segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Uma pequena Kiev em sublimação

 Texto de autoria de Eduardo Pauliki Solek Ferreira, acadêmico de Direito da UEPG, Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 30/09/2020 3 no Correio Carambeiense em 03/10/2020, postado no Portal aRede em 21/10/2020, lido na CBN Ponta Grossa em 04/11/2020.

Carpinteiro, dona de casa, empresário, professoras, escriturário, vigilante, vendedor de assados e estudante de ciências jurídicas. Eis uma autêntica morada intergeracional. Orações, risadas, intrigas, lágrimas, novelas, pó e cupim.  Subsistindo setenta e cinco anos, bastou pouco mais de uma semana para desmanchá-la.  As telhas quando retiradas esfarelavam-se como paçoca nas mãos de uma criança agitada. As tábuas de madeira eram o esconderijo perfeito dos temidos aracnídeos. O que dizer dos pregos? A ferrugem já os infestava pela falta de proteção em seu romance incessante com a umidade dali.

Quando os três mosqueteiros (Altivir, Edson e João) empreenderam esforços à remoção do teto, seu ajudante deparou-se com uma dicotomia poética: o que associar? “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto não tinha nada” do poetinha, ou o desejo mágico de perseguir a noite para ser “capaz de ouvir e de entender estrelas” do príncipe? Quiçá sejam ambas as coisas. Durante movimentos precisos que cada obreiro fazia, as lembranças tornavam-se cada vez mais imateriais. Janelas haviam sido deslocadas, portas eram compelidas a beijar o chão, e um exército de variados insetos alvoroçava por toda parte do terreno. O refúgio do ucraniano que atravessou o Atlântico agora desaparecia sobre o solo da Vilela. Só que a autoria não vinha do impiedoso Kremlin. Aliás, agora era um bom propósito. O filho do imigrante novamente intervinha heroicamente em prol do bem-estar de seus consanguíneos.

Aos que ali na vez habitavam, mãos lhes foram estendidas antes da queda. Outra sucessora do DNA eslavo cedia o espaço de suas intimidades para que pudessem gozar de um alojamento seguro. Num mundo repleto de corações envenenados e portadores da síndrome de narciso, talvez não seja à toa que o documento mais importante do país afirma: “A família, base da sociedade...”. Ainda que gerações passem, lares sejam desmanchados, tecnologias venham, só a família permanece. Não só permanece como faz uma de muitas pequenas Kievs em sublimação nos Campos Gerais ganharem uma leitura solidária e abundante de esperança.

Aos irmãos Jeroslau e Maria Antônia, uma mensagem deste cronista: o vapor da antiga morada já foi recepcionado pela atmosfera. E sabe quem estava lá para guardá-la celestialmente? O imigrante de Kiev!

terça-feira, 22 de setembro de 2020

A penteadeira

 

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, Professora aposentada, Ponta Grossa.

Publicado no Correio Carambeiense em 26/09/2020, postado no Portal aRede em 02/12/2020, lida na CBN Ponta Grossa em 11/12/2020.


Luísa, ainda criança, veio da Rússia para o Brasil com sua família. Início do século XX. Pedro, aos doze anos, fez o mesmo trajeto com seu irmão um pouco mais velho. Os dois meninos jamais voltaram a ver sua família. Todos eram imigrantes do Volga, os chamados alemães-russos. Nos Campos Gerais o destino se fez Cupido. Vó Luísa e Vô Pedro foram flechados. Parceiros de vida até a morte. Como carpinteiro, cada tábua, cada sarrafo que pregava era o sustento dos onze filhos que tiveram. Conservavam a fé na leitura diária da bíblia, em alemão, na ponta da enorme mesa da cozinha. Um banco de madeira atrás dela e cadeiras com assento de palha na frente. O fogão a lenha cimentado com “vermelhão” completava o ambiente. Nas datas festivas o espaço ficava congestionado de filhas e noras, de avental, ajudando a preparar pratos da culinária alemã e brasileira. Do forno de pedra saíam fumegantes carnes assadas e cucas de uva.

Os homens rodeavam a mesa da sala jogando cartas e tomando “schnaps” para umedecer seus brados ao vencer uma rodada de truco. As crianças brincavam no quintal. Ou seria jardim? O tapete verde formado por alfaces e repolhos era salpicado de cores vivas. Uma roseira aqui, uma hortênsia ali, junquilhos margeando os canteiros. Costume europeu, eu penso.

Antes de comer, a oração de mãos postas. Depois do almoço as traquinagens das primas em conluio. No quarto do casal, móveis de imbuia entalhada e envernizada, a cama muito alta, travesseiros e acolchoados de penas de ganso. Com três espelhos bisotês ovais, a penteadeira convidava-nos a fazer arte. Calados refletiam nossa imagem travessa. A maquiagem da Vó consistia numa caixa de pó-de-arroz Cashmere Bouquet, um batom e o blush pêssego para colorir as maçãs do rosto. Cara pintada, saíamos do quarto de fininho para não sermos flagradas pelas tias que conversavam na cozinha, já sem os aventais.

