Texto
de autoria de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta
Grossa.
Postado no Portal aRede em 08/04/2020, lido na Rádio CBN Ponta Grossa em 12/05/2020 e publicada no Diário dos Campos, em 20/07/2022.
Na tapera, ainda de chão batido. O avô, com o
cachimbo tapando a boca quase banguela; trajando sua camisa de pano, calça de
linho e sandálias, aconchegava-se ao lado do fogão a lenha. No sopé do fogão,
havia uma canastra de bambu entulhada com sapés. Na chapa escura e quente,
assavam pinhões, nacos de toucinho e lambaris. Em volta, seus netos ouviam seus
causos. Ficavam boquiabertos com a memória comprida do avô, um arroio de boatos.
Sempre sobrava mais uma estória para o dia seguinte. Para ele, que não sabia
escrever na língua escrita, o velho aedo imprimia sensações na língua falada:
— Sabe, netos meus, me alembro de uma estória sobre um tropeiro, cruzei com ele numa
dessas travessias da juventude, inda
quando São João do Triunfo era um matagal. Esse causo tem uma boniteza, pera que vou acender o pitador, é
semeador.
— Estava eu pescando umas traíra na lagoa, quando por estripulia a água começou a subir,
parece mentira, mas chovia de baixo pra cima. Olhava de lado pra ver o tamanho
da chuvarada, reparei que um arco-íris começou a me seguir. Mas o tropeiro
guardou na algibeira, ficou alumiada. Ele me disse que quando para de chover, o
céu morre, e o arco-íris é seu espírito que desce na terra e sobe de volta.
Essas estórias curtas que viviam em um menino
octogenário, eram declamadas, ali, na casinha de chão batido, com a luz ora da
brasa do fogão, ora da baforada do lampião. Minha avó, ouvindo do outro lado,
continuava tricotando enquanto os lábios distribuíam um riso rouco. Vovô falava
que um bom causo só existe quando ele é ouvido. O fuxico das coisas encantadas
precisa de público.
O avô
também era mestre em assuntos que versavam sobre a licantropia. Jurava de pés
juntos que em época de quaresma, o vizinho que noutro dia viesse pedir sal era
lobisomem. Estudioso da antropologia da Caipora, analista da evanescente
aparição dos boitatás, que segundo ele, faziam festas em seu quintal. Um dia,
conta, até consolou uma bruxa: roubaram sua vassoura. Mas seu tesouro enterrado
ninguém usurpou. Era especialista no fantástico enraizado na imaginação
subalterna. O tom um pouco lúdico, e um pouco assombroso, servia para criar
juízo em seus netos.
Há sempre uma magia que sustenta a força e o
riso da gente comum. No fim de sua vida, ele passou a habitar a terceira
margem do rio, mas seus causos desaguaram no coração
dos netos. Quem tem estórias para partilhar, consegue ir sempre um passo além
da margem: caminha na contracorrente da cachoeira.
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