segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Recanto dos Papagaios

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, residente em Ponta Grossa. 

Postado no Portal aRede em 31/08/2022, no Blog Mareli Martins em 03/09/2022, e publicado no Diário dos Campos em 01/02/2023.

          Para quem nasceu e cresceu em Palmeira, e tinha um meio de locomoção na família, era quase uma obrigação passar os domingos de verão às margens do Rio dos Papagaios, no Recanto.

          A famosa ponte, construída nos tempos do império, que permitia a ligação do interior do estado à capital paranaense, sempre foi moldura para fotos, romances, piqueniques e muita diversão. Chegar cedo, para garantir a mesa de concreto, construída pelo DER, logo abaixo da ponte, era uma obrigação.

          Logo em frente desta, após algumas corredeiras do rio, um “poço” garantia a diversão das crianças e dos adultos, com a água sempre limpa e com uma temperatura sempre agradável, ao menos para nós, crianças; nessa piscina natural aprendi a nadar, mergulhar, prender a respiração embaixo d’água e a brincar como um pequeno peixe de rio.

          Meu pai era vegetariano, então o churrasco nunca era uma opção. Porém, o empadão de requeijão ou de palmito, os sanduíches de queijo, aquele Poronguinho, típico palmeirense, ou então os cachorros-quentes e algumas frutas, carinhosamente preparadas pela nossa mãe, eram nosso sustento do domingo. Ah, claro, não podiam faltar os refrigerantes, que nos eram permitidos com menos parcimônia neste ambiente.

          Como ele, meu pai, não sabia nadar, a diversão que lhe agradava era a pescaria. Ele subia o rio com seus caniços, linhas e minhocas, e passava horas sentado às suas margens, tentando pescar. Um ou dois lambaris, às vezes um bagrinho, eram os seus troféus.

          Explorar o recanto era também uma parte importante das aventuras domingueiras. Saíamos a andar por aquele imenso lugar, a banhar-se na piscina de água corrente, a brincar no parquinho que lá havia, que eram tubos de concreto a formar um pequeno trem, algumas gangorras que rangiam o dia todo, suas pequenas cachoeiras e corredeiras. Além disso, as românticas pontes em arco sobre as diversas passagens dos córregos afluentes, fartamente registradas nos álbuns de muitas famílias dos Campos Gerais.

          Não havia competição sonora, e o muito que escutávamos eram alguns rádios dos carros a narrar os embates futebolísticos de fim de tarde. A família toda divertia-se, comia, conversava, brincava. Quase sempre um pequeno esfolado, advindo de um escorregão nas corredeiras, era a cereja a enfeitar nossos joelhos e cotovelos.

          O retorno até Palmeira era, quase sempre, marcado pelo silêncio das crianças dormindo no banco traseiro do carro, ou pela disputa do último pedaço de empadão.

         

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Origens

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 23/08/2022, no Portal CulturAção em 08/11/2022, e publicado no Diário dos Campos em 19/01/2023.

        Brasil, 500 anos, Ponta Grossa, 200 anos... Esquecemos os milhares de anos em que as trilhas – interação entre predadores e presas, ou que conduziam às fontes naturais de alimentos, como as florestas de araucárias – foram traçadas pela naturalidade das pisadas com pés descalços por entre florestas e cerrados, por questões de mera sobrevivência.

Entretanto, mitos e lendas indígenas, que não nasceram com o “descobrimento”, ainda pedem para integrar-se ao patrimônio folclórico, cultural, popular, das regiões de onde povos originais foram expulsos com violência e extrema crueldade, permanecendo, ainda hoje, amplamente “desconhecidos” da sociedade dominante. Falamos em Saci, Curupira, Boitatá, Iara; falamos em Gralha Azul, João-de-barro, e na Cidade de Pedra, mas não damos importância ao território, aos espíritos ancestrais, às grandes viagens míticas do povo Guarani; não sabemos da importância das “belas palavras” (mboraí poku), e da entonação a elas dada na comunicação com os ancestrais, dos quais os guaranis se entendem como descendentes sagrados. Não fazemos a mínima ideia do significado dos traços, nas pinturas do corpo do povo Kaingang, nem de sua organização social em duas metades míticas... Temos localidades, rios, morros, batizados com expressões dessas e de outras nações originais, que deixaram essa herança linguística. Desconhecemos a beleza dos mitos cosmogônicos desses povos, desconhecemos sua peregrinação para escapar às perseguições que os exterminavam ou os caçavam para os escravizar; desconhecemos sua luta atual para manterem espaços territoriais minimamente suficientes para seu modo de vida, para transmissão de sua riqueza cultural, embora nossa Constituição tenha consolidado alguns desses direitos.

