segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Mistério na casa 37

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 10/01/2024, publicado no Diário dos Campos em 29/11/2023, e no Jornal Página Um em 04/03/2024.

Do lado ímpar de uma rua do Bairro Colônia Dona Luíza, fui vizinha de uma família de alemães cuja descendência tinha raízes no Volga.  Construída em madeira há décadas, sobreviveu ao tempo, pela manutenção razoável. Flores e arbustos escondiam tábuas corroídas pelo tempo e pelos insaciáveis cupins que se multiplicavam. O terreno era cercado por ripas largas e grudentas do óleo queimado com o qual foram pintadas. O portão permanecia encimado por um arco entrelaçado de pequenas rosas e seus espinhos pontiagudos.

Que histórias essa casa poderia contar sobre seus jovens anos, sobre a família de seus primeiros moradores? Em épocas de escassez tiveram dificuldades para criar os filhos, alimentá-los e dar-lhes estudo. Enfrentaram a epidemia da gripe asiática no final dos anos 50, mãe e filho acometidos por ela. Febre e geada andando juntas, a caminho da farmácia no amanhecer gelado. Nos festejos de fim de ano, a animação, fartura de comida e bebida eram habituais. Às vezes alguém passava do ponto, dava vexame, sentava sobre os copos, quebrava alguns e desejava aos parentes, com a língua enrolada “Boas Entradas”! “Prost”!

Toda aquela gente foi saindo de lá aos poucos para trabalhar ou morar fora, estudar em cidades com maior potencial de crescimento, os filhos se casaram e foram embora. Os que cumpriram seu tempo de permanência neste planeta estão em sua última morada num jazigo do Cemitério São José, mas algo estranho acontece durante a noite. Alguém continua vivendo lá! Não é de carne e osso. Um fantasma vive no forro de madeira daquela edificação antiga. Ele joga bolinha de gude de madrugada sobre o forro. Cada família que alugava a casa tentava afugentar o indesejado, porém o fantasma insistia em manter-se no mesmo endereço enxotando os inquilinos. As bolinhas corriam pelo forro em toda sua extensão e batiam contra uma viga. Dali rolavam pela parede tocando o piso num ruído incessante. Recomeçava o jogo... Na Vila Hilda do Henrique Thielen havia algo semelhante que até hoje se comenta.

Durante o dia a vida parecia normal, as janelas se abriam expondo cortinas brancas de renda, um cão preguiçoso desfilava vagarosamente pelo espaço ou dormia sobre o tapete convidativo: Bem-vindo. À noite, o breu da escuridão apoderava-se de tudo e o único sinal de vida ou de morte era o som das bolinhas de gude no teto de madeira da velha casa alemã, até o raiar de um novo dia.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

A Barca

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal CulturAção em 28/11/2023, no Portal aRede em 16/01/2024, e publicado no Diário dos Campos em 22/11/2023.

Como bom canceriano, não creio em signos, fluídos, simpatias, energias, unicórnios, horóscopo, destino, karmas, shakras, sortes, figas, sinas e, como sabem todos os que estão na mesma barca, o não acreditar também é uma prisão. Ainda assim, na hierarquia dos esoterismos que abusam de nossa boa-fé, nenhum dos citados rivaliza com certos outros que nos rondam para atacar nos momentos mais inconvenientes.

Há alguns dias, levantei os olhos do chopp para escutar um sujeito que se aproximou oferecendo uma oportunidade única. Tratava-se de uma oferta, na verdade uma embrulhada dos diabos, que envolvia aquisição de Bitcoins (melhor, criptomoedas, sorry, Faria Lima), associada à construção de imóveis que integram um conjunto habitacional que supostamente está saindo nos arrabaldes da cidade. Depois de perguntar o que faço da vida e ouvir de mim que sou engenheiro civil (tenho uma cascata para cada situação dessas, geralmente digo professor de artes, mas resolvi dar corda), disse-me que, “como eu sei”, nossa cidade possui um potencial infinito para o crescimento imobiliário, viabilizando consecução tranquila das expectativas de rendimento. Citou estatísticas de alvarás, construções e edificações liberados pela Administração Municipal, números que posteriormente verifiquei serem autênticos, conforme noticiado pela imprensa local, o que me levou a vê-lo até com alguma simpatia; o mercado do estelionato é competitivo e demanda capacitação continuada.

