segunda-feira, 10 de junho de 2024

Se essa rua fosse minha

Texto de autoria de Wilson Czerski, militar da Aeronáutica, escritor e jornalista aposentado, natural de Ponta Grossa e residente em Curitiba. 

Nem precisava ladrilhar, conforme a canção de ninar. Naquela época um bom cascalho já resolvia. Morei na Cesário Alvim cerca de oito anos, na década de 1960. Jardim Central. Nome afrontoso para o local. De jardim não tinha nada. Número 1121. Ou 121? Talvez nem um nem outro. A memória está embaçada. Mas era perto dos trilhos que separavam Olarias de Oficinas.

          Da primeira para a segunda e para nós, descia e depois subia. Como é fácil adivinhar, só terra. No seco, poeira; na chuva, barro e escorregões. Valetas se abriam com as enxurradas não só nas laterais, na frente das moradias, mas na própria rua. À noite, escuridão e tristeza.

Ônibus, de um lado só na Visconde de Mauá; do outro, na Rua Operários. Em um trecho da Domício da Gama passava o Jardim Europa. Não servia. Nunca soube se por lá havia algum jardim.     

Lá embaixo, a barroca. Um riozinho que vinha não sei de onde, malcheiroso por produtos químicos da laminadora e esgoto mesmo. Do lado direito tinha uma meia-água habitada por uma família que antigamente dizíamos “de cor”. Eu passava ali e ficava imaginando como era conviver com o odor, a falta de luz e o risco de enchente caso aquela água estranha transbordasse. Eu, ao menos, morava lá em cima, casa grande, de madeira, quintal grande onde se plantavam mandioca, milho, verduras e tinha um pé de limão e outro de mimosa.

Do outro lado, o Bar do Gaúcho. Ia lá comprar pão de água, quando acabava o feito em casa, e bananas embrulhadas em jornal cujas notícias de uma ou duas semanas atrás eu devorava avidamente. Depois, para a madrasta, também gaúcha e fiel às raízes, buscava maço de cigarro Farrapos, um dos mais baratos. Com os troquinhos com os quais ela generosamente me gratificava, maria-mole ou paçoquinha.

Cerca de 40 anos depois e há uns 10 ou 15, passei por lá. Meio envergonhado, fui “apresentar” à esposa a rua e a casa. Descemos de carro, lentamente, pirambeira abaixo. Nem tempo para reconhecer a vizinhança. Atenção total às eternas valetas. Haviam, é verdade, asfaltado um pedaço até mais ou menos onde ficava o bar, então, transformado em sobrado.

A casa lá no alto mudara para a frente, de alvenaria. Logo ali a Ricardo Wagner, asfalto em ligação alternativa entre Oficinas e o centro através da Silva Jardim. Buscas no Google me revelam que agora, 60 anos depois, parece que a civilização chegou por lá.

Então, tudo o que resta é uma velha cicatriz na alma. E não há mais razão de cantar Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar... Ou só cascalhar.

4 comentários:

  1. Que belo texto, Wilson! Cheio de lembranças que ficaram gravadas em sua memória. Um retrato do passado que aos poucos está sendo modificado.

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  2. ROSICLER ANTONIÁCOMI10 de junho de 2024 às 09:47

    Esta rua, que era minha, /já mandaram ladrilhar; não restou uma palminha/do cascalho, para amar.

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  3. Esta rua, que era minha, /já mandaram ladrilhar; /não restou uma palminha/ do cascalho, para amar. (arrumando os versos da trova).

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  4. Bela crônica, Wilson! Também tenho essa cicatriz na alma. Parabéns! Ludo.

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