          E que dizer das culturas africanas que foram esmagadas e sufocadas pelo regime da escravidão? Que, apesar de artigos constitucionais as protegerem de preconceitos, são constantemente atacadas, sob olhares complacentes da sociedade?

          Comemoramos o Folclore, em agosto, e o Dia do Indígena, em abril – nós não temos uma festa com o porte de um Halloween, para transmitirmos essas culturas; as escolas fazem adereços, pintam os rostos das crianças, e as adornam com penas – não convidamos um Kuiã, um Karaí, um Babalorixá, para transmitirem suas culturas originais nas praças, escolas e parques. Que pena!

 

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O pombo da catedral

Texto de autoria de Sergio Batistel, formado em Letras Português/Espanhol pela UEPG, revisor de textos, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 17/08/2022, no Portal CulturAção em 19/10/2022, e publicado no Diário dos Campos em 08/02/2023.

Passava em frente à catedral, apressado, quando o vi descer, rasante, do topo da cruz, lá no alto, direto para mim. No susto, suspendi o passo, subitamente, e o encarei. Um pombo de asas brancas com manchas avermelhadas. Ele ali ficou, me olhando com seus pequeninos olhos negros, balançando a cabecinha curiosa, que parecia reconhecer em mim um amigo, até que eu me afastasse.

No final da tarde, porém, quem foi que veio do topo da cruz, novamente em voo rasante? Pois bem, o pombo. Reconheci-o de imediato, e, desta vez, com menos pressa, parei também a observá-lo. Era o final do expediente, plena hora do rush, e havia, no entorno da igreja matriz, movimento e sons quase infernais de gente e veículos.

O pombo, porém, não parecia interessado em nada à sua volta, a não ser em mim. Olhava-me diretamente nos olhos, e comecei a ficar incomodado. Atravessei a praça, aturdido, e ainda notei, ao olhar para trás, que ele de longe me seguia, alheio também aos tantos da sua espécie, habitantes em grande número do lugar.

Naquela noite, cheguei a sonhar com o pássaro, mas um sonho trágico, em que ele se jogava do alto da cruz e se espatifava no chão, ora vejam bem, um pombo suicida. E justo eu, que já tinha pensado no ato, não do alto de uma cruz, mas do alto de minha janela mesmo...

Assim, no dia seguinte, não foi sem alguma inquietação que o procurei. Era uma manhã bonita, o sol nascia e reverberava seus raios nos vitrais coloridos da catedral, criando um efeito sublime e sinestésico: eu sentia o cheiro das cores.

Foi então que observei, caído diante da entrada da igreja, o corpinho branco da ave, as asas abertas, como se ainda quisesse voar. Espatifado, como se houvesse realmente se jogado lá de cima, igualzinho ao meu sonho.

Sem reação, me deixei ficar, a velar sua existência acabada, e só deixei a praça quando ela começou a encher de gente. Saía com lágrimas nos olhos e a imaginar o meu próprio corpo caído, jogado da minha janela, espatifado e sem vida, talvez de braços abertos, como se ainda quisesse viver.

À tarde, não havia mais sinal do corpo. Teriam as formigas, já, feito seu trabalho de coveiras, ou o pombo nunca tinha existido?

Foi o que me ocorreu, ao voltar para casa. Os vitrais da catedral brilhavam, agora, noturnos, a destacar-se no entorno boêmio. Desde então, esqueci ideias suicidas, e devo isto a esse pombo ou espírito da vida, que, ao destruir-se, me salvou de minha autodestruição.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Caçambas de entulho

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 11/08/2022, no Portal CulturAção em 01/11/2022, e publicado no Diário dos Campos em 25/11/2022.

