segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Cliente-de-caderno

Texto de autoria de Alfredo Mourão, aposentado, graduado e especialista em Letras - UEPG, criador de textos e contador de histórias, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal Culturação em 03/10/2023, no Portal aRede em 17/10/2023, no Portal TánoTipo no dia 01/11/2023, e publicado no Diário dos Campos em 27/09/2023.

    Mal tinha iniciado o bota-fora do esporádico limpa-gavetas quando me deparei com uma caderneta de compras (do tempo que se comprava “fiado” no caderno), cujas anotações vão de março de 1949 a julho de 1950.

    Capa dura descorada, escrevinhada à caneta-tinteiro em letras esmaecidas, onde consta: ARMAZÉM LAVINO MORO. CADERNERTA DO SR. ORLANDO MOURÃO DE ANDRADE. Nº 23. (Meu pai!) Nas páginas internas, entre verticais e horizontais contábeis, produtos escrevinhados a lápis (de boa qualidade, pois a escrevinhança está bem preservada) com os respectivos preços em cruzeiro-antigo, totais e transportes de uma página a outra, com muito cuidado e transparência. O ARMAZÉM MORO localizava-se na bifurcação das ruas Silva Jardim e Sant´Ana, na entrada do Bairro de Olarias.

    Como só cheguei nesse mundão de Deus em 1953, recorri a algumas pesquisas. Vivia-se à época o governo (re) democrático do General Eurico Gaspar Dutra (1946/1951), com o fim do Estado Novo, período também nomeado como 4ª República. À mesma época os compromissos eram firmados no fio-do-bigode, havendo (ampla) confiança mútua entre as partes. Fiado documentado.

    Manuseando o achado saudosista, outro detalhe me chamou a atenção. No fechamento de cada mês, passada a linha e puxado o total, grudavam-se dois selos (literalmente molhados na ponta da língua) à página da totalização (um de 0,80 centavos e outro de 0,50 centavos). Sobre os selos quitava-se o pagamento pelo escrevinhador: RECEBI. PONTA GROSSA, 02 DE SETEMBRO DE 1949. (ass.) LAVINO NADAL MORO (tudo por extenso).

    Vendia-se de tudo um pouco naquele armazém de secos e molhados. Trigo, açúcar, sal, café, macarrão, arroz, feijão, pão, linguiça, banha, goiabada, frutas em conserva, frutas in natura, legumes, sardinha, vinagre, vinho... Sabonete, vela, papéis de carta e envelopes, vassouras, tamancos... Alguns preços caíram de 1949 a 1950, como trigo, banha e café. Mas ouve alta no salchicho, açúcar e vinagre. A caderneta das lembranças desbotadas ganhou status de relíquia entre os guardados familiares.

    Remanescentes das turbulentas mudanças sociais, seguimos anotando na caderneta do tempo o blá-blá-blá disso daquilo daquele daquela; o sobe-desce dos preços; o deus-nos-acuda da politicagem; o sai-de-baixo da poluída discurseira midiática... Nesses dias cabulosos se alguém quiser comprar fiado, a resposta está na ponta da língua: “Menos fiado, mais PIX!” Assim vamo remandinho!

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Alvaiade e sibipiruna

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal TánoTipo em 27/09/2023, no Portal aRede em 11/10/2023, e publicado no Diário dos Campos em 20/09/2023.

Após alguns dias de chuva intensa na cidade e, contrariando as previsões de repetição do evento, surpreendo-me com um lindo domingo de sol e de calor já anunciando a primavera. Uma manhã de céu azul convida a um passeio a pé pelas ruas de nossa Princesa dos Campos, que em poucos dias completará 200 anos.

Memórias de um passado distante se tornam quase reais, quando passo diante do rosado Colégio Júlio Teodorico, onde iniciei e concluí as primeiras séries do curso primário como era denominado à época. A árvore de folhas verde-azuladas que enfeitava o jardim com suas flores amarelas e miúdas, de textura aveludada e delicada, ainda está lá, testemunhando a história. Provavelmente é uma sibipiruna, espécie brasileira da Mata Atlântica, segundo o escritor Mário Francisco Oberst Pavelec em conversa recente que tivemos sobre o tema.

