terça-feira, 29 de março de 2022

Distopia

Texto de autoria de Marcelo Derbli Schafranski, médico reumatologista, Ponta Grossa.

Publicada no Diário dos Campos em 01/06/2022.

Da sacada observo a Praça Barão do Rio Branco. A obrigatoriedade de permanecer em casa nos leva a executar tarefas que habitualmente não faríamos. Pesquisar quem foi o Barão, por exemplo. Surpreendo-me. Advogado, entre outras várias profissões, e patrono da diplomacia brasileira. Já se vão quase sessenta anos desde que para cá me mudei. Nunca vi a praça tão vazia. Arrepiante. Um inimigo invisível e imprevisível segue livre. Um vírus. Por extenso, coronavírus; abreviado, COVID-19. Onde há diálogo, se ouve esse nome.

Ligar a televisão não ajuda muito ─ atrapalha. A era da informação trouxe consigo, além de um oceano de notícias cujo acompanhamento é praticamente impossível, as notícias falsas. Tablet não uso e meu celular faz apenas ligações ─ sou um velho não muito afeito à modernidade. Mas não escapei de conectar a internet ao computador de mesa.

Por outro lado, tenho paixão pelo cinema ─ sinto muito a sua falta. O amor pela sétima arte iniciou com as belas atrizes dos anos 60. Não havia como não se apaixonar. E o cenário atual é cinematográfico, fantástico, ficcional, diria até mesmo surreal. Lembro-me do Cine Inajá, na Sete de Setembro, onde assisti ao filme “Epidemia”. Estamos vivendo o seu enredo como pequenos “Dustin Hoffmans”.

A atmosfera impele-me a ampliar ainda mais o hábito da leitura. Espero que as novas condutas não nos conduzam ao cenário das duas mais famosas distopias da literatura: Admirável Mundo Novo, de Huxley e 1984, de Orwell.      

Comércio fechado, confinamento, isolamento social, quase que a proibição do contato físico entre as pessoas. Uso de máscaras, luvas e outras formas de proteção, algumas com fundamentação científica, outras que beiram o patético. Até mesmo o uso do dinheiro, em cuja nota a face do citado Barão já esteve um dia estampada, está sendo desencorajado pelo risco de contágio.

O controle social nunca foi tão intenso, mas desta feita, para o bem. Entretanto, diferentemente do “Grande Irmão” de Orwell, que a tudo via e tudo fiscalizava, hoje somos todos pequenos irmãos em mútua colaboração. E, como o Selvagem de Huxley, que pretendia retornar ao seu lar e aos seus velhos hábitos de vida, desejamos também agora, como nunca, nos tornarmos novamente humanos em sua plenitude.

Escrevo estas palavras em abril de 2020, auge da pandemia. Mas tenho a convicção de que Ponta Grossa tudo superará e, em breve, comemoraremos aliviados o bicentenário do nosso município.

 

segunda-feira, 21 de março de 2022

Quase Jorge

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede em 06/04/2022 e no Portal CulturAção em 08/04/2022.

O primogênito de meus avós paternos Luísa e Pedro já tinha seu nome escolhido desde que ela viu seu ventre crescendo pouco a pouco e percebeu que gerava um filho. Não havia aparelhos de ultrassom que detectassem o sexo dos bebês, em 1920. Contudo, ela sentia que seria um menino. As senhoras mais experientes pressagiavam que, pela forma que a barriga tomava, seria possível determinar o sexo do bebê. Faziam conjeturas usando fio e agulha virgens, balançando como um pêndulo sobre a palma da mão da gestante. Tudo levava a crer que seria um menino. Nasceria no Brasil, terra que a família escolheu quando emigrou da Rússia. Na Rua Bahia, Bairro Órfãs, uma espaçosa casa de madeira era sua morada. A janela do sótão alto, um mirante.

As previsões se fizeram realidade e um brasileirinho alemão-russo, forte e saudável, nasceu. Dali avistava os verdes Campos Gerais refletindo no verde dos seus olhos. A família de católicos fervorosos já pensou no batizado do pequeno para estar alinhada com as leis da igreja. Na pia batismal da Igreja São José recebeu o primeiro sacramento de um cristão. Era costume da época delegar ao padrinho a incumbência de fazer o registro civil do afilhado. Vó Luísa salientou o desejo de dar ao seu recém-nascido o nome de Jorge. Voltando do cartório, o padrinho tinha em mãos a certidão de nascimento daquele que viria a ser o meu pai. Para surpresa dela, o menino foi registrado com o nome de Adão, o mesmo nome do padrinho. Meus avós engoliram o amargor da constatação com um copo de água açucarada, mas não o desaforo do compadre pela imperdoável atitude. Sempre chamaram-no de Adam dentro da família. Fora dela o nome da certidão foi sendo escrito nos boletins escolares da Escola Verde (hoje Colégio Santana), no serviço militar, nas atividades sociais e esportivas do Clube Palmeira, onde jogou futebol e compôs a diretoria por algum tempo, no registro de casamento, de nascimento dos filhos e na placa do seu comércio “Sapataria Adão”.

