segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Metamorfose

Texto de autoria de Márcia Derbli Schafranski, professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficiente Investigadora pela Universidade de Extremadura, na Espanha, residente em Ponta Grossa.

Enquanto aguardava seu filho, que uma vez por semana jantava com ela, dona Lia assistia, na TV, ao noticiário local. Ouviu o barulho da porta se abrindo e, de repente, Carlos Alberto surgiu, vestido com uma calça jeans muito justa, uma jaqueta de couro e estranhas botinas, tendo nas mãos um capacete de motoqueiro. Acostumada a vê-lo sempre impecavelmente vestido, com seus ternos discretos e muito bem talhados, ela estranhou a indumentária do filho.

Ao seu lado, estava uma garota, de no máximo 20 anos. De supetão seu filho falou: “Mamãe, quero apresentar-lhe a minha namorada, vamos nos casar no final do ano!”.  Ele estava com 52 anos, e a menina tinha idade para ser sua filha.  

Nobre causídico, formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, PhD em Direito Tributário, logo foi aprovado no concurso para docentes dessa mesma instituição. Autor de vários livros e artigos, era muito admirado e elogiado por sua competência e dedicação profissional. Durante a sua vida, teve algumas namoradas, mas, como estava sempre envolvido com congressos, palestras, viagens ao exterior para ministrar cursos, os namoros nunca evoluíam para um compromisso mais sério, e ele acabava sozinho.

Tentando ser educada, dona Lia perguntou à mocinha: “Qual curso você faz, minha filha?”. A garota simplesmente respondeu: “’Tia’, sou muito nova e ainda não optei por uma carreira. No momento, estou mais preocupada em ‘curtir a vida’ com o meu Carlucho.”. Dona Lia ficou indignada e pensou: “Como podia, seu filho, o Dr. Carlos Alberto Menezes de Miranda e Albuquerque, ínclito advogado e escritor, membro de tradicional família ponta- grossense, admitir ser chamado de Carlucho?”.

  Mais uma surpresa: “Mamãe, hoje não vou jantar com a senhora. Nós vamos ao Centro de Eventos, assistir a um show de heavy-metal.”. Logo ele, que sempre abominara esse estilo de música, agora faria parte da plateia?  

A cada dia, o filho a surpreendia, passando a agir como um adolescente, vestindo-se e portando-se de maneira esdrúxula e deixando em segundo plano a sua carreira acadêmica e os seus compromissos profissionais.

Muito preocupada com o estranho comportamento do filho, aventou a possibilidade de Carlos Alberto não estar em pleno uso das suas faculdades mentais. Sem saber como agir, dona Lia resolveu consultar uma psicóloga. Adentrou a sua sala e sem ao menos cumprimentá-la, num ímpeto de desespero, exclamou: “Doutora, vim pedir-lhe socorro:  o meu filho emparveceu!”.

O silêncio que grita

Texto de autoria de Sílvia Maria Derbli Schafranski, advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa.

Escondido entre as curvas sinuosas da serra e a vastidão da Mata Atlântica, vivia Mirslavo – um detetive que falava com os mortos. A cidade de Reserva (desmembrada do Município de Tibagi), antes um povoado originário da colonização de poucos fazendeiros na década de 1930, era um lugar onde a justiça muitas vezes era feita pela ponta do revólver. Naquele tempo, as disputas não chegavam ao tribunal; elas eram resolvidas na bala, e os sobreviventes que contassem a história.

Mirslavo não era homem de se impactar com cadáveres. Ele os encarava como quem lê uma carta antiga, desbotada, mas cheia de verdades incômodas. "O corpo, mesmo sem vida, fala", dizia ele, e seus olhos varriam a cena do crime como um cão que segue a trilha de sua presa. E foi assim que ele encontrou João Lacerda, estirado na terra que tanto cultivava, com um buraco no peito e um silêncio que gritava vingança.

João não era santo. Suas desavenças eram conhecidas, principalmente com os índios caingangues que habitavam a região. E assim, como num folhetim barato, o nome de Cacique Serolê surgiu como o provável algoz. Mas Mirslavo, mais que ninguém, sabia que o óbvio raramente era a verdade.

Ao rodear o corpo, viu as pegadas. Não eram de Serolê, mas de alguém que arrastava um segredo pesado demais para carregar. Olhou para a estrada e notou as marcas de pneus, quase apagadas pelo tempo, como uma lembrança que se quer esquecer. E ali, no meio do pó e do sangue seco, ele viu o caminho que levava à casa de Manuel Vicente Barbosa, um homem discreto, daqueles que a cidade nunca percebe, até ser tarde demais.

Manuel não vacilou diante do detetive, mas Mirslavo, com seus olhos de lince, enxergou a sombra da culpa no olhar do homem. A farsa, no entanto, só se desfez quando o detetive encontrou, no bolso de João, um bilhete amassado. Um convite para a morte, escrito de próprio punho por Manuel. A dívida era antiga, a paciência, curta. No calor de uma discussão, a arma de Manuel falou mais alto, e ele, com a mão trêmula, tentou apagar os rastros de sua fraqueza.

Confrontado com as evidências, Manuel cedeu, desabando como um prédio mal construído. Confessou tudo, do rancor ao disparo, e então a cidade soube que, mesmo ali, onde a bala fazia a lei, a verdade ainda fazia se desvelar.

