”, veio para uma colônia de alemães-russos, em Palmeira. Desiludiram-se com as condições da colônia e acabaram retornando para a Argentina, mas ela ficou aqui, pois já estava casada com meu avô Alvídio Knapp.

Tornou-se uma pessoa só, quase eremita, tomando conta do sítio, enquanto meu avô passava dias e dias fora de casa, por uma obsessão de andarilhar. Vinha do Taboleiro, distrito de Guaragi, para Ponta Grossa, a pé, utilizando trilhas por entre as fazendas, parando em algumas, onde tinha conhecidos, como a dona Ambrozina, que o acolhia para tomar um “prato de leite com farinha de milho”, e às vezes pousar no paiol de sua fazenda, na região de Roxo Roiz. Ia para Porto Amazonas, passando por Restinga Seca, onde nascera, e para Araucária, onde também tinha conhecidos do tempo em que fora cozinheiro da tropa.

“Nhata” tinha uma horta e um pomar, mas isso não parecia ter muita importância para ele. Quase não havia flores, pois ele não se importava com elas. Andarilhava, enquanto ela, depois que os filhos casaram, ficava, noites e noites seguidas, sozinha em uma casa mal acabada, sem pintura, sem vidraças, apenas com folhas de madeira para fechá-las, iluminada por um lampião de querosene, o que a tornava ainda mais lúgubre. O mato crescia tão próximo que mal podia ver as estrelas, que para ele, em suas “tropeadas sem tropa”, eram guias; mal podia se encantar com o luar que iluminava os caminhos dele, pois só o via passando por frestas na parede, enquanto, amedrontada pelo escuro da solidão, se recolhia para dormir com as aranhas em teias que pendiam do teto.

De dia, ela se encantava com o jardim de copos-de-leite, que se espalharam por conta própria, debaixo da janela de sua cozinha, em abundância, como dons devolvidos pelo espírito da natureza, em gratidão pelos “restos” ofertados, sem a menor intenção, pelo espírito humano, despreocupado. Aquela terra era constantemente regada pela água da louça lavada em uma gamela de madeira tosca, conduzida por uma canaleta escavada para um buraco na parede, indo parar no jardim dos copos-de-leite, que também não tinha importância para o andarilho, caminhando pelas trilhas que o presente roubara do passado, somente para os seus passos livres, despreocupados. O seu andarilhar, tão importante para ele, não foi importante para preservar a saúde de quem ele amava, a seu modo.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Um diálogo áspero em baile de carnaval

 

Texto de autoria de Alberto Jorge Bittencourt, advogado, Tibagi.

Publicada no Diário dos Campos em 19/05/2021 e no Correio Carambeiense em 22/05/2021, lida na CBN Ponta Grossa em 04/06/2021, postada no Portal D'Ponta News em 10/06/2021 e no Portal aRede em 16/06/2021, exibida na TV Educativa em 23/12/2021.

Tornou-se uma referência na história não escrita de Tibagi, a figura de Gasparino de Sá Bittencourt (1887-1952), o que se deu pela forma de ver, interpretar e falar das coisas de sua época. Filosofava ao seu modo meio agauchado, expressando seu apego à tradição, à moral, aos costumes da gente ligada à terra dos Campos Gerais, com raízes mais distantes voltadas ao Sul do Brasil.

Numa situação bem interessante, Gasparino ─ que, evidentemente não era muito afeito a festejos carnavalescos ─ foi ao clube da cidade acompanhar as filhas solteiras que desejavam participar do baile, como seria normal num evento desses. Chegando ao clube, tomou a mesa já reservada e sentou-se com as moças. Claro que Gasparino não estava fantasiado. Vestia sua tradicional bota de couro, calça social, paletó e lenço no pescoço. Sisudo, acompanhou as primeiras seleções de sambas e marchas carnavalescas bem executadas pelo conjunto de metais.

No clube estava o "Cadete", como era conhecido o pernambucano Manoel Evêncio da Costa Moreira. Este foi um dos pioneiros na agitação cultural de Tibagi no início do século passado; instrumentista de valor, cantor talentoso. Mas não era pessoa muito próxima de Gasparino no dia a dia da cidade. Cadete liderava um bloco fantasiado de cangaceiros, naquele baile. Na aba quebrada do chapéu, os foliões levavam a frase: "Para o amor não há idade".  E Cadete, propositadamente, quando passava em frente à mesa onde Gasparino estava com a família, fazia uma reverência, mostrando a frase no chapéu.

Após umas duas dessas provocações, conta-se que Gasparino levantou-se e segurou Cadete pelo colarinho, falando em tom seguro e firme: ─ Olha aqui seu moleque, me respeite! Aqui dentro não te faço nada! Lá na rua, te cubro de desaforos! E na coxilha, te corto no laço!