No triângulo formado pela confluência das ruas Rio de Janeiro e Henrique Degraf, atrás do Asilo São Vicente de Paulo, o endereço era conhecido por inúmeras pessoas que utilizavam seu trabalho na reforma de calçados. Não era Jorge, mas foi um cidadão ponta-grossense que honrou o nome que lhe foi dado à revelia. E o soldado Adão Buss  honrou também a pátria como combatente na Segunda Guerra Mundial.

 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Toca das onças

Texto de autoria de Mário Francisco Oberst Pavelec, técnico em agropecuária, residente em Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede em 30/03/2022 e no Portal CulturAção em 08/04/2022.

O Tropeirismo foi uma das mais relevantes atividades econômicas para o desenvolvimento da região dos Campos Gerais.

Gado vindo do sul era, muitas vezes, invernado em nossos pastos naturais, para depois ser vendido em Sorocaba, ou outras cidades do interior paulista.

Mas o que pouco se comenta é que esse também era um caminho de volta, aonde os tropeiros retornavam com mercadorias e dinheiro, muito dinheiro, resultado da venda dos animais. Também sabedores desse fato, salteadores rondavam o caminho, buscando oportunidades para subtrair esses recursos.

Em sua grande maioria, estas onças de prata e de ouro, dinheiro corrente na época, eram armazenados em alforjes, nas selas dos cavalos, distribuídos entre os chefes das tropas, para permitir uma parcial proteção desses valores, pois, caso um fosse atacado, os outros poderiam buscar fuga e proteção, preservando suas vidas e as onças.

Por inúmeras vezes, os capatazes desviavam um bom tanto dos caminhos tradicionais da trilha, para o leste, buscando as proteções que as rochas da Escarpa Devoniana ofereciam. Muitos buracos, fendas e pequenos córregos, que ocorrem no arenito, eram locais perfeitos para esconder seus tesouros para serem recuperados tempos depois.

Mas nem tudo é perfeito. Por ser uma região muito ampla, com sítios muito parecidos, córregos e vegetação suscetíveis às intempéries, os capatazes, não raras vezes, não conseguiam encontrar as “tocas das onças”, perdendo-se então esses tesouros. Acredita-se que, na região do rio São Jorge, até as cabeceiras do rio Tibagi, é possível encontrar as tocas das onças ainda intactas, preservadas, e com todo o conteúdo de seus tesouros.

Os tropeiros já se banhavam na Mariquinha, no Buraco do Padre, São Jorge etc., muito antes desses se tornarem os pontos turísticos tão característicos de nossa região. Porém, mais que o refresco, esses locais serviam de referências para que as tocas das onças fossem recuperadas.

Poucos conhecem essa história, pois ela é repassada de pai para filho, dentro das famílias dos tropeiros capatazes, com severas recomendações para que não se espalhe àqueles que não teriam o direito a recuperar as onças. Reza ainda a lenda que uma maldição era proferida sobre o ouro e a prata, para, caso não fosse encontrada por quem de direito, trouxesse miséria e não riqueza.

 

terça-feira, 8 de março de 2022

O velho ponta-grossense

Texto de autoria de Marcelo Derbli Schafranski, médico reumatologista, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 12/03/2022 e no Diário dos Campos em 06/04/2022, postada no Portal aRede em 23/03/2022, no Blog da Mareli Martins em 08/04/2022, e no Portal CulturAção em 08/09/2022, lida na Rádio Clube em 08/04/2022.

Nosso último encontro aconteceu na Rua XV de Novembro, mas já não me recordo há quanto tempo. Como de hábito aos domingos pela manhã, deixei o meu apartamento nas redondezas para tomar um café e, ao entrar no recinto, avistei-o casualmente ao fundo, sentado a uma mesa e lendo o jornal. Sempre bem-vestido, trajando desta feita um terno finamente talhado, sapatos de couro brilhante e chapéu. Aproximei-me, sentei-me, demos um aperto de mão e permaneci em silêncio.

