segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Palavras em fuga

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 18/12/2021 e no Diário dos Campos em 15/09/2022, postada no Portal aRede em 05/01/2022.

Com um ano de idade, ou pouco mais, as crianças começam a balbuciar as primeiras palavras. É o início da fala, da comunicação oral que as levará ao domínio da linguagem materna. Expectativa dos pais para saber o que elas falarão antes: mamãe ou papai. É característica das meninas falar muito mais do que os meninos, é científico. Às vezes são chamadas pejorativamente de gralhas ou metralhadoras. Segundo meus pais, eu fui precoce na oralidade. Era tagarela e as palavras brincavam comigo de lenço atrás, bom barqueiro e cantigas de roda no quintal da nossa casa, na Rua Júlia Lopes. Jorravam tanto verbalmente quanto na escrita, tinha facilidade nas redações escolares. E como eu falei! E como eu escrevi! Anos e anos falando e escrevendo, num casamento perfeito entre mim e as palavras.

O tempo foi passando, vivi três quartos de um século e nunca esperei a vileza de uma traição delas, minhas companheiras de toda a vida. Não é justo o que estão fazendo comigo! Dei a elas uma mente saudável, limpa, sem nenhum morador que fosse mordaz, maldoso, pretensioso ou satírico. Ali poderiam morar eternamente, contudo, estão me abandonando sem piedade. A cada dia que passa é mais uma ou duas que fogem da minha mente. Procuro-as por horas, às vezes dias e demoro a encontrá-las. Já aconteceu de jamais saber o paradeiro de algumas. Sempre foram importantes para mim. Por que essa debandada? Para onde estão indo?

Nos momentos em que mais anseio por uma delas, vejo-a correndo pela rua, e no caminho carregando sua irmã gêmea, com a qual eu poderia contar no caso de uma desaparecer, mas a irmã, cujo nome é Sinônimo, também foge. Na fuga vão arrebanhando mais e mais, e eu ficando com a mente esvaziada, num espaço onde há lugar para milhões delas viverem em paz, em harmonia e em bom convívio. Quando alcançam a rua e encontram outras desgarradas, eu perco uma frase inteira! Isto não é justo!

Será que estão cansadas de morar neste lugar? Será que preferem viver em mentes mais jovens que a minha? Pensei colocar cartazes na rua da fuga, mas o que escrever neles, somente com as palavras remanescentes, as mais fiéis?

Consegui escrever e colei na esquina: “Procuro palavras desaparecidas há algum tempo, que me fazem muita falta. Quem as encontrar favor encaminhá-las de volta à minha mente. Preciso delas para preencher o espaço, impedir lacunas na fala e, principalmente, para evitar o ruidoso eco do vazio.”

 

18 comentários:

  1. Que bela crônica. Acho que as palavras vai de mansinho abandonado todas as mente mais velhas. Que pena né.

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  2. Obrigada, Rilka! Gostaria de conservar a memória da juventude, mas não é possivel, faz parte da vida de todos nós que somos jovens há mais tempo.

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  3. Que viagem fabulosa! Quantas e quantas vezes não nos deparamos com situações semelhantes, nesse peregrinar de busca por palavras e intenções!

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  4. Muito legal sua crônica! Eu tb corro atrás dessas fujonas. Na oralidade sempre me deixam na mão,qdo mais preciso delas, depois vêm devagarinho, ah, seus companheiros, os sinônimos, esses ficam sempre à distância!Abraços.

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    1. Com o passar do tempo ficamos órfãos de uma ou das duas. Não existe fidelidade delas para conosco. Fazem muita falta.

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  5. Bom, os sinônimos eu até perdoo. Às vezes a gente é má com eles, não abrindo mão das titulares, mesmo quando m. Fica lá o texto, esperando um retorno que acaba de alguma forma acontecendo.

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  6. Ah, os sinônimos eu até perdoo, pelas vezes que foram rejeitados em favor das titulares que retornaram das fugas. Rsrsrs

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  7. Meu comentário ficou duplicado e quando tentei excluir um deles, apagaram-se os dois. Estava dizendo à Rosicler que o perdão aos sinônimos é uma boa saída pelo muito que já nos foram úteis.

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  8. Meu comentário ficou duplicado e, ao excluir um deles, fugiram os dois. Estava dizendo à Rosicler que os sinônimos já nos foram úteis por muitos anos e que, desta forma, podem ser perdoados.

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  9. Parabéns, Sueli pelo belo texto. Segundo o Houaiss temos 400 mil palavras em nossa língua. Não se aborreça tanto com as ingratas. Em tempo: também morei na Júlia Lopes.
    Wilson Czerski

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    1. Obrigada, Dalton.
      Vou tentar ser mais complacente com elas. Moramos na mesma rua mas provavelmente não na mesma época. A casa em que morei ainda existe naquele endereço.

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  10. Obrigada, Wilson, meu vizinho da Julia Lopes. Das 400 mil palavras, mesmo que algumas fujam, são muitas que poderei usar.

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  11. Sueli Fernandes, demorei mas consegui lembrar de entrar aqui para dizer que: apesar das fujonas, o desenrolar do protesto foi muito divertido rsrs. Sua crônica é ótima, da hora, e me contagiou também rsrs. Feliz Natal!

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    1. Que satisfação te encontrar por aqui, Marlene! Você está sempre presente neste espaço, com seus comentários pertinentes e elogiosos que nos fazem muito bem. Feliz 2022!! Continue conosco.

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