Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.
Cenira nasceu no mesmo hospital em que
seu filho morreu, e Cenira nasceu de novo na frieza do Centro Cirúrgico – o da
Santa Casa – quando o cirurgião, após abrir caminho através de seu abdômen,
desvendou a colmeia de coágulos e manipulou a aorta lacerada. Para manter-se
desperta, contou o número de pessoas no recinto – cirurgião, enfermeiro,
instrumentador, mas não via os rostos, não distinguia os seres, o esforço a
lançou para a escuridão enquanto o fluxo sanguíneo reencontrava seu caminho
natural.
Quando Cenira deu por si, havia se
perdido nos dias. Os olhos não viam e os membros não sentiam os tubos e agulhas
que se ligavam ao seu corpo. Dormiu e acordou muitas vezes, ouviu vozes, sonhou
com o filho morto no corredor ao lado, sentiu que a viravam e limpavam, a
criança chorava. Cenira perturbou-se, o Inácio teria hoje 23 anos, não pode
estar ali ao lado chorando como... naquele dia. Desfalecia, prostração viscosa
se entranhava nela, quis tocar em si e não se achou.
Prometeu que, ao sair, visitaria o
túmulo do filho, sentaria próxima ao jazigo pequeno, na coluna de pedra, e
assim tentou fazer. Ninguém a buscou (o pai dera no pé, não conheceu o filho
nem durante os poucos anos em que ela conheceu), apanhou um táxi, mas não para
casa. Pediu o Cemitério do Cerradinho e o carro deslizou para os confins da
Comarca.
Inácio morrera há quase dezoito anos e
Cenira ainda sentia as dores agulhando de pouquinho na emboscada das coisas
mínimas. Os eucaliptos imensos que ladeiam a Rodovia Agostinho Schwab sempre a
faziam pensar num cortejo fúnebre – os primos, os tios de costas para a parede
e braços cruzados no velório, maldizendo o pai ausente – tanto tempo passado,
os eucaliptos ainda velavam Inácio.
Cenira viu que o taxista não estacionou
à frente do cemitério e tentou orientá-lo; a rodovia de terra remetia a um
faroeste, memória baça do filho, vestido de caubói, girando com os polegares os
revólveres imaginários e soprando os indicadores após o tiro amigável contra a
mãe, que ria e se fingia de morta, alheia aos disparos que seu coração
verdadeiramente receberia e que a levariam àquela rodovia sem fim.
O taxista estacionou no meio do ermo,
deu a volta e abriu a porta. Cenira saiu para protestar e viu que vinha sendo
conduzida pelo filho. Inácio crescera, tinha os olhos do avô, olhos que
sorriam.
Abraçaram-se, Cenira sentiu que molhava
os ombros fortes do filho, sentiu-se destruir, depois voltaram ao carro, sentou-se
ao seu lado e Inácio deu a partida.
Parabéns Luiz Murilo, no meu entender uma das melhores crônicas já recebidas no projeto. Você deve empenhar-se em publicar um livro de crônicas.
ResponderExcluirUma sensibilidade que torna possível crer no reencontro dos que se amam. Parabéns, Murilo, medalha de ouro!
ResponderExcluirOlá, Murilo! Mais uma crônica com conteúdo emocionante, como todas as que escreve. Mantém seu nível alto, insuperável. Sou sua fã.
ResponderExcluirParabéns, Murilo. Emocionante!!!
ResponderExcluirNão percebi que meu comentário seria registrado como anônimo. O comentário é meu, Murilo. Sueli Fernandes
ResponderExcluirCaros, obrigado pelos comentários e acolhimento de minha crônica. Abraços.
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