Mirslavo, com a capacidade única de desvendar os segredos dos mortos, solucionou mais um caso, mostrando que, em um tempo onde as armas ditavam a lei, a verdade ainda podia ser ouvida, mesmo no silêncio dos mortos.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Direito: 70 anos

Texto de autoria de Sílvia Maria Derbli Schafranski, advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa.

Em 1954, Ponta Grossa, uma cidade de ares provincianos e ventos gelados, assistia ao nascimento de um sonho: o curso de Direito, que emergia como promessa de um futuro repleto de nobres causídicos. Mas havia um desencontro. A aprovação estava ali, no papel, mas a implantação só veio a acontecer nos idos de 1958, quando a primeira turma começou a trilhar os caminhos da graduação.

Os primeiros anos trouxeram nomes imponentes de vozes docentes que ecoavam pelos corredores da academia. Jugurta Gonçalves de Oliveira e Wilson J. Comel, com suas economias políticas, eram os arautos de um futuro incerto. Mário Lima Santos, com sua Teoria Geral do Estado, parecia moldar a própria argamassa do poder. E o Padre Miguel um sacerdote da lei, que ensinava Introdução à Ciência do Direito. Era uma época em que o Direito Romano, ministrado por Estevão Zewe Coimbra e Ducastel Hycz, ressurgia como um fantasma que se recusava a partir.

E havia mais: Lourival Santos Lima (Introdução à Ciência do Direito), Marino Brandão Braga, Fernando Bittencourt Fossler, e tantos outros, todos com seus saberes que mais pareciam segredos guardados a sete chaves. Durante as aulas cada palavra parecia esculpir o destino de uma nação. Mas o destino, naquele tempo, era de um só gênero: masculino.

O Brasil refletia as sombras de desigualdades. O adultério! Um crime que pesava mais para a mulher do que para o homem. A igualdade de gênero era uma promessa vazia da Constituição de 1946. O casamento, esse contrato inflexível, tinha na virgindade feminina o seu selo de qualidade. O divórcio? Impensável...

Quando a primeira turma do curso de Direito de Ponta Grossa finalmente recebeu a imposição de grau, em 21 de dezembro de 1962, os nomes que ecoaram no salão eram todos masculinos, dentre eles, meu tio Jorge Derbli, também Acácio Frare, Adelino G. dos Santos, Admar Horn, Alberto G. Pimenta, e tantos outros homens que entrariam para a história local.

O curso de Direito de Ponta Grossa iria representar um marco na região. Sua importância se destacava como uma luz que começava a brilhar preparando futuras gerações de juristas que moldariam o destino da sociedade. Contudo, naquela época, aquela trajetória era trilhada exclusivamente por homens. As mulheres ainda não participavam desse universo. Observavam, à distância, um mundo que, por ora, parecia não lhes pertencer, aguardando o momento em que também seriam reconhecidas e acolhidas na construção dos pilares da justiça.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Uma janela para dois mundos

Texto de autoria de Newmara Martins de Oliveira Spitzner, Engenheira Civil, natural e residente em Ponta Grossa.

A luz do alvorecer começava a inundar meu quarto, quando aos poucos despertei com o canto distante do galo, o bichinho não era meu, mas eu nutria tanto apreço pelo seu cântico que até sentia como se fosse. Levantei ainda imersa em sonolência e caminhei até a janela, o sol estava despontando no horizonte, banhando os verdes campos com sua luz dourada, um privilégio diário que me enchia de gratidão.  Essa poderia ser uma típica manhã em uma cabana rural, mas não era o caso.

Residente de um apartamento no quarto andar, minha vista era um paradoxo fascinante. Se eu olhasse para a esquerda, o Centro princesino exibia seus imponentes prédios modernos; à direita, eu avistava o mercado Tozetto, do outro lado da rua. No entanto, ao olhar para a frente, ele permanecia ali: o campo verdejante onde eu repousava meus olhos.

Mesmo em uma cidade urbanizada e desenvolvida, algo permanecia intocado, permitindo uma sensação de aconchego em viver ali. Ainda observando pela janela, pude ver a rotina matinal desdobrar-se: o rugido dos carros, o murmúrio de conversas e as risadas dos primeiros transeuntes nas ruas. Sem dúvida, uma região peculiar, a mistura inusitada de cidade grande e vilarejo, onde os moradores desfilam com trajes modernos, mas guardam em seu íntimo a alma bucólica preservada pela tradição.

Perdi-me em pensamentos, imaginando o longo processo de crescimento que ocorreu até atingir esse ponto de equilíbrio e se, em um futuro distante, a energia interiorana sucumbiria ao concreto avassalador. É reconfortante usufruir do conforto e da praticidade citadina. Porém, é ainda mais gratificante poder desfrutar de tudo isso, rodeada por pessoas cordiais, que preservam a mesma simplicidade de outrora, tempos em que se trocavam receitas com o vizinho e conversava-se sobre o clima.

Talvez a minha preocupação fosse precoce e desnecessária. Mas, no fundo, apenas sentia que todo amanhecer que eu testemunhava da minha janela era único e especial, e que só poderia ser assim porque moro no exato lugar onde ele é propício para acontecer.

Viver na cidade de Ponta Grossa é como estar em dois mundos ao mesmo tempo, um pé no futuro e outro no passado, sem nunca perder a conexão com a terra e com as raízes. E, no fim das contas, talvez seja isso que torna este lugar tão especial: a capacidade de ser grande sem nunca deixar de ser pequena, de ser moderna sem perder a simplicidade, de ser cidade sem deixar de ser campo.

Metamorfose

Texto de autoria de  Márcia Derbli Schafranski , professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficien...