terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Inconfidências drummondianas

Texto de autoria de Ludo Santos, jornalista e bancário aposentado, natural de Ponta Grossa, residente em Curitiba.

Lida na Rádio Clube em 25/02/2022, postada no Blog da Mareli Martins em 25/02/2022, no Portal aRede em 09/03/2022, e no Portal CulturAção em 05/10/2022.

Há muitos anos nasci em Ponta Grossa. Principalmente cresci em Ponta Grossa, no bairro de Olarias; por isso sou cinza, frágil, de barro.

A vontade de amar, que tanto lanha a minha alma, vem das paixões ponta-grossenses: as eternas namoradas Beatriz e Julieta saíram de puídos livros da biblioteca pública; as Princesas Sissi e Natasha saltaram da tela do Inajá para o meu reino do faz de conta; e Márcia e Ana Maria chegaram no grupo escolar e recheiam até hoje meu sortimento de memórias.

Uma rua de calçamento começa na linha do trem e vai dar no meu coração. Nessa rua passam os vagões da Rede levando os ferroviários com suas ralas marmitas para as Oficinas; passa o apito das indústrias Wagner avisando o bairro da hora do almoço e a nós crianças da hora do pesadelo, se houvesse bife de fígado no cardápio – até hoje não sei se minha mãe preparava essa iguaria por causa da nossa saúde ou da nossa penúria.

Passa também o grupo escolar com o jardim proibido e as flores que não sei o nome. E uma manhã morna de setembro quando minha redação sobre o dia da árvore foi a escolhida para leitura na rádio. E a fascinação ao entrar no estúdio e lê-la no “Jornal Falado HM” da PRJ2. E de como fui festejado pela minha mãe e pelo Zé Barbeiro na volta para casa (a Ana Maria nem me olhou no dia seguinte - pura dor de cotovelo).

Nessa rua passam meus pais, os vizinhos, os amigos novos e usados, os sonsos, as beatas, as freiras da creche, todos indo purgar os pecados na São Judas Tadeu; e nós coroinhas estrilando os sinos no altar para chamar a atenção dos fiéis, principalmente das meninas em flor.

Passa o casarão dos Ribas no calor de dezembro e a Dona Rute num piano martelando “O Senhor é Meu Pastor” e “Noite Feliz” para o nosso concerto mirim nas casas chiques da Paula Xavier e da Balduíno Taques. Em troca, guloseimas e garrafas de “Caçulinha” à vontade.

Uma rua começa no estádio do Olinda e vai dar na argila barrenta das sete olarias cujos oleiros, com suas mãos pesadas e ásperas, moldaram boa parte da cidade. A nossa preferida era a Cerâmica 12 de Outubro onde confeccionávamos pelotes da mais pura lama para a batalha que sempre perdíamos contra sanhaços, sabiás e tizius. Da cerâmica, só sobraram um portal caindo aos pedaços e uma cratera na qual antes havia o barro donde viemos e para onde espero demorar para voltar.

Sei que enterraram o bairro e um pedaço de mim junto. Não há mais linha férrea, calçamento, igreja de madeira, a cerâmica, o Wagner, a Dona Rute, a minha casa. Somente o menino ainda existe.

 

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O fim de uma cápsula do tempo

Texto de autoria de Daniely Neiverth, jornalista, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 19/02/2022, postada no Portal CulturAção em 28/09/2022.

Sempre fiquei encantada como a minha cidade, Ponta Grossa, consegue parecer tão 2022 e tão 1960, ao mesmo tempo. Basta dar uma passadinha na rua XV de Novembro, Augusto Ribas ou no Calçadão da Coronel Cláudio. Lá, você vai se deparar com placas de lojas em tons vibrantes e locutores anunciando promoções imperdíveis. Tudo isso, tapando uma fachada de arquitetura histórica. É até difícil reparar nos detalhes. Geralmente, acabo ficando mais interessada na promoção mesmo.  

Há cerca de três anos, conheci uma cápsula do tempo nesta cidade. Uma cápsula perdida em uma das ruas citadas acima. Era uma casa que, em sua frente, parecia pequena. Mas carregava uma história que chegava a dar dor de cabeça, com tantas informações.

Mal entrava naquela sala, me deparava com um piano antigo, fotos em preto e branco e inúmeros quadros de palhaços tristes. Parece até assustador. E de fato era. Mas este canto não amedrontava tanto quanto como aquela história seria esquecida, em alguns dias.

