segunda-feira, 3 de abril de 2023

Minha primeira bicicleta

Texto de autoria de Yonara Cheres, professora de Educação Física, natural de Reserva, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 04/04/2023, no Portal TánoTipo em 15/06/2023, e publicado no Diário dos Campos em 17/05/2023.

Minha primeira bicicleta, eu ainda a tenho em casa. Está toda enferrujada, com as marcas do tempo, porque, quando a ganhei, já era de segunda mão. E de uma segunda mão extremamente operária. Daquelas mãos que te servem e você nem as vê.

Se eu exagerava e brincava por muito tempo, caía a correia, ou arrebentava. Aí eu ficava dias de castigo, sem poder colocar meus pezinhos naquele pedal grande; então, para me distrair, passava horas na frente da casa, olhando os operários que construíam o asfalto que ia da minha cidade, Reserva, até Cândido de Abreu. De longe, sempre ficava pensando na hora que, por estradas imaginárias, poderia voltar a praticar exercícios físicos na minha bichinha — mesmo sem ter consciência de que eram exercícios físicos. A especialista em mecânica de bicicletas era a vó Lena, mas ela geralmente se chateava, quando precisava arrumar o brinquedo, porque isso atrapalhava seus planos do dia: como morávamos no Bairro de Lourdes, a vó tinha que ir “pra cidade” para comprar outra correia. Consertada a bicicleta, eu corria para pedalar com toda a força de minha infância; como os freios quase nunca funcionavam, o capotamento era certo. E eu acabava apertando ou luxando os dedos dos pés ou das mãos.

O barulho do ferro era ensurdecedor, desde parte da manhã até a noite; e o óleo passado nas peças muitas vezes sujava minhas roupas já batidinhas. A bronca vinha, mas, mesmo com ela, eu sentia as mãos enrugadas e calorosas na minha cabeça, um carinho guardado até hoje no fundo do coração.

Apenas anos depois, já adulta, soube que meu brinquedo favorito era muito antigo. E que a vó Lena havia comprado a bicicleta de uma senhora polonesa, pagando com uma carroça velha. Vó Lena fizera uma troca justa, ela não precisava da carroça, nem tinha mais cavalos, e a “Polaca” — como era chamada carinhosamente a senhora — não sabia andar no “trem” do brinquedo.

Vó Lena também andava na bicicleta, era uma disputa em que eu corria para sentar, e ela sentava para correr. Eu ganhava o mundo, o meu mundo dos sonhos; e ela conquistava o seu mundo real, um mundo onde tudo cobra seu preço, sempre com o brinquedo rangendo ferros para nós duas.

Hoje aposentada, mesmo funcionando, a minha máquina Pfaff 30, da cidade de Kaiserslautern, fabricada no início do século XX, guarda ainda o cheiro gostoso da vó Lena, o barulho do trabalho da vó Lena e os fios bem trançados das costuras da “Dona Negrinha”, como a conheciam suas clientes.

7 comentários:

  1. Parabéns. Texto envolvente, delicioso. Saudades da minha bicicleta também!

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  2. Que memórias lindas! Grata por compartilhar, com uma escrita tão sensorial! Viajei (de bicicleta) no tempo!

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  3. Infância sem bicicleta não é tão divertida
    sobretudo quando se misturam lembranças da avó. Eu também fiz peripécias com a minha bicicleta, presente de um longínquo Natal.

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  4. Texto maravilhoso prima. Que venham os próximos, ansiosa pra ler.

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  5. Oi, Yonara, que texto sensível, me deu vontade de pedalar, um abraço.

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  6. Ahhh! Que delícia, me vi um pouco na sua história, pois também tive minha primeira bicicleta aos 7 anos de segunda mão, e foi meu primo mais velho, que hoje é padre e morava conosco na época que me ensinou a andar.

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  7. Muito lindo...Que lembrança hein...

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