Nesta mesma época do ano, de desfiles cívico-militares e pelo aniversário da cidade em 15 de setembro, os professores preparavam tudo para o desfile. Algumas semanas antes da data, saíam com os alunos pelas ruas próximas para ensaio da marcha. Era comum ver pelotões de alunos, ao som de instrumentos de percussão, treinando seus passos para fazer bonito na avenida. As meninas que possuíam vestido branco, geralmente os da primeira comunhão, iam à frente, portando cestas de vime brancas com arranjos das flores amarelas daquela árvore, retiradas pouco antes da saída. Os mais velhos usavam o tradicional uniforme composto por um guarda-pó de algodão branco com mangas longas e tênis brancos. O ponto crucial do desfile era defronte ao Edifício Marieta, onde o vento fazia estragos nos cabelos, levantava as saias, e segurar um banner era tarefa árdua.

Os meus tênis eram de lona que encardia rapidamente devido ao trajeto que fazia a pé de casa até o colégio pelas ruas empoeiradas. No entanto, almejando brancura para o desfile, minha mãe comprava “alvaiade”, um pigmento em pó (carbonato básico de chumbo) que, adicionado a uma base solvente e aquosa, formava uma pasta meio líquida que era passada nos tênis. O resultado era uma alvura absurda e pareciam engomados. Não à toa era usado para pintar cascos e pisos de navios da Marinha Britânica, tornando-os impermeáveis. Ao longo do tempo teve seu uso proibido pela alta toxicidade e seus malefícios para o organismo humano. Desconhecendo o perigo, somente os tênis resultaram envenenados pelo metal tóxico, pois Deus protege os incautos com boa intenção.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Memórias

Texto de autoria de Sílvia Maria Derbli Schafranski, advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal Culturação em 19/09/2023, no Portal aRede em 26/09/2023, no Portal TánoTipo em 15/11/2023, e publicado no Diário dos Campos em 13/09/2023.

          Eu acreditava tratar-se de apenas mais um idoso com Alzheimer como muitos outros de quem eu já havia cuidado, e logo os fatos me vieram à cabeça: agressão, irritação, mudança de personalidade, paranoia, invenção de coisas...

          Quando o conheci, disseram-me que ele se chamava Elias e estava sempre perdido em pensamentos e confuso em relação ao tempo e espaço.

Embora fosse polaco dos olhos bem grandes e azuis, insistia que era descendente de japonês, fato que não me causava estranheza diante do seu diagnóstico, embora, confesso, eu achava engraçado.

Relatava que tinha trabalhado duro no mercado municipal de Ponta Grossa, vendendo livros, revistas e até bebidas de "casco" reciclável nos idos dos anos oitenta.

Todos os dias, o senhor Elias me pedia para cozinhar verduras e perguntava onde estava o hashi, o qual manipulava com extrema habilidade. Enquanto comia, contava inúmeras histórias. Morara na rua Sete de Setembro, próximo à catedral da cidade. Dizia ter vindo para Ponta Grossa ainda menino só com a roupa do corpo e que agora era viúvo de uma linda mulher chamada Mirtes.

Foi assim que descobri que Elias teve uma vida incrível, plena de aventuras e repleta de viagens. Dizia que, como bom japonês, aprendeu a fazer massagem terapêutica ainda jovem e que conheceu muitos lugares do interior do estado e do país com o time da cidade, que à época adquiria projeção nacional.

Embora sempre confuso, uma coisa era muito evidente: Elias teve uma história de amor verdadeira. Descrevia sua mulher com a mesma paixão de um adolescente e sempre dizia que o segredo de ter alegria na vida era manter-se apaixonado, mas apenas por uma única mulher. Dizia que todo homem só se apaixona três vezes na vida e que a terceira ocorrência é certeira e fulminante.

