segunda-feira, 10 de julho de 2023

Proparoxítonas

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal TánoTipo em 02/08/2023, e publicado no Diário dos Campos em 12/07/2023.

No finalzinho da tarde, quando começam a silenciar os ruídos da rua, o tilintar de louças e talheres na cozinha, a tranquilidade se apresenta e é nesse momento que gosto de relaxar corpo e mente.  Aconchego-me a uma rede, fecho os olhos e entrego-me à paz reinante. Inicia-se, então, o meu relaxamento, o qual, já me disseram, é um tanto esquisito. Descanso buscando na memória, aleatoriamente, somente palavras proparoxítonas, todas as que lembro. Criei esse hábito desde a infância. Morávamos numa casa de madeira rodeada de flores e verduras no lado ímpar da Rua Júlia Lopes, na tranquila Órfãs, em Ponta Grossa. Meu quarto era contíguo ao dos meus pais. Após o jantar, quando todos já estavam recolhidos, escuridão total, minha mãe e eu rompíamos o silêncio da noite. Apesar da parede que nos separava, o som de nossas vozes alcançava uma e outra e começava o jogo de palavras proparoxítonas ditas alternadamente. Nenhuma queria desistir e encontrávamos palavras do arco-da-velha para não perder aquele jogo: médico, pêssego, cólica, lágrima, dívida, hálito, matemática, abóbora, vírgula, palavras do nosso cotidiano, até que uma das duas era vencida pelo sono, a brincadeira se encerrava e ouvia-se somente o ressonar do meu pai. Leitora contumaz, minha mãe lia o que quer que fosse e, como diz o provérbio latino, “as palavras movem e o exemplo arrasta”. Através das leituras nosso vocabulário foi crescendo e já desfilavam na brincadeira vocábulos mais sofisticados, pouco usuais como sôfrego, elíptico, lânguida, píncaro, cósmico, arquétipo, artrópode, insólito, trôpego, sândalo, mármore, flâmula, plácida, uníssono, calêndula, efêmero, diagnóstico...

A mentora desta e de outras incríveis brincadeiras se foi. A casa onde vivíamos, agora vazia, foi invadida por estranhos que furtaram a fiação elétrica, tomadas e interruptores, danificando paredes e teto. Não satisfeitos, voltaram uma segunda vez e arrancaram todos os metais. Não sobrou nada intacto, tudo foi destruído por esses seres estúpidos. Ao ver aquela cena dantesca minha indignação e repulsa explodiram em proparoxítonas: vândalos, crápulas, bárbaros, toxicômanos... A casa ficou oca, quase demolida. O número 633, em bronze, também interessou aos patifes. Com as experiências vividas muitas palavras se juntaram às já dominadas e a rede não tem ciência que embala centenas de proparoxítonas que habitam em mim enquanto relaxo no finalzinho da tarde. Não é mais um jogo, é um prazeroso e relaxante vício. Quiçá esquisito.

10 comentários:

  1. Que crônica maravilhosa, Sueli! Embarquei em tuas palavras e parece que vivi o momento junto com você. Parabéns por mais uma belíssima crônica!

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    1. É tão bom escrever e saber que o texto tocou o coração de alguém! Obrigada, Francielly!

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  2. Parabéns, Sueli! Fiquei imaginando o jogo de palavras como um relaxante para dormir. Vou tentar essa técnica, também.

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  3. Era um passatempo pedagógico. Eu procurava palavras novas nas revistas de palavras cruzadas para ganhar o jogo da noite e aprendi muito com este exercício. Obrigada, Rosicler!

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  4. Sempre muito bom ler suas crônicas! 😍😘

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    1. Melhor ainda é saber que minhas crônicas são do seu agrado. Obrigada.

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  5. Ah essas idiossincrasias domésticas! Amália Max continua me surpreendendo com sua criatividade (falávamos sobre isso em evento recente) e Sueli Fernandes embarcando na mesma wibe! Parabéns pelo texto! ALFREDO MOURÃO

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    1. Lembro desse papo. Ela criava brincadeiras e jogos diferentes e educativos e confeccionava brinquedos com materiais alternativos para nós. Grata pelo comentário, Mourão.

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  6. Espetáculo de crônica, Sueli. Amei! Gosto de me pegar no embalo das crônicas alheias, mais do que das próprias. Fico imaginando... bom, você já devia ser moça quando aprendeu o que são palavras oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas... Ou criança ainda, por influência da mãe?

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  7. Obrigada, Dalton. Acentuação gráfica é matéria da quarta série do fundamental. Não resta dúvida que minha mãe teve papel importante nesse aprendizado. Ela gostava da língua portuguesa e eu também. Um abraço.

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