terça-feira, 31 de agosto de 2021

Os sons de minha cidade

Texto de autoria de Francielly da Rosa, professora da rede municipal de Ponta Grossa e estudante de Letras na UEPG.

Publicada no Correio Carambeiense em 07/09/2021, postada no Portal aRede em 29/09/2021, lida na Rádio Clube e postada no Blog da Mareli Martins em 18/02/2022 e postada no Portal CulturAção em 11/08/2022.

Minha terra princesina há tempos desponta progresso, inicialmente com o barulho do trotar dos cavalos dos tropeiros, depois o som advindo das linhas férreas aqui instaladas. Pensava sobre isso ao avistar o Memorial do Tropeirismo na Rua Silva Jardim. Eis aí um som que não se ouve mais. O bater dos cascos dos cavalos adormece na memória de quem um dia os ouviu, e estes, por sua vez, adormecem eternamente no berço desta terra.

Hoje ouve-se o sino da catedral, o tagarelar dos transeuntes, o barulho do trânsito e das construções. Em outros tempos, penso comigo, talvez tudo que se podia ouvir era o vento cortando as árvores, os passarinhos de variadas espécies agraciando a mata com sua cantoria, o som dos animais, a água de pequenas vertentes banhando gentilmente a terra.

“Quais foram os sons de minha cidade?” Pergunto-me, e a dúvida intriga-me muito mais do que a pergunta. Comumente em minha infância, aos fins de semana, a família se reunia e ao chegar a tarde meus tios e avós acompanhados de um violão cantarolavam alguma música tão antiga quanto posso imaginar, contando histórias de tempos que não me pertenceram, mas que muito me chamavam atenção. Então, quando se fazia noite, todos se despediam com um sorriso no rosto e recolhiam-se em suas casas, cedendo lugar aos cantores noturnos da natureza.

Em algum momento surgiram os ventos da mudança. O som dos cascos foi substituído pelo ronco dos motores, o som das violas por caixinhas de som via bluetooth, o silêncio dos campos pelo barulho das construções. Quem me dera viver em outros tempos! Lembro-me de ouvir os sons dos pássaros anunciando o dia, quando passava a noite em casa de meus avós, as árvores sacudiam as folhas, ouvia-se o cantar das cigarras, o barulho da chaleira no fogão a lenha, admirava-se as coisas naturais que compunham o dia até o anoitecer com a revoada de vagalumes e o cantar dos grilos e corujas. Por onde anda tudo isso?

Os sons da minha cidade hoje são outros, e para os que vieram antes de mim, acredito que podem trazer recordações de sons ainda mais antigos, adormecidos no tempo. Bom, mas apesar disso ninguém pode roubar os sons que ouvimos com o nosso coração e com a nossa memória. Então cada vez que passo pelo Memorial do Tropeirismo não posso deixar de “ouvir e ver” alguns tropeiros cavalgando e abrindo caminho entre as matas, com expressões sérias, outras curiosas e talvez algum deles pensasse “Este é o som do progresso!”.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Hortifruti do Tozetto

 

Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Postada no Portal NCG.news em 23/08/2021 e no Portal aRede em 22/09/2021, publicada no Correio Carambeiense em 28/08/2021 e no Jornal Diário dos Campos, em 05/07/2022.

Nos anos noventa, caminhar pelos corredores do tradicional mercado ponta-grossense poderia ser uma aventura divertida, ou irritante ─ dependendo das posições dos astros e das suas conjugações, dos níveis hormonais na corrente sanguínea, do extrato bancário ou mesmo da quina da cama; afinal, sempre é possível cair em ruínas ao bater a extremidade rica em receptores sensoriais do quase inútil dedinho.

Na entrada do mercado, os olhos cobertos por sobrancelhas grossas e a boca fina recolhida para baixo do tapete de bigodes do fiscal de loja fitavam o homem segurando sua filha no colo. Sentado nas redondezas da prateleira de jornais, cumpria o aterrorizante papel de poderio foucaultiano aos transgressores da ordem daquele estabelecimento comercial.

A menina, no colo do pai, não deixa o temor impedi-la. Com a destreza de esconder-se, caminha furtivamente até as ilhas de frutas. Ilha de banana. Ilha de chuchu. Ilha de batatas: a preferida. Senta-se prontamente no chão, em um local onde não é possível enxergarem-na, ela esperava pacientemente a sua próxima vítima.

