segunda-feira, 25 de maio de 2020

Fruto do pós-guerra


Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.


Publicado no Correio Carambeiense em 30/05/2020, postado no Portal aRede em 08/07/2020, lido na CBN Ponta Grossa em 05/08/2020.

Era domingo de carnaval. Meio dia. A terra natal espiou minha chegada ao mundo naquele dia ensolarado. Em casa; pelas mãos de uma parteira. A mãe, dezoito anos incompletos. Quase uma criança cuidando de outra. O pai, vinte e seis. Havia voltado há pouco da Itália, não por turismo, voltava da guerra!
De navio, além do Atlântico, fez fileira com os aliados em terras italianas na Segunda Guerra. Um ano e três dias longe da Pátria, e por ela. Solo inóspito, coberto de neve, sol insuficiente para aquecer seu corpo rígido pelo frio inclemente. Pés enrolados em camadas de jornal, depois meias e botas. A gangrena esperava uma chance. Roupas grossas e um cachecol de lã.
Cozinheiro da tropa, chegava antes ao acampamento para que os demais tivessem comida fresca e quente. Mais uma panelada de arroz saboroso! Foi premiado por isso. Comida enlatada era a solução para os dias mais turbulentos. Não usou armas letais. Suas armas foram o fogão e as panelas.
Nativos famintos chegavam em sua barraca pedindo alimento. Moças ofereciam seus corpos em troca de comida. Canhões, fuzis, corpos espalhados, sangue, gemidos, granadas ensurdecedoras; explosões que mutilavam.
Alerta de bombardeio inimigo! Corrida para a trincheira, buraco cavado na terra para proteção. Um chiqueiro desativado seria seu teto por uma noite. Estava sozinho. Fez um pudim e esperava esfriar. As bombas riscavam de luz a noite escura. Escondeu-se. Amanheceu. Do pudim e do chiqueiro nada restou. Estava vivo.
“Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá...” diz a Canção do Expedicionário. E Deus permitiu que voltasse. Um ouvido lesionado pelo estrondo de uma granada que explodiu a dois metros de distância, no exato espaço onde deveria ter se lançado ao chão. Não o fez pelo extremo cansaço. Uma neurose que durou alguns anos. Pesadelos constantes. Noites agitadas, corpo coberto de suor. Durante o sono, julgava que sua esposa corria perigo e então a subjugava com seu corpo para defendê-la de ataques.  A madrugada testemunhava gritos dela. Urgia acordá-lo e tirá-lo daquele transe.
Na mochila trouxe o cachecol, uma faca, presente de um companheiro morto na boca da trincheira, algumas fotos, palavras no idioma italiano e canções que entoava alegremente. Os relatos chocantes das experiências vividas se perderam no tempo; no entanto, povoaram minha lembrança por muitos carnavais.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

O Paraná estava no meu quintal


Texto de autoria de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 13/06/2020, postado no Portal aRede em 01/07/2020, lido na CBN Ponta Grossa em 28/07/2020.

Nessas cidades interioranas com alamedas de chão batido ocorre-me uma lembrança gargalhando faceira pelos ervais. Um certo afago arqueológico assalta a maturidade e recompõe uma centelha pretérita. Lembro-me de que os pés desnudos exploravam avidamente os canteiros do velho sítio.
O aroma fresco do alecrim misturava-se ao cheiro de hortelã. A hortelã acariciava o caule da árvore de araçá. Iminente ao araçá — os galhos de arruda disputavam o perfume com o alecrim e hortelã. Camomilas serviam como berço para a cantoria desenfreada das cigarras. Besouros corajosos dormiam entre os tomilhos. Aranhas teciam seus precipícios no vácuo da corticeira. Taturanas festejavam no pessegueiro. Perambulando pelo caule frágil da pitangueira o bem-te-vi bicava as frutinhas adocicadas. Havia um pé de ingá ao fundo que partilhava o quintal com um pequeno pé de cedro. Logo de noitinha, os vaga-lumes pestanejam seus abajures após o crepúsculo. Recordar um aroma torna-se feitura emaranhada com o tempo.
O sol da infância era despontado pelo bico do galo. Pulava serelepe da cama, indo perto do fogão a lenha, em época de pinhão a chapa já estava toda chamuscada com aquelas sementes. E logo saía correndo para ver minha tia alimentando as galinhas, depois os porcos e ovelhas. Como eram bonitos os girassóis com suas hastes delicadas inclinando-se até beirar as capoeiras que cresciam no subúrbio do terreiro. Olhava para cima enquanto as nuvens aravam o céu para plantar alguns pés de chuva. O avô capinava o fundo do quintal para plantar mandioca. Aos oito anos de idade todos os mistérios do planeta estão em qualquer fundo de quintal.
Quando adoentado, a tia com maestria fazia um chá de louro com folhas diretas do quintal. Se o chá não resolvesse era momento de ir à benzedeira. A cabana amadeirada de dona Filumena permanecia toda decorada com santos e divindades. O copo d’água com um galhinho de arruda ficava defronte da estátua de Nossa Senhora de Fátima e outro santo mulato. Aquele rito tinha um tom onírico, um presságio de purificação, como se ao ouvir as orações, minha inocência palpitasse em toda sua nudez.
Voltando para casa, com o espírito benzido. Já estava pronto para aprontar naquele fundo de quintal, ou, na língua dos avós: fazer arte.

O Sul, enfim

Texto de autoria de Mouzar Benedito da Silva, jornalista, residente em São Paulo.

Lida na CBN Ponta Grossa em 26/05/2020, postado no Portal aRede em 03/06/2020.

Mal tinha amanhecido o dia quando o trem saiu de Itararé com destino a Ponta Grossa. Era a segunda etapa de uma viagem que me levaria pela primeira vez ao Sul do Brasil.
Sempre gostei de viajar, conhecia todos os estados do Nordeste, e não só as áreas “turísticas”, mas principalmente o Sertão. Não foi à toa que estudei Geografia. Queria conhecer o Brasil todo, o Brasil profundo principalmente, mas estranhamente a região Sul não me era muito atrativa.
Já viajara também pelo Centro-Oeste, um pedacinho da Amazônia, mas o Sul nunca fora visitado por mim. Motivo? Achava que encontraria tudo certinho, gente certinha, cada coisa em seu lugar. Tudo muito normal. E o “normal” não me atraía.
Mas tinha que ir à região. Sabia dos seus atrativos, li sobre sua História, a guerra guaranítica, seu líder Sepé Tiaraju, a Guerra do Contestado, a saga de Giuseppe e Anita Garibaldi, o tropeirismo que usava os Campos Gerais do Paraná como base antes de chegar ao sul paulista, o caminho do Peabiru, muitas histórias... E as belezas naturais – o Paraná tem muitas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul também... Mas eu achava que encontraria tudo organizado demais, algo não atraente para meu espírito simpatizante do anarquismo.
Porém, quando criança, diante de um mapa do Brasil, me propus: vou conhecer todos os estados. E queria cumprir isso.
O “estalo” foi o sucateamento das ferrovias, em franco progresso. Mineiro gosta de viajar de trem, e eu sou mineiro. Precisava aproveitar antes que acabasse. Então fui viajando por onde ainda existiam trens de passageiros. Nessa viagem, fui de São Paulo a Itararé, de lá a Ponta Grossa e dali seguiria para o Sul.
Bom... A bordo do trem que se aproximava de Sengés, seguia pensando no meu preconceito contra coisas muito organizadas, que eu classificava como “Sul”. E de repente, no meio do nada, ele parou. Começou a demorar para sair de novo e pensei: “Xi, até aqui no Sul organizado as ferrovias já estão precárias?”
Uns vinte minutos depois, curioso para saber o que estava acontecendo, olhei pela janela e ao lado passaram de volta o maquinista e o sujeito encarregado de conferir as passagens. Traziam maços de agrião embaixo dos braços. O maquinista, vendo a minha cara de curiosidade, contou que havia parado para roubar um pouco de agrião numa plantação que ele sabia que havia um pouco abaixo.
“O Sul não é tão ‘Sul’ assim”, pensei sorrindo. E vivenciei boas surpresas na viagem toda. Voltei muitas vezes ao Sul, tive até namoradas na região.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

A crônica

Texto de autoria de Rosana Justus Braga, revisora, Curitiba (natural de Ponta Grossa).

Publicada no Diário dos Campos em 19/05/2020, postada no Portal aRede em 24/06/2020.