Diariamente saio às ruas cumprindo compromissos sociais, de trabalho, de lazer ou de cultura. A cidade é linda e fotografo algumas cenas que me agradam, principalmente árvores floridas. Não posso deixar de notar no meu trajeto, a existência do crescente número de caçambas de diferentes tamanhos e logomarcas de empresas do ramo, seja no centro ou nos bairros da cidade. Entulho seria sinônimo de crescimento? A querida Ponta Grossa certamente responderia que sim. A quase bicentenária Princesa dos Campos, que aniversaria em 15 de setembro, prepara-se para o evento que marcará seus 200 anos de criação, desde aquele longínquo 1823, assumindo ares de juventude com o grande impulso na construção civil. Principalmente nos bairros os terrenos baldios são preenchidos com novas edificações, casas, sobrados e prédios com muitos andares. Resíduos provenientes dessas construções, fragmentos ou restos de tijolos, concreto, argamassa, arames ou madeira têm seu descarte correto nas caçambas à beira das obras. Os tapumes de um material prateado, diferente do habitual que reflete os raios solares, é o indicativo de algo novo. Próximo à minha casa, onde residia a família de um bancário, o terreno desocupado coberto de vegetação e sinais de abandono está sendo ocupado por uma obra que modificará a paisagem. Por outro lado, o que causa tristeza e desconsolo e que também ocupam caçambas, são os entulhos da demolição indiscriminada. Em meio aos cortantes cacos de telhas coloniais, de cantos de tijolos rosados, da cinzenta argamassa e do concreto quase indestrutível, vão-se também as lembranças, imagens, memórias do que ali estava representado. Edificações que fazem parte da Ponta Grossa antiga, do Patrimônio Histórico, são derrubadas sem piedade com golpes não só na estrutura física, mas também nos sangrantes corações preocupados com a preservação de sua história. Exemplos recorrentes estão escancarados por aí no reino de uma Princesa. Existem grupos de moradores que denunciam essas atitudes de completo descaso com a preservação, como o grupo Sherlock Holmes Cultura. Esse atuante grupo de pessoas, com o mesmo objetivo, está conseguindo importantes conquistas nesse campo em que o interesse financeiro passa a máquina em cima da história e enche as caçambas de entulho.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Os Campos Gerais Segundo Nelson Rodrigues

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa). 

Publicado no Diário dos Campos em 14/10/2022, postado no Portal CulturAção em 25/10/2022, e no Portal aRede em 20/12/2022.

A discrição não recomenda que a história edificante abaixo seja contada em jornais, mas assim me pediram e insistiram os únicos descendentes vivos, bastante remotos, todos confiantes de que o tempo atenua os efeitos das ações e paixões humanas e cientes de que já há várias décadas a querela que vou narrar tramita tão somente nas instâncias celestiais.

Sucede que o casamento foi arranjado e, como de hábito, os nubentes eram desiguais. ELE, como o pai, era destemido, amante da contenda e do desastre. NELA, como na mãe, doçura e comedimento abraçavam-se numa simbiose perfeita. A cerimônia foi celebrada não vem ao caso onde; naturalmente, o consórcio foi infeliz desde o primeiro dia. O sujeito era autoritário como um patriarca do Velho Testamento e a moça, para olhar pela janela para ver se ia chover, precisava de autorização por escrito lavrada em cartório com firma reconhecida e duas testemunhas com endosso ao portador. Para piorar, havia um vizinho que por ali aparecia com frequência pretextando futilidades diversas naquela linguagem viperina que botou o Éden a perder. ─ "Isso ainda vai arruinar" ─, dizia a mãe dela para o pai dele, ─ "aconselha o teu filho que não desate esses brios por qualquer besteirada". O matuto, bronco e reacionário ele próprio, sabia que o fruto não cai longe do pé e só calava.

Ocorre que o marido precisou se ausentar de casa para fazer um transporte de gado e, para não dizer que fosse completamente o cão, tencionou deixar a esposa na fazenda para não expô-la às maleitas e aos andaços que varavam a região, sem contar os assaltos dos bandoleiros e as estradinhas cruciantes.

─ Posso ficar com teu irmão, aí você sossega esse ciúme! ─, ela sugeriu ternamente, e só emprego o ponto de exclamação por solidariedade ao revisor, pois aquela voz não exclamava nada.

O homem foi, voltou e a mulher, que se enchera de seu comportamento belicoso, rompera as ataduras matrimoniais que a ligavam àquele perturbado e se mandara. Ele pegou na carabina, botou a cartucheira e foi buscá-la na casa do vizinho, que nada tinha com a história. Com quem, então?

Você, leitor perspicaz e cioso de antecipar as reviravoltas, pensa que já tem a resposta: com o cunhado.

Não foi dessa vez. Os que me solicitaram essa crônica juram que foi com o sogro. É nível Nelson Rodrigues mesmo, avisei no título.

 

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Texto de autoria de  Márcia Derbli Schafranski , professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficien...