segunda-feira, 18 de julho de 2022

A explosão do pinhão

Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede em 20/07/2022, e publicada no Diário dos Campos em 07/09/2022.

    Mesmo entre os paranaenses, devo ser a única a ter visto tal cena. Além do mais, mesmo entre os resistentes defensores do cozimento da resiliente semente, provavelmente sou a primeira a manchar um livro dessa forma.

    Engenharia adquirida na popular Feira do Largo da Ordem, na vizinha Curitiba, o descascador de pinhão teve a infortuna chance de explodir a semente encharcada em sal e água. Durante os milésimos de segundos que antecederam o desmembramento da casca até o segundo exato em que o livro foi manchado pelas colorações sanguíneas, apenas as fendas sinápticas foram capazes de reagir, não entregando ao músculo a mensagem efetiva.

    Consequência: Lispector estava manchada de sangue. O constrangimento, por saber não ser possível retirar das páginas as marcas de “sangue”, me visita toda vez que observo as bordas tingidas das páginas. Em minha defesa: não é sangue verdadeiro — embora engane — e nem poderia eu adivinhar, com anos de prática outonal/invernal, que o delicioso alimento seria capaz de tamanha atrocidade. 

    Justo a Lispector que demorei tanto tempo para finalizar! Vandalizada pela cachorra filhote, que aliás adorou o sabor de Macabeia, também foi eternamente marcada pelas entranhas do endosperma.

    Aqui, nesta prateleira comprada em uma loja popular ponta-grossense, reside uma coletânea de tantos outros escritores (não mastigados). Fragmentos de almas que repousam nas páginas, até que sejam reabertas e ressuscitadas. Um desafio à imaginação: sequer suspeitavam eles que seus pensamentos escritos residiriam na ensolarada e fria Ponta Grossa, dos passados trânsitos tropeiros.

    Mencionando os desafios imaginativos, creio que Clarice jamais imaginou, ao imprimir suas histórias, acabassem elas quase digeridas por uma dachshund de seis meses. Tampouco ficaria feliz com os respingos vermelhos em suas páginas.

    Ora, a perdoável insaciedade canina. Ora, o imperdoável descuido.

    Eu? Como boa ponta-grossense, continuo cozinhando o pinhão na pressão. Porém, bem longe do ambiente de leitura. Nesse ambiente criado para sobreviver aos ditames tecnológicos e superar os traumas literários passados, abro um livro.

    Ainda que a Natureza esteja perigosamente cozinhando tempo demais em uma panela de pressão, e mesmo que não seja possível limpar as manchas da ação humana, abro um livro. Abro-o como quem abre as portas do Universo. Dali ressurgem humanos de outras épocas, belezas findas e, sobretudo, a alma humana. Vez ou outra, mastigada ou tingida.

3 comentários:

  1. Que texto divertido Aline! Uma pontagrossense "da gema", ou melhor, "do pinhão". Coitada da Lispector, que teve sua imagem literalmente manchada...

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  2. Manchar Clarice, mastigar Clarice...
    Quantas circunstâncias de Clarice, além daquelas que desnudam sua alma... por meio da leitura. Parabéns pelo texto, Aline.

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  3. Quem ainda não passou pelo infortúnio de receber respingos molhados, salgados e retintos ao separar a deliciosa semente da casca? Um livro manchado de água de pinhão, porém é a primeira vez que tomo ciência, e ainda da Lispector! Você é muito inspirada e uma grande escritora, querida Aline. Aplausos pela beleza deste texto!

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