Uma cristaleira e um móvel embutido com telefone marcavam outro canto da casa. O pé-direito era alto. Os amarelos e azuis desbotados nas paredes me levaram para outra dimensão.

E lá, naquela sala, havia duas pessoas. Um senhor com seus 90 e poucos anos, e uma senhora também dessa idade. Ele já estava bem mal de saúde. Ela, com Alzheimer. Mas isso não os impedia de contar muitas histórias. E até repetir algumas.

Não tinham filhos juntos. Apenas a senhora, que havia perdido os dois, frutos de outro casamento. A moça morreu de leucemia. O moço, de acidente de carro.  

Na casa de trás, havia uma máquina de costura, fios, e uma estante cheia de pedrarias. Tudo parecia estar remexido, como se alguém estivesse ali há poucos minutos. Mas, descobri que aquele local não era utilizado há, pelo menos, 15 anos. Apenas limpado ao redor.

A máquina estava parada desde que a senhora adquiriu artrite. E, por consequência, também parou de pintar.

O que restava daquela história era apenas uma casa fria, quieta, com as vozes e passos de cuidadores de idosos e enfermeiros que andavam para lá e para cá.

Pouco tempo depois, o senhor morreu. A sua esposa não foi informada, por conta do Alzheimer. A dor de descobrir umas seis vezes por dia que seu marido havia falecido parecia ser forte demais.

Ela foi para o asilo e a casa se tornou mais uma loja. Uma daquelas que fora descrita no início deste texto.

E assim acaba essa história. Desculpe se esperava um belo final. Mas foi assim que terminou a vida daquele casal.

 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Clamor canino

Texto de autoria de Eduardo Pauliki Solek Ferreira, estudante de Ciências Jurídicas, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 12/02/2022.

Ao saborear a crônica “Retalhos do Interior” de Francielly da Rosa, avistei um personagem bem comum neste centro-oriente paranaense. Por muitos despercebido e até preterido: o digníssimo guaipeca caramelo.

Ora devorando do chão aquela fração de carne que escapuliu do pastel de feira, ora adoidado quando vem o celetista amarelo para quebrar o jejum da caixinha de correspondências, haverá sempre aqui ou acolá o dito cujo. Sua procedência é uma incógnita. Definições transbordam. Seria um cão desprovido de raça? Ou fruto de um sincretismo genético tão perfeito que acabara dando-lhe uma feição incomparável? Algo é certo. Não é protótipo de rottweiler, tampouco pug. Ele simplesmente é o que é.

Não é novidade que a confiança foi enfraquecida por uma dose de mau-caratismo nas relações interpessoais da vida contemporânea. Queres uma boa notícia? O cão mestiço nunca te fará mal! Aliás, disposição a não deixar-te aos prantos é praticamente garantida. Insta revelar que num desses sonhos de verão, a pulga de um guaipeca contou-me “fabulamente” que os ancestrais do caramelo de quatro patas estiveram em momentos épicos do Estado. Já pensou? Ah! Quão privilegiado o guaipeca que testemunhou a vibração dos visionários da 5ª Comarca quando essa se tornara a província autônoma que hoje nos acolhe! Quão privilegiado o guaipeca que presenciou a passagem eufórica de Getúlio pela região quando faria eclodir a Revolução de 30! Entretanto, não nos enganemos. Nem tudo é um mar de rosas. Por exemplo, quão prejudicado aquele sem lar quando viera a geada negra de 75!

Mesmo que se pressione veementemente o botão pela causa animal, incluindo a lei 14.064/20 que endureceu a punição aos infratores, por que persiste uma matilha de vira-latas carecendo de dono? “Tá bom, mas veja bem, prefiro um de raça, pois...” Não me venhas com conjunções explicativas! Não notas que o guaipeca é tão virtuoso que chega a provocar dor de cotovelo nos pedigrees? Coloque um vira-lata para farejar poesia sob noites de luar. Verás que uivará numa conexão transcendental com o satélite natural. Já o pedigree, coitado, esse foi alienado a ficar quase o dia inteiro trancafiado em condomínios na melancólica companhia de brinquedos de látex. Enquanto esse faz careta à polenta, aquele está para o que der e vier. Dispensa birra e sorri por tudo. Como são fortes os vira-latas de rua!

 

Emergência na costura

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Minha mãe nã...