segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Audiência de instrução

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Publicada no Correio Carambeiense em 22/01/2022, postada no Portal aRede em 09/02/2022 e no Portal CulturAção em 07/06/2022.

Escutei o relato abaixo de diversas pessoas nesses anos em que resido nos Campos Gerais. Se é crônica, farsa, lenda ou parábola, desconheço, mas vez em quando alguém me conta.

Era audiência de instrução numa ação de aposentadoria rural. Audiência corriqueira, quase todos os dias saem várias. Juiz e advogados a postos, a parte com aquele semblante que as pessoas ostentam quando vão a fóruns e hospitais.

Dali a pouco, o juiz pergunta se a parte (a saber: um agricultor idoso) tinha documento que provasse o tempo que dizia ter trabalhado no campo. Pergunta reta assim, é bom que se diga, era coisa rara naqueles tempos (não sei quando foi, estou fabulando que seja história velha). A Justiça não estava próxima do cidadão comum, juízes interrogavam as partes sobre animus domini, actor voluntarius agitur e outros latinórios acessíveis somente aos bacharéis, rábulas e outros adeptos da Corte.

Mas a parte, isto é, o idoso, não tinha documento nem testemunha viva. O sujeito nascia em casa mesmo, desde a primeira infância lavrava a terra com os irmãos (os que sobreviviam), gerava filhos para continuar trabalhando a terra (os que sobreviviam), em algum momento morria e era enterrado debaixo da mesma terra; nem certidão de nascimento às vezes tinha.

Sempre foi e talvez continue sendo a crônica desse brasileiro até o dia em que o homem finalmente logre aniquilar a natureza e por ela ser aniquilado, pondo fim a todas as coisas conhecidas e desconhecidas. Sobreviver ao parto, não se desfazer em disenteria nem perecer de meningite, dominar o solo – arar e cultivar, semear, colher –, suportar as sucessões de chuva – pouca ou excessiva – e o mormaço cruel, as pragas e as pestes, evitar a morte até morrer, lidar escassamente com papéis.

O pobre do agricultor pobre era tão analfabeto nesse dia como naquele em que nasceu, mas sem entender de lei escutou a pergunta e já viu tudo: documento? Prova? Isso não se usava naquelas bandas. Adeus aposentadoria rural. Levou as mãos ao rosto por puro desalento.

E aí o juiz deu com aquelas mãos. Nunca tinha visto coisa semelhante, eram grossas, escalavradas de puro calo, queimadas por mil anos de sol. O juiz era nascido e crescido na cidade, mas já havia visto raízes de carvalho; era nisso que as mãos de dedos tortos faziam pensar: em raízes de carvalho.

Prolatou na audiência mesmo a sentença: ao idoso, a aposentadoria. Sequer usou o latim cuique suum ("a cada um o seu"). Poder prolatar sentença em audiência, está no Código.

 

8 comentários:

  1. Excelente crônica. Fato semelhante inspirou uma crônica minha, anos atrás, já, em que um parente do Silvestre, meu esposo, reclamava que "antes era só falar com pessoas certas" para resolver casos como esse. Tratava-se da aposentadoria de uma filha dele, que "trabalhava rente na lavoura" desde menina, e não conseguiu se aposentar, pois as notas fiscais de venda da produção estavam todas em nome do patriarca, proprietário do imóvel rural. Nada entendo de leis e códigos. Suponho que esse "prolatar sentença na audiência" tenha algo a ver com decidir "a favor" do solicitante, mesmo sem elementos probatórios, pois para que fosse "contra" haveria de ser de outra forma. Perdoe-me se me engano. Eu diria que o personagem de sua crônica deve ter encontrado a "pessoa certa".

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    1. (P.s: o blogger não me identificou como tal, mas sou o autor da Crônica).

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  2. Assim deveria ser sempre! Justiça "justa".

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  3. Às vezes a prova está na cara, não sendo necessários documentos probatórios. Nesta bela crônica a prova pedida ao idoso ele não trazia nas mãos e sim, marcadas nas próprias mãos. Sensibilidade e empatia são úteis em qualquer situação.

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  4. Tiro o meu chapéu para o cronista: Luiz Murilo, para o agricultor e também para o juiz 👏👏👏👏

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  5. Realmente uma bela e surpreendente história Torço para que não tenha sido uma farsa ou lenda. Uma instrutiva parábola, talvez. Preferencialmente fatos reais. Mas a lição é profunda.

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  6. P.S: Rosicler, respondi ao seu comentário, mas infelizmente o blog, talvez por alguma inconsistência técnica momentânea, o cortou. Que pena.

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