segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Vida e morte paranaense


Texto de autoria de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Portal aRede em 15/01/2020, na Folha Paranaense (Jaguariaíva) em 17/01/2020, no Portal D'Ponta Web News em 20/01/2020 e no Diário dos Campos em 05/02/2020..

Outeiros espraiados de tabaco estendem-se até o limite turvo da vista cansada. Nalgum cafundó esquecido desse mundaréu paranaense: ermo interiorano. Mulheres negras passam o dia colhendo fumo e tolhendo a vida. Andando de uma linha à outra da plantação, serviço que não acaba: sagarana cotidiana. Cansaço transpassa a pele mulata e inunda a roupa-trapo. Debaixo do mormaço, as pernas tropicam entre as linhas esburacadas. Calhamaço de folhas cobrem os braços dormentes, as récuas panturrilhas com varizes tatuadas se queixam para os calos dos dedos: psicanálise campesina.
Quando engrossa a chuva na roça, as roupas pesam mais sobre a pele. O cheiro do agrotóxico emerge da terra e das folhas de ouro verde. Faces cabisbaixas e borocoxôs embaixo do chapéu de palha, corpos já molambentos. Desde criança conhecem a educação pelo arado: deixaram de estudar para laborar. Orar para não caducar, dizem as comadres. Oxalá, depois da colheita terá novena, rezar pra Ogum, haja mandinga e oração para tanto sofrimento e lassidão.
O patrão sinaliza; é hora do almoço, sem alvoroço, momento de comer e reclamar das dores. Lavam as mãos, desembrulham a marmita do sacolão de pano, repartem o pão, mexem o virado. Os olhos desacorçoados marejam: não se sabe mais o que é suor e o que é lágrima. Ensejam e farejam outra linha que não essa de agrotóxico.
Depois do almoço, a tarde inda é graúda. A dor nas costas do agachamento constante para colher o fumo que instiga o banzo do curumim sozinho em casa. “Menino cresce e a gente tá longe” – fala uma das mulheres. “Quando chego em casa, nem abraço a minha criança, tô fedida do trabalho” – responde a outra. “Mas fumo nem trabalho é, é escravidão” – reverbera. “Pois é comadre, mas as contas tão aí” – completa. As duas riem e seguem a linha até a silhueta naufragar no cansaço continental.
Quando o fim da tarde se achega, elas voltam para os mocambos, com o sorriso amarelo, roupas pesadas e o palheiro entre os dentes... pigarreando. Tomam tarja preta, descansam e falam para o filho: “dorme com Deus, amanhã é dia de preto.” Noutro dia, acordam antes do sol e trabalham até depois do crepúsculo. Na roça, não há tempo fixo. É preciso encher a estufa, é preciso pagar as contas, a precisão antecipa a saúde, a vida.

2 comentários:

  1. Bela crônica. O Ouro verde citado no texto não só escraviza os trabalhadores mas também os que consomem. A morte para os dois chega primeiro.

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  2. Muito bonita a crônica. Essa coisa da linguagem coloquial utilizada de forma sofisticada é um entrelaçamento belo.

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