Como em outras vezes, aquele senhor começou a me contar suas recordações. Algumas delas eu já conhecia, mas, como bom ouvinte, não lhe interrompi. Estórias repetidas são de valor inestimável, locutor quanto o interlocutor não são exatamente os mesmos da conversa anterior.

Descreveu-me uma Ponta Grossa pretérita, agradavelmente vivida e curtida. Paqueras na Avenida Vicente Machado, sessões de cinema no Cine e Teatro Ópera, domingos de clássico Ope-Guá e bailes de Carnaval no Clube Pontagrossense, com as famílias impecavelmente vestidas. Namoros à distância, até que o amor se provasse real, verdadeiro e eterno. Filho de um médico, descrevia em detalhes fatos dos hospitais São Lucas e 26 de Outubro, em uma época em que se operava sem luvas cirúrgicas. Brincou que se considerava um ponta-grossense originalíssimo, por ter se casado na Catedral e possuir um jazigo no Cemitério São José. Lamentou-se apenas de não poder ter conhecido as belezas naturais da cidade em virtude de um reumatismo que dificultava seu caminhar.

Veio-me uma reflexão: todos conhecemos pessoas como ele, sejam pertencentes à família ou não. Mas não as aproveitamos. Perdemos tempo com frivolidades e deixamos de conhecer a história contada pelos seus próprios protagonistas. Parte da vida é esquecida, memórias se apagam e a tradição se deteriora.

Ao retornar à mesa, percebi que o velho já tinha se ido (gosto do termo “velho”, emana sabedoria, não me importaria de ser chamado dessa forma).

Ao sair, parei para apreciar as inúmeras fotografias em preto e branco expostas na parede do botequim. Uma me chamou particularmente a atenção: a de uma multidão anônima e apressada desembarcando no que hoje se conhece por Estação Saudade. Pessoas que ajudaram a construir uma cidade. Quis acreditar que entre elas se encontravam, além do velho ponta-grossense, meus bisavós, avós e outros familiares. Conversaria com eles mais e melhor, e sobretudo lhes agradeceria pela grande Princesa dos Campos Gerais que nos deixaram como legado.

 

terça-feira, 1 de março de 2022

Rupturas

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Fratura, ruptura, fenda, quebradura, divisão de algo em partes menores. Quantas coisas se rompem, se partem, se quebram, se dividem, produzem fendas! Se rompem objetos antigos de valor afetivo. Se rompem namoros, noivados ou casamentos cujas juras trocadas foram de união e amor eternos. Se rompem correntinhas de ouro, como aquela linda pulseira que foi meu presente de 15 anos. Se rompem cadeados num litígio por herança, apegos financeiros vis e ignóbeis. Nas relações sociais ou familiares acontecem rupturas, algumas passageiras, por mil motivos, outras irreversíveis. Se abrem fendas abissais sem a possibilidade de transpô-las. A rachadura permanece viva, machucando a memória. Em qualquer uma dessas situações há sofrimento em variados níveis, lembranças amargas, arrependimentos e tantos outros sentimentos, inclusive a dor. Dor na alma, ressentimentos, quebra de confiança.

Nasci e cresci em Ponta Grossa, percorrendo as suas, tão celebradas em cantos, versos e prosas, subidas, descidas e escadarias. Paradoxalmente, foi no piso plano do meu próprio quarto, numa escura madrugada sem lua, que inesperada queda produziu uma fratura no meu antebraço. O osso rádio se quebrou exatamente na articulação do pulso. Dor física, cicatrização mais lenta. As talas de gesso até o cotovelo, deixando à mostra somente as pontas dos dedos, são incômodas. Dormir assemelha-se a estar pregada a uma viga de madeira dura, pesada, inflexível, largada sobre a cama. De manhã, o hábito de levar as duas mãos molhadas de água fresca para lavar o rosto está temporariamente suspenso. A prece pedindo paciência é feita sem juntar as mãos. Paciência! Não há o que fazer senão aguardar que o tempo, que está sem pressa, um dia aporte no calendário e traga consigo o alívio da retirada de tão incômoda massa calcária necessária à imobilização.

Havendo presenciado tantos tipos de rupturas pelos caminhos da vida, fico aqui me perguntando: Que ruptura dói mais? Seriam mensuráveis? Quais delas poderiam ter sido evitadas? Ah, se me fosse concedido o privilégio de escolher por quais rupturas deveria atravessar! Optaria por vivenciar somente a ruptura do lacre de uma garrafa de vinho em noites de outono.

 

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...