Cegueira temporária, espero. Pois ando à procura da crônica, e nada; oculta ou revelada, sei que anda por aí. Olho e não vejo, embora a vida persista, silenciosa e ágil, enquanto sei que me escapa irremediavelmente.
Estaria ela nos tormentos do homem que ali vai, rua abaixo, num ritmo de ofegar a quem se põe a observá-lo? Ou na mulher de preto refletida na vidraça, miragem de todas as dores? Talvez no padre que se precipita pela lateral da igreja e se perde no anonimato da multidão?
Tento encontrá-la no bar, onde flagro o homem e a decisão do primeiro copo; no pombal instalado sobre a estátua do general Osório; nos olhos opacos de quem espera em longas filas, rumo ao subúrbio de suas vidas. Mas ela apenas se mostra de viés, provocação fugidia, leve rastro de possibilidades e logo se dissipa, feito água da chuva que escoa diligente pelos canais.
Nem sempre se tem a percepção aguçada, o espírito vivo, nem sempre o encontro acontece. Muitas vezes, caminhamos lado a lado, respiramos o mesmo instante, quase nos tocamos, mas o milagre não se faz.
Entro na confeitaria e sossego diante de uma xícara de café.
Na mesa ao lado, vejo um moleque entregue à luxúria de sonhos e merengues. Fico a lhe notar as roupas surradas, a pele encardida, os olhos ariscos de gazela. Dez, doze anos, não mais, com a voracidade de uma geração de esfomeados.
Termino meu café e esqueço de ir embora.
Vou ficando até ver consumido o último pedaço, o açúcar dos dedos sendo sugado em estalos ligeiros pela língua ainda ávida. O refrigerante desaparece em segundos, garganta abaixo. Para arrematar, um sonoro arroto ecoa na pequena sala.
Todos olham...
Menos eu, que já olhava. Mas o menino encara a seleta plateia e escapa do mau jeito fazendo cara de azarado e rindo de si mesmo. Provoca risos e empatia à sua volta. Desabrocham gestos de entendimento e cumplicidade, confraternização que acontece, inesperada, entre novos amigos.   
Quando ele sai, saio atrás, a alma em férias, levando comigo a crônica que, por fim, encontrei.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Os óculos


Texto de autoria de Aline Sviatowski, ex-acadêmica de Direito da UEPG, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 21/05/2020, lido na CBN Ponta Grossa em 30/06/2020.

            Vinte e dois. O número de dias em que o jovem operário da indústria cervejeira deixou seus filhos em expectativa para o grande passeio. Seu filho mais velho, sua filha mais nova e o cão tão branco quanto leite fresco. Todos acordavam e dormiam à espera. Todo dia, um dia a menos; toda hora, uma hora a menos.
            Segunda-feira, ao sair para o trabalho, o jovem pai era acompanhado do cão. Rex. Seguia-o até a imponente indústria. Cinco da tarde, fiel e pontualmente, o cachorro ia buscar o seu dono, desde sua casa até a porta da fábrica. Até uma lambida de cerveja ganhava, pois parecia gostar do malte ao balançar seu rabo em sinal de alegria, mas suas reais recompensas eram o afago discreto e algum graveto pelo caminho. Alguns quilômetros de caminhada. Janta. Polenta ao cão, sopa de repolho ao pai.
            Terça, quarta, quinta, sexta, sábado. Finalmente, domingo! O sol refletia um pouco mais no cabelo loiro e ralo do menino mais velho. Rex lambia os dedos da menina, acordando-a. Pulos de alegria. O domingo mais feliz de 1962.
            Partiram todos. Sete horas da manhã. Carregados pelos próprios pés, a caminhada de quatorze quilômetros iniciou com a leve presença do sol e a promessa de banho em água fresca. Capão da Onça. Suas águas suaves entre pedras e verdes colinas, abraçam tais quais grandes braços de araucárias. O jovem operário e sua família contavam anedotas, cantavam músicas, criavam duráveis lembranças no campo da memória com emoções únicas. A expectativa, aliada à paisagem rica e ao simples conforto familiar, traria lembranças que perdurariam diante das agruras do futuro e chegariam às gerações posteriores.
            O sol ergueu-se: ausência de sombra. Ensaiava-se a hora de voltar. Duas horas e meia de caminhada. Virando a esquina para chegar em sua casa, o jovem operário apalpa seu bolso. Onde estariam seus óculos? Ninguém sabia. Por que levou seus óculos para uma cachoeira? Ninguém sabia. E ali foi o jovem operário. Caminhou mais quatorze quilômetros até encontrar seu fiel tradutor de imagens: em cima da pedra em que sentou a manhã toda. Mais quatorze quilômetros. O cão branco estava praticamente transparente.
            O jovem, esquecido por genética, chegou pontualmente para a janta especial de domingo: pierogi. Todos “bronzeados” – leia-se vermelhos – riam até doer a barriga agora repleta de uma exímia culinária. Assim foi, o domingo mais feliz e esquecido de 1962, pode procurar nos livros de História.

Esqueci o meu idioma!

Texto de autoria de  Márcia Derbli Schafranski , professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficien...