segunda-feira, 26 de agosto de 2024

As mulheres no “tempo do epa”

Texto de autoria de Márcia Derbli Schafranski, professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficiente Investigadora pela Universidade de Extremadura, na Espanha, residente em Ponta Grossa.

Num jantar de aniversário, sentei-me com algumas amigas e elogiei o vestido de uma delas, o qual achei muito bonito e elegante.  Ela então, exclamou: nossa, esse vestido é do “tempo do epa”! Há muito tempo, eu não ouvia essa expressão, tipicamente paranaense, que faz alusão ao nome Epaminondas, atualmente em desuso e que se refere a coisas bastante antigas.

Todas as amigas, estavam na faixa dos setenta anos, e então, pusemo-nos a falar sobre as mulheres, que, como nós, viveram no “tempo do epa” e rimos muito. Lembramos então, de que, naquele tempo longínquo, os rapazes tinham que pedir permissão aos pais para namorar as suas filhas, e que elas deveriam sempre agir com o máximo recato e pudor. Sentados no sofá da sala de estar, os enamorados tinham que manter-se num ângulo que, pudesse ser observado pelos genitores da namorada. Os inocentes beijinhos roubados precisavam ser estrategicamente pensados, para um pequeno momento de distração dos pais. Nos bailes, acompanhadas por suas famílias, as moças eram respeitosamente convidadas a dançar e, quando os rapazes as devolviam à mesa, agradeciam a ela e aos pais pela “especial deferência”.

No Clube Pontagrossense, havia até fiscais de salão, para impedir que os rapazes extrapolassem os limites dos “bons costumes”. Nas sessões de cinema, do Cine Ópera, os pais exigiam que os namorados fossem sempre acompanhados por uma “vela”, para vigiar o seu comportamento. Sair sozinha de carro com o namorado?  Nem pensar... O que a sociedade iria comentar sobre esse fato? Essas práticas refletem a mentalidade de uma época, que visava valorizar a castidade das jovens e preservar a reputação feminina.

Se acaso não se casassem no máximo até os vinte e três anos, eram rotuladas de “solteironas”. O tempo de namoro e de noivado não podia ser muito longo, para evitar “surpresas desagradáveis”

As senhoras casadas não deviam sair sozinha às ruas, ou ir às festas sem estarem amparadas pelo braço do marido, pois tal comportamento era considerado absolutamente inapropriado. O desquite e o divórcio, posteriormente, significavam, para as mulheres, um atestado de incompetência conjugal e de perpétua reclusão ao ambiente domiciliar.

Isso, no entanto, não quer dizer que não existiam mulheres que transgrediam os padrões morais e as convenções sociais da época.

Apesar dos exageros e do falso moralismo presentes no “tempo do epa”, ele simboliza o retrato de uma época que marcou a nossa história.

Ao nascer do Sol

Texto de autoria de Rosicler Antoniácomi Alves Gomes, Professora de Português e Inglês, residente em Ponta Grossa.

          Hoje tem os que pescam via Internet. Confortavelmente sob um cobertor, lareira acesa, comemorando com alguma exclamação entusiasmada, ou desaprovando alguma atitude com comentários jocosos, como: “Olhe o tipo do pescador! Leva linguiça para assar na beira do rio!  

          Não o tipo de pescador que foi meu amado e saudoso pai, cuja preocupação era não perder um minuto sequer de pescaria, nem com enrolação na saída, nem com preparação de comida na beira do rio. Reunia-se com o Hermógenes, o Chico Navalha, o Nalepa e outros (alguns com apelidos que Avelino repetia com naturalidade, como se fossem o próprio DNA daqueles parceiros de trabalho nas Oficinas da Rede e das pescarias). Acordava lá pelas cinco da manhã, para preparar a isca dos lambaris, que seriam as iscas dos peixes maiores (frequentemente retornava só com lambaris, mesmo, o que eu achava ótimo, pois, bem fritos, com polenta, não dava para sentir os espinhos, ao contrário dos peixes grandes). A isca primitiva era uma massinha feita de trigo, à qual fibras de algodão eram aderidas de forma muito sutil (para os peixes não perceberem), e para que as bolinhas minúsculas que resultavam dessa massinha não se desmanchassem ao contato com a água. E para não grudarem umas às outras, era o fubá que servia de antiaderente. Foram trocadas por massinhas industrializadas, mais tarde, mas precisavam ser cozidas em água fervente, escorridas e também desagregadas uma das outras com o fubá. Outro item importante, preparado com esmero: a boia (ou melhor: as boias). Sim, além dos preparados no dia anterior: as linhas com anzóis e boias, que, ao afundarem, indicam o momento em que o peixe “belisca” (hora de empregar toda a destreza de pescador), havia também a boia: o “grude”, o “rango”, preparado bem cedinho, antes da saída para o pesqueiro, para não perder tempo na beira do rio. O cheiro irresistível da cebola frita no tempero do virado de feijão com arroz e a linguiça frita me acordavam com água na boca.