Eu amava aquela penteadeira antiga e sua banqueta com pernas no estilo Luís XV e almofada de veludo! Aquele móvel tinha alma, falava comigo! A vida viveu seu curso e, quando os avós fizeram a passagem, ela me coube como herança. Na memória olfativa, o suave perfume do pó-de-arroz. O verniz um pouco descorado, os espelhos manchados pelo tempo. No entanto a lembrança não tem manchas. É límpida como os olhos verdes daquela russinha batalhadora que seria nossa matriarca. Uma relíquia que é parte da minha história, alinhavada à história dos meus antepassados.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Namoro por acaso

 

Texto de autoria de Alfredo Mourão de Andrade, aposentado do Serviço Público Municipal de Ponta Grossa.

 Publicado no Correio Carambeiense em 19/09/2020 e no Diário dos Campos em 10./02/2021, lido na CBN Ponta Grossa em 21/10/2020, postado no Portal aRede em 04/11/2020.

Do alto da singular imponência arquitetônica, velhos casarões de 1920 e lá vai poeira, perscrutam a rotina modificada dos poucos passantes desses dias impensáveis. Elegantes fachadas de estilos europeus observam-nos atentamente através das janelas longilineamente primorosas e disfarçadamente curiosas. Majestosos e emblemáticos apesar das décadas errantes impõem-se soberbos e cheios de personalidade no planalto ponta-grossense, exibindo-se na 7 de Setembro, Marechal Deodoro, Largo da Matriz, Rua das Tropas, Coronel Dulcídio, Balduíno Taques e outros becos mais.

Das calçadas incertas os poucos passantes têm tido mais tempo para deitar olhares de admiração sobre os velhos e persistentes casarões patrimoniais. Olhares pueris, jovens, maduros. Os que peregrinam há quase um século permitem-se marejar os olhos cansados, palpitar os corações atribulados, aquecendo-se às tardias lembranças de momentos únicos.

Da observação estrutural despercebida aos olhos humanos, do olhar emocionado e coração pulsante dos filhos de Deus, nasce uma relação inesperada de afeto. Uma incontrolada vontade de estreitamento, de aproximação indisfarçadamente amorosa. E um novo namoro – nunca tardio! – acontece perturbador e inevitável: a relação do inverso.

Detentores de poder e glamour, narradores do tempo e da história, resistentes à insana especulação imobiliária, nossos casarões soberanos permanecessem serenos e fortes. Enquanto nós, frágeis passageiros dos tempos difíceis, sobreviventes das décadas transformadoras, continuamos a virar páginas e fechar livros de uma existência efêmera.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Gansos são cães de polacos

 

Texto de autoria de Aline Sviatowski, estudante, Ponta Grossa.

Publicado no Diário dos Campos em 22/09/2020, postado no Portal aRede em 11/11/2020, lido na CBN Ponta Grossa em 04/12/2020.

Nas proximidades da antiga Colônia Cecília, de passado anarquista, a tranquilidade de hoje não reflete o sistema proposto no passado. Algumas anarquias perduram, porém. Enquanto a aparente calma das relações humanas impera, algumas outras relações animais mantêm-se conturbadas.

O menino caminhava distraído pelas ruas de Palmeira, como habitualmente fazia entre as seis e as sete da manhã. Quando, ao aproximar-se da residência de um caro amigo, escuta certo estralo que o faz parar. Um desses estralos que outorgam o fim. O cessar da vida. Estralo que deixa atônito o menino, que é ouvinte despreparado para os sons da vida rural.

Acena ao amigo com a cabeça. Estampava certo horror (consequência da presença imponente da Morte) e, não obstante, estampava profunda simpatia pelo amigo polonês. Alguns momentos depois, o menino é positivamente surpreendido com um “a janta está garantida, amigo! Vem saborear uma galinha caipira mais tarde”. Após combinados os detalhes, seguiu com a sua caminhada dando vazão ao fluxo de pensamentos filosóficos. “Ao menos foi uma vida plena: pondo vários ovos, ciscando livremente e enchendo o papo a bel-prazer. Embora plena, foi uma vida marcada pela imposição de alimentar-nos”.

A brisa gelada de uma manhã setembrina, que intercalava suspiros invernais com nascentes paisagens primaveris, o fez apertar mais o casaco e esconder os braços dentro das mangas. Colocou o braço esquerdo dentro da manga direita, o braço direito dentro da manga esquerda; como se abraçasse a si mesmo. Cobriu qualquer fragmento de epiderme com maestria.

A morte da galinha e o frio perseguiram o menino no transcorrer do dia. “Um amigo tão gentil, com mãos cheias de sangue. Mas que depois transformaria a pobre ave em deliciosa obra gastronômica para saborearmos juntos o momento”. Eram ironias impossíveis de desconsiderar: previsão de calor, mas frio. Morte, mas vida.

Sete da noite e o menino aproximava-se da casa do amigo. Foi novamente surpreendido, mas agora por Donald, Frederico e Chaves. Bicavam-no, em saudação, ao saírem de suas casas semelhantes às de cachorros. Seu amigo alertou: “cuidado com os gansos, são heranças de família!”. Enfim, a anarquia dos domésticos.

Heróis não morrem, são apenas esquecidos

Texto de autoria de Reinaldo Afonso Mayer , professor Universitário aposentado, Especialista em Informática e Mestre em Educação pela UEPG, ...