segunda-feira, 27 de abril de 2020

Contemplação


Texto de autoria de Dionezine de Fátima Navarro, Farmacêutica/Bioquímica docente e pesquisadora da UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 27/05/2020, postado no Portal aRede em 18/06/2020, lida na CBN Ponta Grossa em 21/07/2020.
                                                                              
Num atalho pelo Parque Ambiental da Princesa dos Campos, a singeleza me obrigou a parar e me encantar!  E me fez balançar nas malhas do bucolismo. Lá no fundo, de uma Maria Fumaça parada no tempo da nostalgia pareciam descer passageiros que se recusavam a fazer parte do passado diante de tantos risos de crianças que brincavam em festa nas balanças e gangorras do parquinho. Como um arremate da moldura de uma obra de arte, um arco de flores cor-de-rosa às pencas, como uma cascata (chamam de sete léguas), parecia sondar um quero-quero...
Pássaro ora assustado, ora alçando voos rasantes em passantes distraídos.  Ou ora pendurado numa perna só a admirar homens e mulheres, que, como caminhantes do agora, transitavam quase embriagados com os compromissos do cotidiano. Esses não tinham tempo ou talvez nem retinas para perceber o pequeno pássaro que ficava alguns minutos estático, parecendo observar o futuro. Dava alguns passinhos e trocava de perna.  E lá se pendurava no outro pé e de novo contemplava o verde que o abraçava, como se fosse o manto do final de tarde.   Parecia não querer ir embora e, se alguém conseguisse chegar perto dele, poderia até descobrir que estava de olhos fechados a sorver o vento que brincava com pétalas bailantes, que, num final de ciclo, se desprendiam das árvores a brindar o início do outono.  
Tão quieto, parecia compreender que ali se iniciava uma festa da nova estação. E ele continuaria a fazer parte desse espetáculo. O manto verde do gramado em vitalidade era quase engolido pelo azul do céu que também desejava ser um cobertor para a noite que se aproximava.  Pensei: será que, como eu, ele fica a imaginar a história de vida de cada um que passava por ali?
 Histórias únicas e intransferíveis. Como ele, eu também não queria ir embora.  A correria do cotidiano no final do dia boicotou meu nostálgico enlevo. Mas ainda dediquei alguns minutos a registrar uma foto com o pássaro intrigante, imaginando o que ele poderia “querer mais”, uma vez que ele já tinha o maior dos dons... O dom da contemplação”. Mesmo que seja... Contemplar numa perna só.  

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A missa da miscigenação dos Campos Gerais


Texto de autoria de Rodrigo de Mello, Biólogo docente da UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Jornal da Manhã info  e no Portal a Rede em 30/04/2020, lida na rádio CBN Ponta Grossa em 09/06/2020.

Deita-se no sofá para ler e sua fiel companheira canina sobe no sofá, que lhe lambe o pé e apoia o focinho em sua perna olhando para ele balançando o toco de rabo que tem. Lê duas páginas bem concentrado, mas agora seus olhos são captados por uma espécie de telão de cinema ao ar livre que aparece no vão da janela, que projeta no céu uma animação sobre a identidade histórica e cultural da região dos Campos Gerais. Vê as formações geológicas do Primeiro e Segundo Planalto Paranaense e sua imponente Escarpa Devoniana: suas zonas fitogeográficas naturais, com campos limpos e matas de galerias ou capões isolados de floresta ombrófila, que agora aparecem todas em cores vibrantes que lhe gritam mais vivas.
Sobre a tela celeste, agora tropeiros abrem trilhas em intocadas florestas rumo a vegetações mais rasteiras, trazendo no lombo dos cavalos a história do mundo e a forte influência cultural e costumes que se enraizaram pelas regiões e assentamentos por onde passaram. Vê agora povos indígenas que, da mesma forma que os tropeiros, trazem uma mescla de heranças, como a luso-brasileira e a africana que os seguem. Observa todos esses povos ao redor de uma fogueira, comendo pinhão assado, bebendo e brindando alegres em celebração. Vê claramente a cultura da região dos Campos Gerais tornando-se muito diversificada no calendário do tempo, dispersando-se num sopro de vento na paisagem agora rodeada por plantações de café em plena floração, mas com flores imensas como as de um hibisco.
No telão impresso nas nuvens, agora em tons de amarelo e laranja de um fim de tarde, aproximam-se da fogueira grupos de caboclos, faxinalenses, eslavos, croatas, italianos, poloneses e germânicos. Iniciava-se a missa da miscigenação, e sentam-se todos ao redor do fogo. Sobre suas labaredas, vê um imenso caldeirão de ritos e raças borbulhando e transfigurando-se em nuvens agora avermelhadas por um pôr do sol entorpecedor. Um camaleão, andando pelas bordas com suas órbitas oculares olhando para todos os lados, se aproxima e lambuza de cores os olhos da multidão de gerações vindouras. Com seus dedos fundidos em forma de “V”, retira do caldeirão cartas de um baralho estampado com dupla-hélices de DNA, representando códigos genéticos destas variedades de povos que se embaralharão no genoma dos paranaenses, numa sinfonia molecular de diversidade fenotípica e cultural.
Acorda ao ouvir sua cachorra latindo para outro cão que passava pela rua e vê seu artigo sobre os Campos Gerais sobre o peito.