          Antes do nascer do Sol, iam apinhados na carroceria do calhambeque do Avelino, ou no “pé de bode” do Chico Navallha, em busca dos bagres e mandis dos Alagados, carás do Caniú, traíras das lagoas do Kalinoski, no rio Tibagi. Nas pontas dos caniços de taquara balançava-se um retalho vermelho de alegria travessa.

          Hoje sonhei com papai. A saudade me acordou antes do nascer do Sol, soprando no ar um cheiro imaginário da cebola frita, prenúncio de uma pescaria, sem perda de tempo, nos pesqueiros do infinito, onde eles estão agora.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Beneficente, um retrato na parede da memória

Texto de autoria de Rogério Lima, empresário, redator e radialista, natural de Ponta Grossa e residente em Palmeira.

No dia 28 de agosto de 1920, em Palmeira, um grupo heterogêneo, do qual faziam parte profissionais de diversos ofícios, fundou a Sociedade Recreativa Beneficente Palmeirense. Era um tempo em que não havia Previdência Social e as sociedades beneficentes funcionavam como tal. Os estatutos previam auxílios diversos para os associados, uma espécie de pecúlio para ocasiões de dificuldades.

Para destacar a importância do Beneficente para Palmeira, basta dizer que o 28 de agosto, durante anos, era praticamente feriado municipal. Hoje, porém, é um “retrato na parede” – no verso de Carlos Drummond de Andrade, no poema que dedica à sua Itabira. Saudade, lembrança, memória de um tempo em que as pessoas conviviam. “E como dói”, para completar com versos do poeta Carlos.

No salão aconteceram memoráveis bailes, saraus e carnavais, muitos promovidos pelo Grêmio Magnólia, o braço feminino do Beneficente. As comemorações de aniversário iniciavam às 6 horas, com um tiro disparado por um pequeno canhão, um sinal para a população de que a festa estava começando. Associados, familiares e convidados reuniam-se para um almoço de confraternização e recreação, com jogos e brincadeiras. À noite, o baile de gala era animado por uma orquestra que, por força de contrato, na abertura, executava o Hino do Beneficente, composição do maestro palmeirense Basílio de Sá Ribeiro. Então, os pares rodeavam o salão, dançando até altas horas.

Outro grande evento era o baile de Réveillon, que só terminava às primeiras horas da manhã de 1º de janeiro. Os carnavais também marcaram época, com a participação de foliões fantasiados e blocos, com confetes e serpentinas lançados ao som de animadas marchinhas.

Quando 28 de agosto deixou de ser uma data de comemorações, a partir dos anos 1970, o Beneficente ainda mantinha atividades, com bailes e saraus dançantes nos sábados reunindo jovens ao som de pop e rock. Sim, os carnavais continuavam animados como antes e em alguns anos aconteceram cinco bailes, além das matinês.

O salão, com suas nove amplas janelas que davam para as ruas Padre Camargo e Vicente Machado, ostentava um grande lustre de cristal e quatro outros menores. Hoje, a imagem do Beneficente é de paredes externas em ruínas, sem cobertura e com tentativa de recuperação. Mas os avanços neste sentido são lentos e uma retomada dos tempos áureos do Beneficente parece distante, tanto quanto o “retrato na parede” do poeta Carlos.

O mar...