O homem de calças largas, sapato escuro e blusa de moletom parecia ranzinza o suficiente para receber ogivas de batatas. Antes, precisava praticar ─ no chão ao lado de um senhor. Na ilha ao lado e na de tomates. Tudo certo, a mira estava calibrada. Observando os movimentos do desconhecido de face sisuda, escolheu o momento exato na sua tática precisa.

E um clarão de batatas surgiu. O homem, deu um leve sobressalto. “Batatas”. Atingido por duas batatas. Retirado da introspecção que o remetia aos problemas da vida adulta, buscou perturbado ao seu redor. Olhou para cima. Olhou sobre os ombros. Sua face enrugada denunciava a irritação por ser retirado de suas lamentações internas. Remoendo seus problemas, observou a menina encolhida aos risos.

Prontamente abriu um sorriso largo, devolvendo as batatas à menina e devolvendo à sua face uma serenidade esquecida nos últimos dias.

Repreendida por seu pai, mas aos risos, a menina divertia-se com suas pequenas transgressões. A próxima? Afundar as órbitas oculares dos peixes da peixaria. Ao menos, até que seja pega em flagrante delito pelas tecnologias de monitoramento do século XXI.

Aos vencedores, as batatas... Mais precisamente, as do mercado ponta-grossense.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Casa que habita em mim

Texto de autoria de Lenita Stark, artista visual, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 21/08/2021 e no Diário dos Campos em 30/03/2022, postada no Portal aRede em 09/09/2021, no Blog da Mareli Martins em 17/09/2021 e no Portal CulturAção em 12/07/2022, lida na Rádio Clube de Ponta Grossa em 17/09/2021.

A casa da minha infância era um casarão caiado, de madeira falquejada, na beira da rua, de terra batida. O telheiro era de tabuinhas de pinheiro, não havia banheiro, o banho era de bacia no quarto onde a gente dormia. Portas e janelas com tramelas. A cozinha era o palco, com fogão a lenha, onde a minha avozinha narrava seus causos, lugar preferido da casa, em que a gente mais ficava, curiosas para ouvir os causos de visagens que ela nos contava. No quintal havia uma fornalha, o dia de assar pães era sempre uma festa para nós, crianças, desde o início do fogo até os pães ficarem prontos — não arredávamos os pés do quintal, o cheiro da fumaça e o aroma do pão assado mesclavam-se com o perfume das flores cultivadas pela avozinha, ao redor da casa. Era para nós um momento especial.  Nos arredores do casarão havia muitas árvores frondosas, fazíamos perigosas incursões em seus galhos.

À noite, as tábuas das paredes falavam — entre estalos dialogavam. Pelas frestas da parede o vento entrava uivando pela casa — debaixo das cobertas a gente suava frio de medo. Antes do sono chegar não contávamos carneirinhos, a contagem era dos sarrafos nas paredes do quarto.

Assim, cultivei sentimentos — memória afetiva, por esses espaços singulares de habitação, que, com zelo e manutenção resistem ao tempo; quando uma tábua padece, troca-se, tudo nela é dedicação e carinho, uma casa de madeira é como um ninho, sempre é possível uma transformação para maior conforto. 

Participei de um grupo de desenhos ao ar livre; em nossos encontros, conheci e retratei memoráveis habitações de madeira, de nossa cidade, muitas construídas por imigrantes: poloneses, alemães, italianos e ucranianos.

Em Ponta Grossa foram construídas dezenas de casas de madeira, entre as décadas de 1920 até 1950, uma época em que a madeira era farta e a concretude ainda não tinha invadido os sonhos de moradia das pessoas. As casas eram românticas, as varandas, convite para um chimarrão no fim da tarde. Beirais com belíssimos lambrequins como adornos, quintais conservados, com plantas da época, jardins ao redor da casa. Arquiteturas que transmitem significado de existências passadas. Mãos talentosas de imigrantes, mestres carpinteiros, que deixaram um legado precioso em nossa região. 

Casas que conservam a essência de seus habitantes, marcas de humanidade em suas dependências. São legados do passado, que logo deixarão de fazer parte do nosso cenário urbano.

Ponta Grossa: cadê os bares?