Lendo as metas que ele rabiscou no guardanapo, confesso, foi difícil manter o semblante neutro de investidor. Em matéria de matemática estou para lá da ignorância, mas, pelas contas que fiz rapidamente, em dez anos, conforme o perfil aplicador moderado (porque ganância é um hábito feio, mas, ainda assim, com possibilidade de a economia andar melhor que o previsto, propiciando retornos ainda maiores) eu lucraria cerca de 10 vezes o PIB brasileiro. Cidade promissora, o nosso Eldorado princesino. Os contadores me aguardem.

Firmei compromisso de fechar negócio no próximo dia útil, dei “meu” telefone (na verdade, o do meu compadre Luiz Felipe, que é engenheiro mesmo e, por morar em outra cidade e não ler estas páginas, vai continuar sem entender por que tantos golpistas o procuram) e meu anjo benfeitor foi embora de passinho curto, sorriso de quem roubou mais uma alma para o Pregão dos trambiqueiros.

Que as procure na próxima barca

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Um curdo entre nós

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal CulturAção em 14/11/2023 e no Portal aRede em 05/12/2023.

Crocheteiras, bordadeiras ou tricoteiras garantem que para desatar um nó no fio ou na lã, basta pensar numa pessoa fofoqueira que ele desata facilmente. Não foi assim tão fácil para uma parente que me relatou sobre os nós que desatou de sua própria história. Foram necessários anos de pesquisa para que a luz desfizesse a dúvida que pairava sobre a origem de seu avô materno. A família acreditava que o jovem que chegara à cidade vindo do Rio Grande do Sul, fosse descendente de espanhóis. Aqui se casou e teve três filhos. Após incansáveis buscas ela puxou o fio da meada e desvendou toda a história do avô. Na verdade, o jovem havia nascido no Curdistão, portanto era um curdo e, pelas constantes invasões da vizinha Turquia ao seu território, fugiu com os pais para a Alemanha. Mais tarde, pelo porto de Barcelona, imigrou sozinho para o Brasil, aos 30 anos de idade. Falava alemão e é sabido que em meados do século XX os alemães aqui não eram bem-vindos, não podiam se reunir com compatriotas, eram até presos se fossem flagrados falando alemão em lugar público. Ele dizia que havia perdido seus documentos, uma maneira de proteger-se escondendo sua identidade. Entretanto, para casar, era imprescindível ter documentos para realizar o ato civil. Um cartório providenciou novos documentos com o nome que ele declarou: Fernandes.  A certidão foi lavrada e nunca houve contestação.

Muito trabalhador e com espírito empreendedor criou a primeira empresa funerária da cidade, situada à Rua Theodoro Rosas (provavelmente). Um dos filhos conta que a funerária do pai ficava em frente à residência da família Wagner, os meninos brincavam juntos conservando a amizade até a idade adulta.

Mais tarde o imigrante construiu uma vulcanizadora de pneus com o nome de Vulcanizadora Cruzeiro, na Rua Saldanha Marinho. O Sr. Fernandes era possuidor de uma personalidade agressiva, brigava à toa, do tipo que não levava desaforo para casa. Talvez por esse motivo o casamento dele tenha durado menos de uma década e veio a inevitável separação do casal.

O sobrenome declarado passou por três gerações até que a pesquisa revelasse seu verdadeiro nome. Contingência de um passado remoto que se extinguirá com o tempo. Entrei para essa família pelo casamento com o filho do Sr. Fernandes quando ele já não estava entre nós. Levou para a sepultura histórias que deixaram de ser contadas, vivências desperdiçadas, restando apenas um sabor amargo de não pertencimento.

Festa de São Cristóvão

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 14/11/2023, no Portal CulturAção em 21/11/2023, e publicado no Diário dos Campos em 10/01/2024.

O dia do padroeiro da Paróquia São Cristóvão é o 25 de julho, mas a grandiosa festa em sua honra, tradicionalmente, vai para o primeiro domingo de agosto, havendo tríduo (um terço de uma novena) na semana anterior, com as conhecidas “barraquinhas”.  Sempre que meu aniversário cai em um domingo, coincide com a festa de São Cristóvão. Lembro de um aniversário em dia de festa, em que mamãe “modista” criou para mim um conjunto de saia plissada e blusinha (o plissé vincado a ferro de passar, mesmo). Vestido novo era uma vez por ano, no aniversário ou no Natal, e aquele veio no dia da festa, como se a festa fosse para mim. Essa coincidência, na minha infância, era motivo de grande alegria. 

