segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Retalhos do interior


Texto de autoria de Francielly da Rosa, estudante de Letras Português/Inglês na UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Portal aRede em 29/01/2020 e no Diário dos Campos em 19/02/2020, lida na CBN Ponta Grossa em 16/06/2020.


Numa de minhas andanças resolvi fazer paragem na casa de uma estimada amiga, na zona rural de Ipiranga. A estrada de chão era longa, salpicada por casebres onde mais adiante iam se intercalando plantações de milho e fumo. A casa de pínus ficava à beira da estrada de chão, cercada pela mata nativa, podendo-se contemplar a extensão da longa plantação de fumo que era a vizinha da frente.
A paisagem era deslumbrante e o ângulo do relevo permitia a visão de um entardecer único, as árvores diminutas deitavam-se em sombras que se estendiam pela plantação, os raios de sol batiam de chapa pela vegetação e iam morrendo manhosamente. Os porcos grunhiam num cercado distante da casa, guapecas caramelo latiam e espojavam-se pelo terreiro junto às crianças, a mulher ligeiramente ia atiçando o fogão a lenha e preparando a comida. Acompanhados de um café bem forte havia farinha, carne suína, feijão e arroz. Enquanto deixava a comida borbulhar, sentava-se à mesa na área da casa e contava a vida, exaltando as recentes modificações e ampliações da casinha.
Toda aquela simplicidade e alegria convidativa propiciavam um ambiente digno de querer fazer morada, mas bem se sabem as dificuldades da vida no campo. Horas exaustivas no trabalho com a plantação deixando consumir-se pelo sol escaldante sem descanso, traços sendo marcados, entre rugas e cicatrizes o suor. Tentativas inúmeras de um trabalho melhor na área urbana, mesmo assim a estrada, até lá, morre-se em quilômetros exaustivos.
A mulher sorridente corria para arrumar a casa, arrumar coisas que não se arrumam, pensar no almoço sobrando para o jantar, cuidar dos filhos desejando a eles um futuro melhor, quem sabe longe dali. Escondidos em sorrisos, ansiolíticos e antidepressivos em uma prateleira da cozinha. Simplicidade é lindo para quem vê de fora. Apreciei a comida simples e fiz elogios sinceros, desejei ter um cantinho assim para morar também, admirava-me a simplicidade e alegria, porém atentei as dificuldades não contadas, as lágrimas perdidas e pensei “que gente forte! ”
Alguém sorrindo exclamou: “- Que vida boa vocês têm aqui! ” E os moradores daquela humilde residência na região rural se entreolharam sem jeito, suspiraram, sorriram frouxo e um deles respondeu: “Pois é! ” Propagando-se pela estrada poeirenta aquelas palavras ecoavam tal qual vento assoviando no campo. Pois é!

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Rotina


Texto de autoria de Felipe Vieira da Silva, carteiro, Ponta Grossa.

Publicado no Portal aRede em 22/01/2020, lido na CBN Ponta Grossa em 14/07/2020.
Mal o ônibus deixara o terminal central e, embaixo da passarela, um casal de velhinhos estava parado a contemplar o horizonte.
— Quem será que são? Todo dia estão aqui, o que será que fazem? Esperam alguém? Mas sempre nesse mesmo horário — pensava Roberto, enquanto se apertava e tentava se segurar em pé no ônibus lotado que o levava para casa, após mais um dia de trabalho.
— Será que mais alguém notou? — Olhou à volta e viu alguns rostos conhecidos; apesar de pegar o mesmo coletivo há meses, nunca puxara conversa com ninguém.
— Aquele vem de manhã… Esse desce um ponto antes de mim…
— Opa! — gritou um coro de secundaristas. Era a esquina das ruas Catão Monclaro com a Fagundes Varela.
— Qualquer dia desses um ônibus ainda capota nesse lugar — pensou — Nossa, mas todo dia eu tenho essa impressão… Espere, hoje acordei meio dormindo, tomei meu café requentado e corri para o ponto, acenei com a cabeça pro rapaz que sempre já está lá, meu vizinho veio correndo de novo, todo dia ele vem quando o ônibus já vem vindo, o mesmo bom dia ao motorista e ao cobrador ao embarcar, a mesma disputa pra tentar chegar ao lugar de sempre no fundo, as mesmas sacolejadas nos buracos das ruas, os mesmos números das casas passando pela janela, as mesmas pessoas embarcando nos mesmos pontos, o mesmo movimento no terminal, os mesmos ambulantes abrindo suas barracas, os mesmos estudantes a caminho do Regente pelo calçadão, o mesmo cumprimento aos colegas de trabalho que lá já estão — E percebeu que quem fazia a mesma rotina era ele, e não o casal de velhinhos que ficara pra trás.
— Talvez todo dia vejam algo diferente e se divirtam com as coisas bobas que acontecem todo dia por lá… Opa, meu ponto…
Desceu, seguiu para casa e, no caminho, esqueceu o que pensara; talvez amanhã, quando estiver voltando e ver o casal novamente, continue o raciocínio ou começará tudo de novo!

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Vida e morte paranaense


Texto de autoria de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Portal aRede em 15/01/2020, na Folha Paranaense (Jaguariaíva) em 17/01/2020, no Portal D'Ponta Web News em 20/01/2020 e no Diário dos Campos em 05/02/2020..