Soltou o folião com desprezo e convidou as filhas para irem embora. Cadete, claro, deve ter brincado até o fim do baile.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Maria-fumaça

 

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

 Publicada no Correio Carambeiense em 15/05/2021, lida na CBN Ponta Grossa em 21/05/2021 e na Rádio Clube em 17/12/2021, postada no Portal D'Ponta News em 03/06/2021, no Portal aRede em 09/06/2021 e no Blog da Mareli Martins em 17/12/2021, publicada no Diário dos Campos em 16/06/2021.

Lá vai uma menina de 9 anos de mãos dadas com sua mãe, passo decidido, numa manhã de domingo. Às vezes tem que dar uma corridinha para sincronizar as passadas como se fosse um soldado que perde o ritmo num desfile e acerta o passo apressando sua marcha. Percorrem a Rua da Estação desde o Ponto Azul em direção à estação de trens. Uma bruma esbranquiçada não permite que visualizem o final da rua. Enfrentam o clima frio do inverno de outrora. As estações do ano são bem definidas e quando é inverno, é inverno. Geadas fortes e o vento da cidade tornam o frio ainda mais intenso. A respiração delas parece uma fumacinha quando encontra o ar gelado. A menina veste calças de flanela, blusa e gorro de tricô feitos pela mãe, o casaco novo e botas. O coração pulsa forte na expectativa daquela viagem de férias. Leva consigo um farnel com pinhão cozido e descascado para um lanche durante a jornada. A mãe compra o bilhete na hora e esperam o trem na plataforma.

O destino é Piraí do Sul onde ela passará uma semana das férias escolares de julho na casa da comadre Josefa e do compadre Jacir. A mãe escolhe um lugar no longo trem misto, acomoda a filha e se despedem. ─ Bença, mãe!

No trajeto teima com a janela pois quer apreciar a paisagem mas os vidros estão embaçados. Aceita o fato e desenha neles: seu nome, uma casinha, árvores e pássaros. Sopra o ar quente dos pulmões na vidraça e esfrega a mão nela tentando abrir passagem para seus olhos curiosos. Congelando, as mãos voltam rápidas aos bolsos do casaco. Repete o gesto até que o sol se sobrepõe à bruma e enfim pode observar os campos, córregos, a mata em alguns trechos, pequenas estações que se sucedem ao longo da ferrovia e as casas dos ferroviários à beira da linha.

Falando alto o chefe do trem informa o nome do lugar por onde estão passando.  ─ Castro! Castro! Há uma ponte sobre o Rio Iapó. A Maria-Fumaça, locomotiva movida a vapor, para em cima da ponte enquanto abastecem sua caldeira com a água do Iapó. Pela janela vê o rio lá embaixo! Como é alto! Sente um frio na barriga. Acompanha a inédita operação e se encanta.

Toca o sino e a locomotiva segue. Deixa no céu um rastro de fumaça branca e de vapor fervente nos trilhos. A menina se embala com o ruído do trem. Coloca letra àquela música e vai cantando e acelerando ao ritmo dela: Já te pego, já te pico, já te ponho no pinico, já te pego, já te pico, já te... Relaxa até que ouve a voz do chefe do trem: ─ Piraí do Sul!

segunda-feira, 3 de maio de 2021

O pão com molho do Regente

 Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 08/05/2021, lida na CBN Ponta Grossa em 13/05/2021, postada no Portal aRede em 19/05/2021 e no Portal D'Ponta News em 21/05/2021.

Durante o intervalo entre aulas, as correntes invisíveis de ar dançavam na atmosfera do estabelecimento rosado.

Nessa dança, o enfeitiçado aroma agitava as moedas no bolso, os movimentos peristálticos e as células olfativas. Sistema nervoso simpático enviava estímulos hormonais poderosos ao resto do organismo.

Tão poderosos a ponto de fazer o menino dos anos 70 salivar com a lembrança, cinquenta anos depois.

O aroma dançante de tomate, cebola, alho e especiarias secretas invadia os corredores, as janelas e o pátio. Era o famoso e potencialmente delicioso pão com molho. Potencialmente, porque o menino somente conviveu com os perfumes daquele tradicional lanche de colégio. Obviamente, por motivos econômicos.

O perfume do molho, porém, subsiste em sua memória. Há, ainda, boatos que envolvem a sua criação e existência. Nada confirmado, claramente. Um desses boatos instiga que o molho era tão saboroso e tão perfumado, que se impregnava nas paredes do colégio, fazendo-as com essa coloração ─ cor de molho derramado.

Se a coloração desse memorável estabelecimento possui essa origem, não há confirmações. Mas que deixou as lembranças daqueles dias com esse tom, não faltam depoimentos.

Emergência na costura

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Minha mãe nã...