Nas proximidades da Igreja, quem não acordasse cedo para assistir à missa solene em honra ao padroeiro, naqueles tempos entoada por Frei Elias – com as respostas litúrgicas a quatro vozes do Coral São Cristóvão, regido pelo saudoso maestro Antônio Marenda –, acordaria, ao final da missa, com o repique festivo dos sinos anunciando o início da procissão. Nas ruas adjacentes à Rua Franco Grilo, começavam o buzinaço e os roncos de caminhões, juntando-se à fila da procissão, muitos com as carrocerias apinhadas de pessoas (antigamente não era proibido!). Desde que a Rodovia do Café foi inaugurada, num domingo, em 25 de julho de 1965, já era por aquela via que a procissão retornava, iniciando na frente da igreja, e percorrendo a Visconde de Mauá, passando pelo Centro em direção ao antigo Posto Presidente, e lá acessando a rodovia. Eu gostava de esperar a procissão passar diante da minha casa, no retorno, pela Rua Franco Grilo, já passando da hora do almoço; as crianças não queriam perder a conta dos caminhões e carros que participaram da procissão, seguindo para a frente da igreja, novamente, para receberem dos freis capuchinhos a bênção dos veículos.

Num certo domingo, eu tinha ido a pé, com vizinhos, ver os carros de corrida participantes da inauguração da rodovia, cujo acesso, de terra, era quase uma trilha. Nenhum carro passou na velocidade que eu imaginara. Eu me divertia mais com os caminhões da procissão, por isso quis participar de uma, em cima de um caminhão, e conhecer, assim, a famosa Rodovia do Café.  Não me recordo se essa aventura aconteceu no ano da inauguração, ou se foi numa coincidência da festa com meu aniversário. Lembro do vento e de meus cabelos açoitando meu rosto, que ardia com o sol quente. Parecia, de fato, uma corrida em alta velocidade.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Nunca gostei de pescar

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, natural de Palmeira, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 26/12/2023, e publicado no Diário dos Campos em 08/11/2023.

Tem um ditado popular que diz “tá estressado, vai pescar”. Infelizmente comigo não funciona. Porém, meu pai era um pescador contumaz. Raramente comia o peixe, mas não perdia uma oportunidade de molhar as minhocas.

Nas quartas-feiras, entre primavera e verão, o rio Caniú era o preferido dele. Descíamos até a Colônia do Lago, por volta das seis da tarde, quando ele saía do trabalho, com o liquinho (lampião a gás), ficávamos até por volta das oito horas da noite “tentiando” os bagres e os lambaris para ver se algum ia para casa conosco. O placar, quase sempre, zero a zero. Saíamos da beira do rio e íamos direto para a JAP tomar um banho de sauna com o Seu Adão, que nos esperava com o fogão de pedras bem quente.

Nos sábados, não raras vezes, íamos para Porto Amazonas, no portinho, na fonte, na balsa, ou na mesa de pedra, para passarmos o dia. Quase sempre ele levava algumas cervejas, refrigerantes, pão, queijo e alguma salada, que satisfazia plenamente seu vegetarianismo. Aliás, tenho mais coisas para contar sobre a mesa de pedra. A seu tempo.

Nos domingos, o passeio era no Recanto dos Papagaios, na BR 277. Enquanto a criançada divertia-se no Rio dos Papagaios, meu pai, com seus caniços, divertia-se enganando lambaris, carás e os bagrinhos fluviais. Nunca soube ao certo quem enganava quem.

Onde me encaixo em tudo isso? Nunca gostei de pescar, tinha e tenho verdadeiro tédio em relação a estar à beira de um rio com um caniço nas mãos. Porém, tinha verdadeira adoração naquele homem que mancava com a perna direita, pouco cabelo, e cujo passatempo e relaxamento preferido era a pescaria. Nunca fui pescar, mas sempre fui acompanhar meu pai em suas aventuras.

Estar com ele, passar em conjunto alguns momentos de paz e tranquilidade, pelos seus preceitos, era, para mim, o ápice de um relacionamento afetivo entre pai e filho.

Tirar as minhocas, naquele canto preparado no fundo do quintal de casa, arrumar as varas, colocar os anzóis, chumbadas, boias e penas, arrumar as tralhas para que nada desse errado, eram momentos ímpares, deliciosos, curtidos pelo pequeno garoto que gostava de estar com seu pai.

Quantas vezes deixei os caniços na beira do rio, sem isca, para não ter o trabalho de sondar se os peixes haviam mordido o recheado anzol e ficava perto de meu pai, assuntando, afim de entender o mundo e a vida. Ele, às vezes me dizia: “fica quieto, piá, senão espanta os peixes”.

Levar para casa um ou dois lambaris ou carás era a verdadeira glória!

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...