Outeiros espraiados de tabaco estendem-se até o limite turvo da vista cansada. Nalgum cafundó esquecido desse mundaréu paranaense: ermo interiorano. Mulheres negras passam o dia colhendo fumo e tolhendo a vida. Andando de uma linha à outra da plantação, serviço que não acaba: sagarana cotidiana. Cansaço transpassa a pele mulata e inunda a roupa-trapo. Debaixo do mormaço, as pernas tropicam entre as linhas esburacadas. Calhamaço de folhas cobrem os braços dormentes, as récuas panturrilhas com varizes tatuadas se queixam para os calos dos dedos: psicanálise campesina.
Quando engrossa a chuva na roça, as roupas pesam mais sobre a pele. O cheiro do agrotóxico emerge da terra e das folhas de ouro verde. Faces cabisbaixas e borocoxôs embaixo do chapéu de palha, corpos já molambentos. Desde criança conhecem a educação pelo arado: deixaram de estudar para laborar. Orar para não caducar, dizem as comadres. Oxalá, depois da colheita terá novena, rezar pra Ogum, haja mandinga e oração para tanto sofrimento e lassidão.
O patrão sinaliza; é hora do almoço, sem alvoroço, momento de comer e reclamar das dores. Lavam as mãos, desembrulham a marmita do sacolão de pano, repartem o pão, mexem o virado. Os olhos desacorçoados marejam: não se sabe mais o que é suor e o que é lágrima. Ensejam e farejam outra linha que não essa de agrotóxico.
Depois do almoço, a tarde inda é graúda. A dor nas costas do agachamento constante para colher o fumo que instiga o banzo do curumim sozinho em casa. “Menino cresce e a gente tá longe” – fala uma das mulheres. “Quando chego em casa, nem abraço a minha criança, tô fedida do trabalho” – responde a outra. “Mas fumo nem trabalho é, é escravidão” – reverbera. “Pois é comadre, mas as contas tão aí” – completa. As duas riem e seguem a linha até a silhueta naufragar no cansaço continental.
Quando o fim da tarde se achega, elas voltam para os mocambos, com o sorriso amarelo, roupas pesadas e o palheiro entre os dentes... pigarreando. Tomam tarja preta, descansam e falam para o filho: “dorme com Deus, amanhã é dia de preto.” Noutro dia, acordam antes do sol e trabalham até depois do crepúsculo. Na roça, não há tempo fixo. É preciso encher a estufa, é preciso pagar as contas, a precisão antecipa a saúde, a vida.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Identidade


Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, Ponta Grossa. 

Publicado no Portal aRede em 08/01/2020, na Folha Paranaense (Jaguariaíva) em 09/01/2020 e no Correio Carambeiense em 16/01/2021.

Semanalmente percorro um trecho de rodovia que pouco se afastou do trajeto original de uma estrada tropeira, entre Ponta Grossa e Piraí do Sul.
Tempos atrás, antes de haver travado conhecimento da lida tropeira que o professor Silvestre Alves Gomes difundiu através de suas canções e do Jogo do Tropeiro, cuja criação acompanhei de perto, minha imaginação não teria asas para adentrar as paisagens que avisto pela janela do veículo e enxergar além dos vestígios de campos e capões de mato por entre os traços urbanos que se avizinham da estrada.
Hoje, onde uma placa indica o início de uma bacia, ou manancial, ou uma ponte, é o rio daquele trecho que eu atravesso, ouvindo o rumor das águas, vendo a tropa enfrentar a correnteza com as cabeças erguidas, seguindo a égua madrinha. Diante do Iapó transbordando suas águas para fora do leito, sinto o cheiro do café tropeiro fumegando na trempe da comitiva que espera as águas baixarem para seguir viagem.
Os relatos de Saint-Hilaire tornam-se retratos vivos, quando meus olhos buscam as capivaras, as onças pardas, as antas, que vêm ao rio matar a sede, por entre as ramadas de inúmeras plantas nativas, hoje mescladas de eucaliptos e pinus.
Com um pouco mais de imaginação posso ouvir o sibilar de uma flecha caingangue que, certeira, crava-se à pilastra da varanda do fazendeiro, com que o índio afronta o invasor de suas terras, mostrando que não está disposto a ser vencido sem luta.
Pergunto-me por que o ensino de hoje não difere muito do ensino do meu tempo de estudante, que por estar submetido aos objetivos políticos da ditadura militar, mostrou-se incapaz de libertar as mentes jovens na busca dessa identidade social. Os jovens de hoje, os poucos que se sentem impelidos aos estudos, prendem-se voluntariamente às correntes do liberalismo, do consumismo, do “vestibulismo”. A maioria, nem a isso; apenas isolam-se dentro das escolas, como que num gueto em que se sentem seguros misturados aos demais.
Será preciso ainda mais empenho de professores, jogando luzes sobre erros de nosso passado obscuro, para que as retinas dos jovens ardam ferozmente à vista deles, e para que a dor das verdades embalsamadas nos opacos paninhos mornos da indiferença retumbe em seus tímpanos até que acordem para ouvir e enxergar. E possam, finalmente, compreender o presente e avistar o futuro, tornando-se protagonistas em vez de figurantes no enredo de suas próprias vidas.

Emergência na costura

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Minha mãe nã...