Texto de autoria de Mouzar Benedito da Silva, jornalista, residente em São Paulo.

 Postada no Portal D'Ponta News em 20/08/2021, publicada no Correio Carambeiense em 11/09/2021 e no Diário dos Campos em 23/03/2022.

Minha segunda passagem por Ponta Grossa foi em 1997, com a Célia, minha mulher. Quis refazer de ônibus a primeira viagem que fiz para o Sul uns vinte e poucos anos antes, de trem.

Na primeira viagem, ficava só uma noite em cada cidade e não deu para conhecer Vila Velha, que eu queria muito. Então desta vez decidimos parar no mínimo dois dias na cidade.

Ponta Grossa tinha crescido bastante. Melhorou? Em muitos aspectos, sim. Mas como ocorreu em quase tudo quanto é cidade brasileira, piorou em outros.

Na primeira viagem, me hospedei num hotel de tábuas, um sobrado, quase ao lado da estação. Deixei as coisas lá e fui direto para a praça principal, poucos minutos de caminhada. Era bonita, tinha uns bons bares e restaurantes e um cinema bom.

Depois de bebericar por ali, dar um passeio, resolvi ir ao cinema, estava passando o filme “A casa da noite eterna”. Assisti e voltei para o hotel. Se eu tivesse medo de assombração, não teria dormido, pois as tábuas estalavam de vez em quando. E eu tinha acabado de assistir a um filme de terror.

Bom, mas vamos ao que me frustrou, além da já esperada extinção do transporte ferroviário, que vinha sendo detonado no Brasil inteiro. A praça que eu achei tão bonita estava com ares decadentes, não dava gosto passear por ela. Bares... Ah, não vivo sem eles. Não achava um legal. Falei pra Célia: “Vamos pra praça onde fica a Universidade. Estudantes frequentam bares”. Fomos e havia bares sim, mas não gostamos deles.

Voltamos para o hotel e brinquei com o rapaz da recepção, perguntando se não tinha bons bares na cidade. E ele respondeu, indicando um concorrente: “Tem sim... O bar do hotel tal é muito bom”. Fomos lá, meio com o pé atrás. E não é que o bar era muito bom mesmo? Tinha um pianista tocando muito bem, e havia boas bebidas a preços bem baixos. “Compradas no Paraguai, por isso são tão baratas”, pensei. Será que eram falsificadas? Não eram. Rum cubano e uísque escocês a preços bem baratinhos.

Perguntei ao garçom que uísque me recomendava e ele foi seco: “Bala 12”. Uísque escocês com esse nome? Bom... Vamos ver. Pedi e ele veio com a garrafa servir. Em Ponta Grossa, Ballantine’s 12 anos era Bala 12. Gostei.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Maria-fumaça do Guaragi

Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 14/08/2021 e no Diário dos Campos em 25/08/2021, postada no Portal D'Ponta News em 15/08/2021, no Portal aRede em 01/09/2021 e no Portal CulturAção em 23/08/2022, lida na Rádio Clube e postada no Portal da Mareli Martins em 11/03/2022 e 26/11/2022.

O vapor das revoluções, o vapor das indústrias, é também o vapor que locomoveu e transportou as pessoas nos dois séculos passados. A termodinâmica envolvida trouxe, também, os imigrantes a essas terras quase esquecidas.

A Maria protagonizou histórias que não caberiam em mil livros. Em suas fumaças, deixava retornar à atmosfera a molécula essencial da vida. Mas não só! Também evaporavam os momentos ali dentro vividos. A magia do trem – vibração, imponente barulho, cheiro característico, espera, maquinista.

Para além da quase mágica experiência em trilhar um caminho, literalmente; as marcas das memórias de um sábado em 1965 permeiam as conexões neurais dos envolvidos. Guaragi, dos colonos alemães, poloneses e russos, também era Guaragi dos peixes.

Os dentes da locomotiva rastejavam rente aos trilhos, vorazmente aproximando-se dos Campos Gerais. Assim, os três filhos de imigrantes poloneses e um menino de sete anos partiram na Maria rumo a Guaragi. Carregavam a vara de pescar e um lanche modesto.

Dia findo, os peixes esquivaram-se todos. Como diria a música do Tremendão, também de 1965, “não quiseram cooperar”.