Prato do dia: Campos Gerais ao molho de Europa

Texto de autoria de Fernanda Wiegand Mayer, licenciada em Ciências Biológicas, Comunidade Rural de Vieiras, Palmeira.

Lida na Rádio CBN  Ponta Grossa em 21/04/20, postada no Portal aRede em 27/05/2020 e publicada no Diário dos Campos, em 03/08/2022.

Meus avós e eu sempre moramos no campo, numa daquelas casas de madeira estilo “enxaimel” a mostrar nossa descendência de raiz russa/alemã, e muitas de suas nuances características vão além da arquitetura europeia em pleno Paraná.
Na culinária, sempre foram parte do cardápio o pão de bafo (que meus avós chamavam de outra coisa, na língua alemã, e nunca consegui encontrar o significado), o cuque de uva, o pinhão assado na chapa do fogão à lenha nos dias de inverno, os pastéis cozidos de requeijão, ou também chamado de leite coalhado (também com seus nomes especiais em alemão).
Havia a salada de batatas, feita nos dias de domingo, juntamente com as costelas de chão e carnes assadas, as linguiças ou salames, que sempre estavam presentes nos cafés da manhã e da tarde, às vezes acompanhados de torresmo e banha de porco derretida para comer com pão, e o chimarrão, que era o “chá de todos os dias”, sempre antes do almoço e do café da tarde.
Estes fizeram a alegria de minha infância, e era sempre obrigatório um “– Deus que ajude, vó!” (Ou “vô!”, quando era ele o autor culinário).  Após comer qualquer uma de suas delícias e agradecer pelo alimento, meus avós pegavam minhas mãos em forma de “conchinha” e respondiam um “Amém!” ou “Deus te abençoe, ’fia’!”
Hoje, a casa enxaimel já não existe mais, embora tenha perdurado por mais de 50 anos!; minha avó, com seus 83, já não consegue fazer todas estas artes culinárias como antes, meu avô também já se foi... Porém, toda a riqueza cultural, culinária, e o amor que me dedicaram em minha infância são os maiores tesouros que carrego comigo hoje.
As raízes europeias, misturadas a toda diversidade brasileira (a considerar a paisagem única dos Campos Gerais e o pinhão, que é o fruto característico da nossa região), e também com as vertentes gaúchas (como o chimarrão e as carnes assadas), proporcionam um cenário cultural único e belo demais para ser colocado em um simples texto... em outras palavras, estas recordações, e todas as sensações que me despertam, são para mim o que se costuma chamar de “felicidade”.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Dona Maria

 Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 21/04/2020, lida no programa CBN Esportes - Ponta Grossa em 30/04/2020, postado no Portal aRede em 11/06/2020.


Dona Maria lavava roupa todo dia. Separada do marido por traição dele, abandonada, tinha muita história para contar. A mágoa, porém, se escondia no recôndito do seu peito e não se mostrava. Não tinha um túmulo para chorar a perda do marido, já que ele ainda vivia, e com outra.
Engolia o fel que a vida lhe reservara com a resignação de um desesperançado, daquele que sente o peso da vida a esmagar-lhe os sonhos. Ainda era jovem, mas as agruras que vivia haviam endurecido sua alma como pedra.
Três filhas para criar sozinha, esfregando roupas e como diarista em uma casa de família. Uma família de alemães com a qual aprendeu, entre outras coisas, a cozinhar e servir com refinamento, costumes europeus que levou para sua vida.
A menina do meio era a mais alta, subnutrida, pois necessitava de mais alimento do que havia na mesa. Empalidecia cada vez mais à medida que crescia, falta de ferro, anemia... Usava as roupas da irmã mais velha, quase não ganhava roupas novas.
A tarefa a ser executada pelas meninas enquanto Dona Maria estava no trabalho era deixar a casa limpa e arrumada. Não usavam cera no assoalho de madeira com tábuas largas, era caro. A casa era lavada com água e areia para retirar qualquer vestígio de sujeira que pudesse existir. Depois do banho, roupa limpa, esperavam a mãe na esquina e a viam surgir ao longe carregando sacolas com doações da patroa alemã, Frau Bergen.
Exausta do trabalho e com tantos problemas a minar-lhe os pensamentos, tornara-se amarga e não aceitava o carinho que as filhas, saudosas, queriam dar-lhe. Só perguntava se tomaram banho, se a casa estava limpa, se haviam deixado o fogo aceso pra fazer a janta...
A menina do meio sempre desejou comer maçãs, vermelhas, cheirosas, com aquele papel de seda roxo a protegê-las nos caixotes de madeira. Só sonho...não havia condições. As outras também tinham seus desejos não supridos pela condição social.
Já adolescentes, adveio a Segunda Guerra Mundial e a menina do meio, personalidade forte emergindo, queria seguir com as tropas atuando como enfermeira. Seu vizinho havia ido como soldado para o front, porém Dona Maria não permitiu.
Ao fim da guerra o belo rapaz moreno de olhos verdes voltou, aparentemente sem sequelas, e casou-se com aquela menina. Tranquilidade para a mãe cujo orgulho era dizer: Eu casei uma filha! 
Essa mulher forte existiu. Dona Maria era minha avó.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Cosmogonias subalternas


Texto de autoria de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 08/04/2020, lido na Rádio CBN Ponta Grossa em 12/05/2020 e publicada no Diário dos Campos, em 20/07/2022.

Na tapera, ainda de chão batido. O avô, com o cachimbo tapando a boca quase banguela; trajando sua camisa de pano, calça de linho e sandálias, aconchegava-se ao lado do fogão a lenha. No sopé do fogão, havia uma canastra de bambu entulhada com sapés. Na chapa escura e quente, assavam pinhões, nacos de toucinho e lambaris. Em volta, seus netos ouviam seus causos. Ficavam boquiabertos com a memória comprida do avô, um arroio de boatos. Sempre sobrava mais uma estória para o dia seguinte. Para ele, que não sabia escrever na língua escrita, o velho aedo imprimia sensações na língua falada:
— Sabe, netos meus, me alembro de uma estória sobre um tropeiro, cruzei com ele numa dessas travessias da juventude, inda quando São João do Triunfo era um matagal. Esse causo tem uma boniteza, pera que vou acender o pitador, é semeador.
— Estava eu pescando umas traíra na lagoa, quando por estripulia a água começou a subir, parece mentira, mas chovia de baixo pra cima. Olhava de lado pra ver o tamanho da chuvarada, reparei que um arco-íris começou a me seguir. Mas o tropeiro guardou na algibeira, ficou alumiada. Ele me disse que quando para de chover, o céu morre, e o arco-íris é seu espírito que desce na terra e sobe de volta.
Essas estórias curtas que viviam em um menino octogenário, eram declamadas, ali, na casinha de chão batido, com a luz ora da brasa do fogão, ora da baforada do lampião. Minha avó, ouvindo do outro lado, continuava tricotando enquanto os lábios distribuíam um riso rouco. Vovô falava que um bom causo só existe quando ele é ouvido. O fuxico das coisas encantadas precisa de público.
 O avô também era mestre em assuntos que versavam sobre a licantropia. Jurava de pés juntos que em época de quaresma, o vizinho que noutro dia viesse pedir sal era lobisomem. Estudioso da antropologia da Caipora, analista da evanescente aparição dos boitatás, que segundo ele, faziam festas em seu quintal. Um dia, conta, até consolou uma bruxa: roubaram sua vassoura. Mas seu tesouro enterrado ninguém usurpou. Era especialista no fantástico enraizado na imaginação subalterna. O tom um pouco lúdico, e um pouco assombroso, servia para criar juízo em seus netos.
Há sempre uma magia que sustenta a força e o riso da gente comum. No fim de sua vida, ele passou a habitar a terceira margem do rio, mas seus causos desaguaram no coração dos netos. Quem tem estórias para partilhar, consegue ir sempre um passo além da margem: caminha na contracorrente da cachoeira.

Onde adormecem os diamantes


Texto de autoria de Dionezine de Fátima Navarro, Farmacêutica/Bioquímica docente e pesquisadora da UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Portal aRede em 07/04/2020, lido na Rádio CBN Ponta Grossa FM 98.1 em 05/05/2020.

Hoje, um asfalto cômodo, ao invés da estrada poeirenta ou a lamacenta, traz o bucolismo do velho casarão que parece ter retido no passado os ponteiros do tempo. Um casarão centenário à beira da entrada da cidade de Tibagi. Suas inúmeras janelas venezianas coloridas são portais de um ontem nostálgico, vividos por quem adentrou os seus degraus. Um armazém, um salão de festas ou um local de reza! Mas é esse casarão que traz o suspiro ao viajante feliz porque chegou à tão amada cidade natal. Tibagi, que na língua Tupi-Guarani significa "grandes águas" em alusão ao rio que banha a cidade e onde ainda dormem os diamantes, que foram motivo de peregrinação de homens de terras longínquas. Rio Tibagi transportou sonhadores, foi o único lazer refrescante em dias de calor, onde crianças aos risos desciam suas correntezas em boias de pneu de seus pais caminhoneiros. Hoje, referência em rafting, suas corredeiras lhe presenteiam com atrativos da modernidade que continua atraindo aventureiros. Se o rio clama por aventura, a praça em frente à Matriz Nossa Senhora dos Remédios, ao som da melodia de um chafariz apaixonado, e com a cumplicidade da lua, continua sendo palco de encontros clandestinos onde amores precisam ser declarados. Seja pelos acordes de um violão, que em agonia suplica pela paixão, seja pelo beijo roubado dentro do coreto que em dias de festa acolhe a banda frenética da cidade. Nesse transitar distraído, a tudo alguém assiste disfarçadamente. Um cão preguiçoso, que já fez desses bancos da praça a sua morada, e no silêncio, em passos lentos, parece querer atrasar o amanhã, para que o encanto do hoje dure mais. Assim é essa bucólica cidadezinha que, incrustada pelos casarios nostálgicos e rodeada por paisagens verdejantes que adoçam a alma, ainda tem bolo de polvilho em forno de tijolos, faz pamonha com o milho ralado do quintal, repica o sino da igreja todos os domingos, chamando para missa, prepara doce de abóbora em fogão a lenha. Ou numa rede amarrada a galhos das laranjeiras do quintal, o pai orgulhoso, espera o filho, que chegará um dia com um diploma na mão. Seus visitantes, que já se encantaram com a suntuosidade ao passar pelo Cânion do Guartelá, ainda desejam conhecer um patrimônio histórico desta cidade: sua rapadura! Envolta em palha seca, bem amarradinha, ela dá a certeza de que a doçura escolheu esse lugar para morar!

Adoração da Cruz

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes , Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.           Já escrevi c...