Infelizmente, o senhor Elias nos deixou há pouco, mas as lições que aprendi com ele ficarão para sempre guardadas. Aquele senhor com Alzheimer (e contrariado quanto ao seu diagnóstico) foi a pessoa mais completa e dócil que encontrei em minha trajetória, pois mesmo distante de sua amada Mirtes, o sentimento e plenitude do amor estavam presentes. E, mesmo frente à ausência da amada, sua história lírica se perpetuava diariamente em suas lembranças sutis do dia a dia.

          E, foi no seu velório, que conheci seu irmão Toshio. Este sim, japonês de traços fortes, que orgulhoso comentou: ─ "Hoje, devolvemos ao alto Elias, nosso irmão de criação, certos de que o Céu se embriaga de amor e de harmonia".

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Passeio sentimental

Texto de autoria de Ludo Santos, jornalista e bancário aposentado, natural de Ponta Grossa, residente em Curitiba.

Postado no Portal Culturação em 12/09/2023, no Portal aRede em 19/09/2023, no Portal TánoTipo em 18/10/2023 e publicado no Diário dos Campos em 06/09/2023.

O dia amanhecera chuvoso na manhã em que lá aportei para um compromisso vespertino. Uma névoa se dissipava num grande véu cinza sobre a cidade. Um vento cortante castigava quem não estivesse recolhido. Por isso, apressado entrei no hotel onde fizera a reserva. A moça do check-in, ao reparar no documento que eu era conterrâneo, prometeu um quarto com uma bela vista. Agradeci e assenti matreiramente que era ponta-grossense, mas não praticante. Ela não entendeu. Então lhe expliquei que o quê sempre me interessou na cidade era o bairro vizinho ao hotel, onde vivi os primeiros dezesseis felizes anos de minha vida.

Desde muito fiz da linha trem da cidade o meu paralelo 38. Acima dele, nada invade a minha memória, exceto as recordações das matinês de domingo no cine Império, dos OpeGua (Operário x Guarani – infelizmente quase sempre vencidos pelo Fantasma), da loja HM na época de natal, e de um par de olhos celestes do Colégio Santana que cada vez que cruzava com os meus me dava uma noite de insônia de presente. Abaixo do paralelo, o bairro que se tornou a minha terra do nunca, minha madeleine proustiana.

Desfaço a mala e maldigo a hora em que mais uma vez não prestei atenção a uma voz que me acompanha desde criança, sempre me alertando para não esquecer a japona. Desço no hotel para matar tempo e bendigo a ideia de sair à toa pelas ruas do bairro atrás de antigas dores e alegrias.

Percorro a principal via, hoje asfaltada, e brinco de descobrir o que sobrou da antiga rua de pedras que tantas vezes subi e desci em direção ao mundo. Reconheço poucas casas ainda debruadas de velhos jardins, alpendres e paredes grenás desbotadas. Exploro lentamente outras ruas e vejo com desgosto que o bairro mudou mais depressa do que eu.

Sei que o bairro se modernizou: hoje há prédio de vinte andares, grandes lagos, rua asfaltada, as casas são coloridas, disfarçaram de novas fachadas velhas, deceparam árvores, muraram nosso campinho, o grupo escolar ganhou uma quadra de esporte e perdeu o jardim proibido, a nova igreja é de alvenaria e as traves do campo do Olinda agora são redondas.

O frio me morde a face e a memória quando saio do carro e vejo o que fizeram com a casa onde cresci. Desolado, volto ao hotel. No quarto, tenho a minha desforra. Da janela, derrubo o atual bairro e reconstruo o antigo com suas casas grenás, a rua de pedras desiguais, a igrejinha de madeira, o rio magrinho sem peixe, a nossa casa de esquina, os almoços de domingo, a lua que pertencia à janela do meu quarto...

Agora nada parece ter mudado e, no entanto, tudo mudou no Olarias.

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...