segunda-feira, 18 de maio de 2020

O Paraná estava no meu quintal


Texto de autoria de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 13/06/2020, postado no Portal aRede em 01/07/2020, lido na CBN Ponta Grossa em 28/07/2020.

Nessas cidades interioranas com alamedas de chão batido ocorre-me uma lembrança gargalhando faceira pelos ervais. Um certo afago arqueológico assalta a maturidade e recompõe uma centelha pretérita. Lembro-me de que os pés desnudos exploravam avidamente os canteiros do velho sítio.
O aroma fresco do alecrim misturava-se ao cheiro de hortelã. A hortelã acariciava o caule da árvore de araçá. Iminente ao araçá — os galhos de arruda disputavam o perfume com o alecrim e hortelã. Camomilas serviam como berço para a cantoria desenfreada das cigarras. Besouros corajosos dormiam entre os tomilhos. Aranhas teciam seus precipícios no vácuo da corticeira. Taturanas festejavam no pessegueiro. Perambulando pelo caule frágil da pitangueira o bem-te-vi bicava as frutinhas adocicadas. Havia um pé de ingá ao fundo que partilhava o quintal com um pequeno pé de cedro. Logo de noitinha, os vaga-lumes pestanejam seus abajures após o crepúsculo. Recordar um aroma torna-se feitura emaranhada com o tempo.
O sol da infância era despontado pelo bico do galo. Pulava serelepe da cama, indo perto do fogão a lenha, em época de pinhão a chapa já estava toda chamuscada com aquelas sementes. E logo saía correndo para ver minha tia alimentando as galinhas, depois os porcos e ovelhas. Como eram bonitos os girassóis com suas hastes delicadas inclinando-se até beirar as capoeiras que cresciam no subúrbio do terreiro. Olhava para cima enquanto as nuvens aravam o céu para plantar alguns pés de chuva. O avô capinava o fundo do quintal para plantar mandioca. Aos oito anos de idade todos os mistérios do planeta estão em qualquer fundo de quintal.
Quando adoentado, a tia com maestria fazia um chá de louro com folhas diretas do quintal. Se o chá não resolvesse era momento de ir à benzedeira. A cabana amadeirada de dona Filumena permanecia toda decorada com santos e divindades. O copo d’água com um galhinho de arruda ficava defronte da estátua de Nossa Senhora de Fátima e outro santo mulato. Aquele rito tinha um tom onírico, um presságio de purificação, como se ao ouvir as orações, minha inocência palpitasse em toda sua nudez.
Voltando para casa, com o espírito benzido. Já estava pronto para aprontar naquele fundo de quintal, ou, na língua dos avós: fazer arte.

2 comentários:

  1. Marlene Castanho Ponta Grossa. PR

    Tão bem arquitetado esse seu quintal da infância... Que bom recordar,sentindo gostos e cheiros... E ainda fiquei comovida quando me deparei com as nuvens arando o céu para plantar alguns pés de chuva... Juliano, continue fazendo essa arte: escrever. Parabéns!

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  2. Fernanda Wiegand Mayer

    Seu texto me fez lembrar de quando era criança e também ficava fazendo "arte" no quintal dos meus avós,além de muitos temperos, frutos, sementes e arvores características. Parabéns!

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