segunda-feira, 19 de setembro de 2022

A casa

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa. 

Postado no Portal aRede em 21/09/2022 e publicado no Diário dos Campos em 08/11/2022.

A casa foi vendida a preço quase vil para uma incorporadora que pretendia arrasar o quarteirão para explorar ali um estacionamento. A crise na construção civil, a reboque da baixa das commodities e da majoração do preço do aço, trouxe o mercado para o fundo. Durante algum tempo a casa ficou como estava; depois os invasores percorreram os seus cômodos, furtaram a porta de alumínio e os gradis, puxaram a fiação, grafitaram seus codinomes nas paredes, depredaram tudo.

Mas, antes, houve vários "antes". O antes de aquela casa ser mera edificação e dormitório, o antes de ser residência e habitação de pessoas satisfeitas ou não (domicílio civil e nada mais) e inclusive o antes de ser um verdadeiro lar, embora por pouco tempo.

Esse antes específico foi o dos últimos moradores ─ um lar, sim ─, mas de repente as coisas não andaram bem. Numa época qualquer, o proprietário teve um dia feliz: a sorte fugitiva veio ao seu encontro de hora em hora, no ritmo mecânico do moto-contínuo e com a regularidade dos movimentos planetários, transformando-o e transformando o seu entorno. Com a alma banhada pela gratidão, ele voltou pela calçada pensando em tomar assento no sofá, convocar os seus, dar as boas notícias e lhes dizer: "Tudo isso também é por vocês todos". Mas quando ele cruzou o hall de entrada segurando esse pensamento com as duas mãos, um leve estremecimento na atmosfera ou deslocamento imperceptível no ar anteciparam o que em seguida ficou claro: que tudo estava desfeito, aquele lugar já não seria mais seu, que os retratos cairiam das paredes, o ciclo estava findando, o mundo conhecido se degradara.

Num raio de apenas três quilômetros dali, a administração municipal já promovera o tombamento de cinco edificações históricas ─ mas não daquela casa. Por esse motivo, a memória histórica e urbanística não preservou exatamente o que aconteceu naquele dia em especial. Certo é que algo aconteceu lá, destinos foram definidos, e depois foi como no poema de Drummond: "A casa foi vendida com todas as lembranças / todos os móveis / todos os pesadelos / todos os pecados cometidos e em vias de cometer".

2 comentários:

  1. Muitas casas, como muitos antes, estão sendo levadas para um mesmo depois, em nossa cidade. Diversidades de interesses se contrapõem, e descompõem os cenários, desatrelando a modernidade da memória. Parece mais forte o sentimento de perda do que o de admiração. Ou não estamos ouvindo a voz das novas gerações? Ou deixamos de incutir nelas as memórias culturais?

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