segunda-feira, 5 de agosto de 2024

A partida

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Cenira nasceu no mesmo hospital em que seu filho morreu, e Cenira nasceu de novo na frieza do Centro Cirúrgico – o da Santa Casa – quando o cirurgião, após abrir caminho através de seu abdômen, desvendou a colmeia de coágulos e manipulou a aorta lacerada. Para manter-se desperta, contou o número de pessoas no recinto – cirurgião, enfermeiro, instrumentador, mas não via os rostos, não distinguia os seres, o esforço a lançou para a escuridão enquanto o fluxo sanguíneo reencontrava seu caminho natural.

Quando Cenira deu por si, havia se perdido nos dias. Os olhos não viam e os membros não sentiam os tubos e agulhas que se ligavam ao seu corpo. Dormiu e acordou muitas vezes, ouviu vozes, sonhou com o filho morto no corredor ao lado, sentiu que a viravam e limpavam, a criança chorava. Cenira perturbou-se, o Inácio teria hoje 23 anos, não pode estar ali ao lado chorando como... naquele dia. Desfalecia, prostração viscosa se entranhava nela, quis tocar em si e não se achou.

Prometeu que, ao sair, visitaria o túmulo do filho, sentaria próxima ao jazigo pequeno, na coluna de pedra, e assim tentou fazer. Ninguém a buscou (o pai dera no pé, não conheceu o filho nem durante os poucos anos em que ela conheceu), apanhou um táxi, mas não para casa. Pediu o Cemitério do Cerradinho e o carro deslizou para os confins da Comarca.

Inácio morrera há quase dezoito anos e Cenira ainda sentia as dores agulhando de pouquinho na emboscada das coisas mínimas. Os eucaliptos imensos que ladeiam a Rodovia Agostinho Schwab sempre a faziam pensar num cortejo fúnebre – os primos, os tios de costas para a parede e braços cruzados no velório, maldizendo o pai ausente – tanto tempo passado, os eucaliptos ainda velavam Inácio.

Cenira viu que o taxista não estacionou à frente do cemitério e tentou orientá-lo; a rodovia de terra remetia a um faroeste, memória baça do filho, vestido de caubói, girando com os polegares os revólveres imaginários e soprando os indicadores após o tiro amigável contra a mãe, que ria e se fingia de morta, alheia aos disparos que seu coração verdadeiramente receberia e que a levariam àquela rodovia sem fim.

O taxista estacionou no meio do ermo, deu a volta e abriu a porta. Cenira saiu para protestar e viu que vinha sendo conduzida pelo filho. Inácio crescera, tinha os olhos do avô, olhos que sorriam.

Abraçaram-se, Cenira sentiu que molhava os ombros fortes do filho, sentiu-se destruir, depois voltaram ao carro, sentou-se ao seu lado e Inácio deu a partida.

6 comentários:

  1. Parabéns Luiz Murilo, no meu entender uma das melhores crônicas já recebidas no projeto. Você deve empenhar-se em publicar um livro de crônicas.

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  2. Rosicler Antoniácomi5 de agosto de 2024 às 12:54

    Uma sensibilidade que torna possível crer no reencontro dos que se amam. Parabéns, Murilo, medalha de ouro!

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  3. Olá, Murilo! Mais uma crônica com conteúdo emocionante, como todas as que escreve. Mantém seu nível alto, insuperável. Sou sua fã.

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  4. Não percebi que meu comentário seria registrado como anônimo. O comentário é meu, Murilo. Sueli Fernandes

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  5. Caros, obrigado pelos comentários e acolhimento de minha crônica. Abraços.

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