Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.
No finalzinho da tarde, quando começam a silenciar os
ruídos da rua, o tilintar de louças e talheres na cozinha, a tranquilidade se
apresenta e é nesse momento que gosto de relaxar corpo e mente.
Aconchego-me a uma rede, fecho os olhos e entrego-me à paz reinante. Inicia-se,
então, o meu relaxamento, o qual, já me disseram, é um tanto esquisito.
Descanso buscando na memória, aleatoriamente, somente palavras proparoxítonas,
todas as que lembro. Criei esse hábito desde a infância. Morávamos numa casa de
madeira rodeada de flores e verduras no lado ímpar da Rua Júlia Lopes, na
tranquila Órfãs, em Ponta Grossa. Meu quarto era contíguo ao dos meus pais.
Após o jantar, quando todos já estavam recolhidos, escuridão total, minha mãe e
eu rompíamos o silêncio da noite. Apesar da parede que nos separava, o som de
nossas vozes alcançava uma e outra e começava o jogo de palavras proparoxítonas
ditas alternadamente. Nenhuma queria desistir e encontrávamos palavras do
arco-da-velha para não perder aquele jogo: médico, pêssego, cólica, lágrima,
dívida, hálito, matemática, abóbora, vírgula, palavras do nosso cotidiano, até
que uma das duas era vencida pelo sono, a brincadeira se encerrava e ouvia-se
somente o ressonar do meu pai. Leitora contumaz, minha mãe lia o que quer que
fosse e, como diz o provérbio latino, “as palavras movem e o exemplo arrasta”.
Através das leituras nosso vocabulário foi crescendo e já desfilavam na brincadeira
vocábulos mais sofisticados, pouco usuais como sôfrego, elíptico, lânguida,
píncaro, cósmico, arquétipo, artrópode, insólito, trôpego, sândalo, mármore,
flâmula, plácida, uníssono, calêndula, efêmero, diagnóstico...
A mentora desta e de outras incríveis brincadeiras se foi.
A casa onde vivíamos, agora vazia, foi invadida por estranhos que furtaram a
fiação elétrica, tomadas e interruptores, danificando paredes e teto. Não
satisfeitos, voltaram uma segunda vez e arrancaram todos os metais. Não sobrou
nada intacto, tudo foi destruído por esses seres estúpidos. Ao ver aquela cena
dantesca minha indignação e repulsa explodiram em proparoxítonas: vândalos,
crápulas, bárbaros, toxicômanos... A casa ficou oca, quase demolida. O número
633, em bronze, também interessou aos patifes. Com as experiências vividas
muitas palavras se juntaram às já dominadas e a rede não tem ciência que embala
centenas de proparoxítonas que habitam em mim enquanto relaxo no finalzinho da
tarde. Não é mais um jogo, é um prazeroso e relaxante vício. Quiçá esquisito.
Que crônica maravilhosa, Sueli! Embarquei em tuas palavras e parece que vivi o momento junto com você. Parabéns por mais uma belíssima crônica!
ResponderExcluirÉ tão bom escrever e saber que o texto tocou o coração de alguém! Obrigada, Francielly!
ExcluirParabéns, Sueli! Fiquei imaginando o jogo de palavras como um relaxante para dormir. Vou tentar essa técnica, também.
ResponderExcluirEra um passatempo pedagógico. Eu procurava palavras novas nas revistas de palavras cruzadas para ganhar o jogo da noite e aprendi muito com este exercício. Obrigada, Rosicler!
ResponderExcluirSempre muito bom ler suas crônicas! 😍😘
ResponderExcluirMelhor ainda é saber que minhas crônicas são do seu agrado. Obrigada.
ExcluirAh essas idiossincrasias domésticas! Amália Max continua me surpreendendo com sua criatividade (falávamos sobre isso em evento recente) e Sueli Fernandes embarcando na mesma wibe! Parabéns pelo texto! ALFREDO MOURÃO
ResponderExcluirLembro desse papo. Ela criava brincadeiras e jogos diferentes e educativos e confeccionava brinquedos com materiais alternativos para nós. Grata pelo comentário, Mourão.
ExcluirEspetáculo de crônica, Sueli. Amei! Gosto de me pegar no embalo das crônicas alheias, mais do que das próprias. Fico imaginando... bom, você já devia ser moça quando aprendeu o que são palavras oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas... Ou criança ainda, por influência da mãe?
ResponderExcluirObrigada, Dalton. Acentuação gráfica é matéria da quarta série do fundamental. Não resta dúvida que minha mãe teve papel importante nesse aprendizado. Ela gostava da língua portuguesa e eu também. Um abraço.
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