Texto de autoria de Marivete Souta, Graduada em Letras e Mestre em Estudos da Linguagem pela UEPG, professora da Rede Estadual e escritora, natural de Ponta Grossa.

Mar... Mariana, eu tenho o mar no nome, na alma. Viver é um modo de navegar. Nunca gostei de um ponto final, assim, como o mar que parece não ter fim. Não fecho aspas...prefiro deixar que tudo se complete, prefiro as reticências... eu ainda não senti o sintoma da morte: ter certezas, finais, minha história será sempre incompleta. Olho a vida como quem olha o mar, uma grande aventura a ser vivida.

Serenamente, acompanho o barulho do vai vem das ondas sob um céu muito azul mesclando-se com ele numa simbiose que só é cortada pelo pôr do sol deslumbrante trazendo uma saudade que tem cheiro. 

Mesmo antes de conhecê-lo o mar despertava em mim fascínio, talvez porque a poesia morasse em mim, talvez porque ele faz imaginar e ela, a imaginação, sempre foi minha fiel escudeira.

A dança das ondas me diz que ele é como eu, imenso! Seu lamento vai tecendo lembranças de um tempo que não volta mais, e as emoções vividas vão bordando lembranças, muitas vividas nos Campos Gerais, onde adotei a Princesa como cidade, cidade natal.

Não me dei conta de como os anos deslizaram tão rapidamente. Aporto na terceira idade depois de uma viagem que me transmutou nessa pessoa que vejo hoje no espelho.  Olho para estas mãos com marcas senis desenhadas pelo tempo, delicadamente toco meu rosto e sinto as marcas que os anos deixaram. Hoje habito este corpo que se move mais lentamente. Outrora fora tão ágil e atraente! Penso... não acho que isso é ruim. Tenho 93 anos vividos plenamente. A imagem que o espelho reflete envelheceu, todavia, ainda vejo a menina que habita em mim. Ela nunca me abandonou. Está aqui, sempre tão presente! 

Envelhecer é um privilégio negado a muitos. Quantos em tenra idade se foram!  Vi muitos virem ao mundo e também muitos partirem. Esse é o legado de quem tem muita idade. Trago na mala muitas lembranças, umas boas, outras nem tanto... mas todas me fizeram ser quem sou hoje. 

O mar é como os meus sonhos... não tem fim e eu carrego ainda dentro de mim a certeza de que nós precisamos correr atrás dos nossos sonhos para não termos que enfrentar os sintomas da morte, porque o maior sintoma da morte é a finitude de nossos sonhos. Olhar a vida como uma grande aventura a ser vivida conserva a alegria na caminhada de quem luta, sonha.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Fantasmas molhados

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica, escritor e jornalista aposentado, natural de Ponta Grossa e residente em Curitiba.

Vinte e seis de julho de 2009. Temperatura agradável. Aquele calorzinho pré-frontal. Os institutos de meteorologia previam muita chuva para aquele domingo.

É provável que todo torcedor do Fantasma já tenha começado a rezar antes mesmo de sair da cama. Sant’Ana, no seu dia, teria que trabalhar, abençoando o Operário Ferroviário. Era dia de decisão.

Naquela tarde, depois de muitas tentativas frustradas, o alvinegro de Vila Oficinas disputaria a sua partida mais importante dos últimos anos. Enfrentaria a Portuguesa Londrinense pela Segunda Divisão do campeonato paranaense.

Em anos anteriores, cabeças-de-bagre em excesso, havia literalmente “batido na trave” e a torcida amargava essa situação vexatória resignadamente. Mas agora bastava um empate para retornar à elite do futebol das araucárias e o adversário já estava eliminado.

Sinceramente não entendo como algumas pessoas possam não gostar de futebol. Talvez por não terem sido brindadas de crescerem próximo aos campos onde a bola rola, ainda que fosse o do Olinda.

Futebol é paixão, um vício capaz de causar problemas no trabalho e – perigo! – em casa. Quem gosta sabe do que estou falando. Futebol é o meu segundo oxigênio. Não vivo sem ele. De domingo a domingo, ao vivo ou pela TV.

Ver os outros correrem atrás da bola e, quando possível, fazer o mesmo. Para alguém com parcos recursos técnicos, o difícil era pegá-la. Então, o lugar predileto era embaixo das traves, ficar esperando que ela viesse até mim e poder carinhosamente afagá-la em meus braços.

Ingresso esperando na casa da irmã, coração batendo mais forte, a saída cedo de Curitiba rumo à Princesa dos Campos. No final da manhã, ela chegou, a chuva.

Às quinze e trinta, início do jogo e o Germano Krüger abarrotado de pessoas e guarda-chuvas na vã tentativa de se proteger do aguaceiro. Desconforto e sofrimento pelo gol que tranquilizaria e não saía. E a Lusinha ameaçou duas ou três vezes e todos de coração na mão. No apito final do juiz, o zero a zero garantiu o Operário na 1ª Divisão do estadual do ano seguinte. A padroeira abençoou.

Maciça invasão no campo completamente enlameado, eu incluso, e festa com os heróis. Carreata desde a Visconde de Mauá, seguindo pela Paula Xavier e alcançando a Vicente Machado nas horas seguintes. Buzinas, fogos de artifício, bandeiras alvinegras e gente, muita gente cantando, gritando e bebendo.

Sem arruaças, nenhum automóvel danificado ou qualquer ato de vandalismo. Fantasmas ordeiros estes. Encharcados até os ossos, mas felizes.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

A partida

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Cenira nasceu no mesmo hospital em que seu filho morreu, e Cenira nasceu de novo na frieza do Centro Cirúrgico – o da Santa Casa – quando o cirurgião, após abrir caminho através de seu abdômen, desvendou a colmeia de coágulos e manipulou a aorta lacerada. Para manter-se desperta, contou o número de pessoas no recinto – cirurgião, enfermeiro, instrumentador, mas não via os rostos, não distinguia os seres, o esforço a lançou para a escuridão enquanto o fluxo sanguíneo reencontrava seu caminho natural.

Quando Cenira deu por si, havia se perdido nos dias. Os olhos não viam e os membros não sentiam os tubos e agulhas que se ligavam ao seu corpo. Dormiu e acordou muitas vezes, ouviu vozes, sonhou com o filho morto no corredor ao lado, sentiu que a viravam e limpavam, a criança chorava. Cenira perturbou-se, o Inácio teria hoje 23 anos, não pode estar ali ao lado chorando como... naquele dia. Desfalecia, prostração viscosa se entranhava nela, quis tocar em si e não se achou.

Prometeu que, ao sair, visitaria o túmulo do filho, sentaria próxima ao jazigo pequeno, na coluna de pedra, e assim tentou fazer. Ninguém a buscou (o pai dera no pé, não conheceu o filho nem durante os poucos anos em que ela conheceu), apanhou um táxi, mas não para casa. Pediu o Cemitério do Cerradinho e o carro deslizou para os confins da Comarca.

Inácio morrera há quase dezoito anos e Cenira ainda sentia as dores agulhando de pouquinho na emboscada das coisas mínimas. Os eucaliptos imensos que ladeiam a Rodovia Agostinho Schwab sempre a faziam pensar num cortejo fúnebre – os primos, os tios de costas para a parede e braços cruzados no velório, maldizendo o pai ausente – tanto tempo passado, os eucaliptos ainda velavam Inácio.

Cenira viu que o taxista não estacionou à frente do cemitério e tentou orientá-lo; a rodovia de terra remetia a um faroeste, memória baça do filho, vestido de caubói, girando com os polegares os revólveres imaginários e soprando os indicadores após o tiro amigável contra a mãe, que ria e se fingia de morta, alheia aos disparos que seu coração verdadeiramente receberia e que a levariam àquela rodovia sem fim.

O taxista estacionou no meio do ermo, deu a volta e abriu a porta. Cenira saiu para protestar e viu que vinha sendo conduzida pelo filho. Inácio crescera, tinha os olhos do avô, olhos que sorriam.

Abraçaram-se, Cenira sentiu que molhava os ombros fortes do filho, sentiu-se destruir, depois voltaram ao carro, sentou-se ao seu lado e Inácio deu a partida.

Metamorfose

Texto de autoria de  Márcia Derbli Schafranski , professora universitária aposentada, Especialista e Mestre em Educação pela UEPG e Suficien...