segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Rachel de Queiroz

 

Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede em 19/01/2022 e no Portal CulturAção em 26/04/2022.

Não saberia Rachel que da grande seca de 1915 surgiria o rio extenso da literatura que a habitava desde cedo. Muito mais tarde, em 1990 e bolinha, a não tão jovem escritora viria a cair em Ponta Grossa.

Dos anjos que caem, Rachel literalmente cairia próximo à Avenida Bonifácio Vilela. Do outro lado, um profundo entendedor da Literatura assistiria à cena que seguia. Rachel, ajudada a levantar-se, foi levada ao hospital.

Resiliente, ainda, foi à Universidade prestar sua palestra. Conta-se que enfaixada  et cetera. E, olha a coincidência, o entendedor encontrara-a novamente. Rachel poderia não saber, mas as conexões humanas se dão de formas tão incomparáveis que passei dias da minha vida construindo todo o cenário de sua queda em minha mente.

Rachel, dos Quinze, é tão inigualável porque, segundo o bom entendedor literário, diante da escassez de histórias de vida, escreveu sua obra-prima. Em riqueza literária, que somente muitos anos de vida poderiam criar.

Nunca a conheci. Mas sinto suas marcas quando piso naquela avenida, vejo suas sombras nas esquinas de uma memória que não tive. E a Rachel dos Quinze, que vive para sempre dentro do seu livro, talvez como anjo realmente por aqui ainda transite.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Zé Pedro

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

 Publicado no Correio Carambeiense em 25/12/2021 e no Diário dos Campos em 22/06/2022.

A Universidade Estadual de Ponta Grossa é um edifício de quatro andares solidamente instalado no centro da cidade; fronteiriça à sua fachada, a praça Santos Andrade alberga a fauna humana.

Na praça Santos Andrade vagou, por uma noite, o fantasma de Zé Pedro depois de sua primeira morte. Zé Pedro vivo já andava por lá, camisa andrajosa, bolsos pedindo compaixão, à procura de uma moeda, um cigarro. Corpo cravejado de moléstias diversas, estômago tumultuado pela fome invencível, já fora então despojado da qualidade humana, ectoplasma carnal penalizado no plano terreno.

Zé Pedro morreu de facada na extremidade leste. A viração noturna que afagou a cidade castigada pelo sol violento presenciou seus últimos arrancos de respiração, enquanto a vida se extinguia no corpo inerte e frio.

Zé Pedro era bom, mas não subiu. Uma pandemia assolava a espécie, a universidade estava deserta e as moedas que arrecadara não pagavam a condução para o além. A alma vagou entre estranhos, buscando fazer a travessia, e se perdeu. Cansada, acabou retornando ao lugar habitual e se deixou ficar no chão, magra como o recipiente material agora velado pelos insetos. Então, subitamente, viu à sua frente desfilarem neanderthais, deuses gregos e romanos, gladiadores com lâminas reluzentes, inquisidores com tochas, falanges de anjos, homens e mulheres de todas as cores. O primeiro sol refulgiu na vidraçaria da universidade, e Zé Pedro sabia que o passado era incerto, que o presente inexistia e que tudo o que seria não seria mais. Viu o cosmo dobrar-se sobre ele próprio, enxergou o universo de fora, e as galáxias se movimentavam como cardumes, meteoros se chocavam dando origem a novas estrelas. Um buraco negro esboçou capturá-lo, ao aproximar-se dele Zé Pedro viu-se finalmente livre da fome e da dor, de todas as aflições. "Então é assim", ele pensou – nada de túneis, nada de rios, apenas voltar à natureza, reencontrar seu destino no espaço sideral. A emanação que vinha do além parecia lhe dizer: não tenha medo do fim, não tenha medo da sina, tudo vai dar certo. Abandonou-se, quis se deixar levar, avançou alguns metros, mas as pernas lhe faltaram, os braços lhe faltaram; não pôde mais, os caminhos se fechavam indiferentes, e Zé Pedro, novamente um feto, sentiu-se revestir do barro primordial.

Abriu os olhos e viu que, na praça Santos Andrade, tudo estava igual, o mesmo prédio, as mesmas ruas. Levantou-se, abanou a poeira e desceu no sentido da Bonifácio Vilela. A miséria havia vencido a morte.

 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Palavras em fuga

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 18/12/2021 e no Diário dos Campos em 15/09/2022, postada no Portal aRede em 05/01/2022.

Com um ano de idade, ou pouco mais, as crianças começam a balbuciar as primeiras palavras. É o início da fala, da comunicação oral que as levará ao domínio da linguagem materna. Expectativa dos pais para saber o que elas falarão antes: mamãe ou papai. É característica das meninas falar muito mais do que os meninos, é científico. Às vezes são chamadas pejorativamente de gralhas ou metralhadoras. Segundo meus pais, eu fui precoce na oralidade. Era tagarela e as palavras brincavam comigo de lenço atrás, bom barqueiro e cantigas de roda no quintal da nossa casa, na Rua Júlia Lopes. Jorravam tanto verbalmente quanto na escrita, tinha facilidade nas redações escolares. E como eu falei! E como eu escrevi! Anos e anos falando e escrevendo, num casamento perfeito entre mim e as palavras.

O tempo foi passando, vivi três quartos de um século e nunca esperei a vileza de uma traição delas, minhas companheiras de toda a vida. Não é justo o que estão fazendo comigo! Dei a elas uma mente saudável, limpa, sem nenhum morador que fosse mordaz, maldoso, pretensioso ou satírico. Ali poderiam morar eternamente, contudo, estão me abandonando sem piedade. A cada dia que passa é mais uma ou duas que fogem da minha mente. Procuro-as por horas, às vezes dias e demoro a encontrá-las. Já aconteceu de jamais saber o paradeiro de algumas. Sempre foram importantes para mim. Por que essa debandada? Para onde estão indo?

Nos momentos em que mais anseio por uma delas, vejo-a correndo pela rua, e no caminho carregando sua irmã gêmea, com a qual eu poderia contar no caso de uma desaparecer, mas a irmã, cujo nome é Sinônimo, também foge. Na fuga vão arrebanhando mais e mais, e eu ficando com a mente esvaziada, num espaço onde há lugar para milhões delas viverem em paz, em harmonia e em bom convívio. Quando alcançam a rua e encontram outras desgarradas, eu perco uma frase inteira! Isto não é justo!

Será que estão cansadas de morar neste lugar? Será que preferem viver em mentes mais jovens que a minha? Pensei colocar cartazes na rua da fuga, mas o que escrever neles, somente com as palavras remanescentes, as mais fiéis?

Consegui escrever e colei na esquina: “Procuro palavras desaparecidas há algum tempo, que me fazem muita falta. Quem as encontrar favor encaminhá-las de volta à minha mente. Preciso delas para preencher o espaço, impedir lacunas na fala e, principalmente, para evitar o ruidoso eco do vazio.”

 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Era uma vez em Ponta Grossa

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica e jornalista aposentado, residente em Curitiba.

Postada no Portal NCG.news em 06/12/21.

 

Não sei há quantos anos os trilhos de trem foram retirados da região central da cidade e de alguns bairros. Sei que, há meio século, eles estavam lá em Uvaranas, no Jardim Carvalho e separando Oficinas de Olarias.

Havia duas linhas bem próximas uma da outra. A primeira utilizada por comboios de carga puxados pelas locomotivas vermelhas. Um pouco antes dela ficava uma grande área pertencente à serraria do Cunha, do Otto, que depois se tornou prefeito, eleito com onze mil votos.

Do lado direito, existia um campo de futebol sem alambrado. Ali, aos domingos, desfilavam camisas coloridas pelo campeonato das indústrias. No lado esquerdo, três ou quatro casas de funcionários, uma delas, de um tio meu que trabalhou a vida inteira na empresa e morreu ali.

A entrada ficava na outra rua pela qual se acessava um depósito de serragem e cavacos ou cepilho como chamávamos, resultado do corte e beneficiamento das tábuas. Era usado nos fogões de tijolos e até nos “econômicos”. A gás, não era muita gente que tinha naquela época.

Na segunda linha, mais para o lado de Olarias, só passavam vagonetes do pessoal de manutenção e a Maria Fumaça transportando os funcionários para o trabalho. Minha casa ficava a cinquenta metros. Da porta, eu os via chegando para o almoço pouco depois das onze e no final do dia.

Sempre admirei como conseguiam fazer aquilo. Verdade que o maquinista diminuía a velocidade, mas sem nunca parar totalmente. Eles saltavam pelas portas dos vagões em movimento e desciam correndo a Cesário Alvim em declive. Dois deles eram nossos vizinhos, um morava na esquina oposta; o outro, em frente ao nosso portão.

Quando tive algumas aulas particulares para o exame de admissão do Regente Feijó, um dia, só por espírito de aventura, peguei carona naquele do final da manhã. Com medo de ser visto pelos operários, saltei antes e me esborrachei nas pedras dos dormentes. Saiu barato: escoriações leves nos braços e pernas.

Um dia uma mulher foi morta e o corpo deixado na beira da linha, próximo da laminadora dos Wagner. Cabelo comprido, alguém descreveu. Teria sido esfaqueada pelo amante dentro do carro. Decerto casada. Talvez os dois. Quem sabe estava chantageando com uma falsa gravidez ou ele queria terminar e ela ameaçava de contar tudo para a esposa.

Eu ficava a imaginar se era jovem ou mais madura. Bonita? Loira? E pensando se alguém que andasse pela rua paralela aos trilhos numa noite de lua nova poderia dar de cara com a assombração dela. Eu é que não passaria por ali.

 

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Texto de autoria de  Márcia Derbli Schafranski , professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficien...