Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.
Postado no Portal aRede em 21/09/2022 e publicado no Diário dos Campos em 08/11/2022.
A casa foi vendida a preço quase vil para uma incorporadora que
pretendia arrasar o quarteirão para explorar ali um estacionamento. A crise na
construção civil, a reboque da baixa das commodities
e da majoração do preço do aço, trouxe o mercado para o fundo. Durante algum
tempo a casa ficou como estava; depois os invasores percorreram os seus
cômodos, furtaram a porta de alumínio e os gradis, puxaram a fiação, grafitaram
seus codinomes nas paredes, depredaram tudo.
Mas, antes, houve vários "antes". O antes de aquela casa
ser mera edificação e dormitório, o antes de ser residência e habitação de
pessoas satisfeitas ou não (domicílio civil e nada mais) e inclusive o antes de
ser um verdadeiro lar, embora por pouco tempo.
Esse antes específico foi o dos últimos moradores ─ um lar, sim ─,
mas de repente as coisas não andaram bem. Numa época qualquer, o proprietário
teve um dia feliz: a sorte fugitiva veio ao seu encontro de hora em hora, no
ritmo mecânico do moto-contínuo e com a regularidade dos movimentos planetários,
transformando-o e transformando o seu entorno. Com a alma banhada pela
gratidão, ele voltou pela calçada pensando em tomar assento no sofá, convocar
os seus, dar as boas notícias e lhes dizer: "Tudo isso também é por vocês todos". Mas quando ele cruzou o hall de entrada segurando esse
pensamento com as duas mãos, um leve estremecimento na atmosfera ou
deslocamento imperceptível no ar anteciparam o que em seguida ficou claro: que
tudo estava desfeito, aquele lugar já não seria mais seu, que os retratos
cairiam das paredes, o ciclo estava findando, o mundo conhecido se degradara.
Num raio de apenas três quilômetros dali, a administração municipal
já promovera o tombamento de cinco edificações históricas ─ mas não daquela
casa. Por esse motivo, a memória histórica e urbanística não preservou
exatamente o que aconteceu naquele dia em especial. Certo é que algo aconteceu
lá, destinos foram definidos, e depois foi como no poema de Drummond: "A casa foi vendida com todas as lembranças /
todos os móveis / todos os pesadelos / todos os pecados cometidos e em vias de
cometer".
Muitas casas, como muitos antes, estão sendo levadas para um mesmo depois, em nossa cidade. Diversidades de interesses se contrapõem, e descompõem os cenários, desatrelando a modernidade da memória. Parece mais forte o sentimento de perda do que o de admiração. Ou não estamos ouvindo a voz das novas gerações? Ou deixamos de incutir nelas as memórias culturais?
ResponderExcluirGrato, Rosicler e Sueli. Att.
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