Na volta da Maria, os três irmãos jogaram-se no vagão. A locomotiva aumentava a velocidade, as rodas giravam cada vez mais rapidamente. A fumaça era cada vez mais exalada e riam os três sentados no vagão. Mas algo faltava.

O menino. Correndo contra os últimos raios solares na beira dos trilhos. Seu pai mordia um pedaço de palha e olhava o céu, dentro do vagão. Quando superando os altos sons do trem, um grito de seu irmão o retirou da meditação contemplativa.

“Olha lá o Carlinhos!”, gritou um dos tios. O menino corria de cabelos esvoaçantes, como se sua vida dependesse das suas pernas largas e finas.

“Carlinhooooooos”.

E as mãos em atos desesperados, desses gestos que as chacoalham em detrimento da angústia, buscavam alcançar o leve e raquítico menino. Antes de um obstáculo impedir que alcançassem o menino, agarraram-no.

Após alguns instantes, evaporado o suor, recobrado o fôlego e em tom de calmaria, o pai sussurra ao menino em tom ameaçador: “Não conte NUNCA para a sua mãe!”.

Feito vapor, o segredo esvaiu-se pela atmosfera.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Personagem tibagiano

Texto de autoria de Nery Aparecido Assunção, escritor, historiador, funcionário da Prefeitura de Tibagi, diretor do Museu Histórico Desembargador Edmundo Mercer Júnior.

Publicada no Correio Carambeiense em 07/08/2021, postada no Portal aRede em 25/08/2021.

                                                       Quando escrevi essa crônica “Nho Orico" ainda era vivo.

Saindo logo de manhã, pelas ruas de Tibagi, segue em direção à rodoviária, com os braços cruzados para trás, estilo e pose de nobre, caminha lentamente, a figura folclórica do Nhô Orico. Chega à rodoviária, olha a saída dos ônibus, observa as pessoas que desembarcam e, lentamente, senta-se em um banco da rodoviária, olha os passageiros que descem do ônibus.

Em época outrora, Nhô Orico ajudava a levar as bagagens dos tibagianos que chegavam de viagens. O que passa pela sua cabeça?

O que pensa ao olhar a transformação dos tempos balançando sua perna no banquinho?

Na quietude do tempo, levanta-se e segue caminhando pela rua Almeida Taques, olhando cuidadosamente ao cruzar as travessas. Na escuta de um barulho de automóvel ele toma cuidado e após não haver mais perigo atravessa a rua.

Chegando à Praça Matriz, olha o movimento, pessoas o cumprimentam. Responde ele bom dia ou “bueno”. Para pessoas que estima, ele pede “bença madrinha” e beija a mão da protetora. Chega à padaria do senhor Nivan, toma um café, se alimenta de um sanduíche, sempre oferecidos por algum cidadão que o estima. Sempre agradece dizendo “Deus que Ajude”, fica por alguns minutos e sai da padaria, cumprimenta os taxistas.

Aproxima-se da agência bancária, olha o movimento da porta giratória.

Atravessa a rua, lembra-se do seu quadro pintado pela artista Margarida que ficava em exposição no antigo banco, nos dias de hoje em exposição no Museu Histórico.

Ao passar em frente à Igreja Matriz olha e faz seu agradecimento católico e segue em direção do Museu. Lentamente ele sobe a escada e sorrateiramente se aproxima, fica por alguns minutos olhando algumas fotografias, Nhô Orico reconhecia as pessoas nas fotos usando esse termo: “Ah! Eu me lembro sim”.

Sai do museu com destino à lanchonete Varandão, ao cruzar com as pessoas, algumas lhe perguntam: e o Palmeiras, Nhô Orico? Solta ele uma gargalhada. Senta-se em um banco em frente à biblioteca por alguns minutos. Levanta-se e segue em direção à lanchonete, olha o movimento, passa silenciosamente a murmurar: “eu já chego lá”. Logo chega ao seu destino, a lanchonete Varandão, senta-se em uma cadeira, olha alguns lances na televisão, por ali faz a refeição, tira um cochilo momentâneo. Logo em seguida retira-se e volta para casa. Saudoso Nhô Orico deixou saudade! Doador de sangue, salvou diversas vidas, cidadão Benemérito de Tibagi – seu nome era Eurico Pastorino Ribeiro Taques.

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...