Texto de autoria de Ludo Santos, jornalista e bancário aposentado, natural de Ponta Grossa, residente em Curitiba.
A
rua era curta. Rasgava o centro da cidade em apenas quatro quarteirões.
Oficialmente, fora batizada de Coronel Cláudio, mas ninguém a chamava por esse
nome a não ser em anúncios de rádio e TV, quando os locutores davam os
endereços do Tuma e do Chamma, então os dois maiores supermercados de Ponta
Grossa.
Para
a maioria da população era conhecida como a rua da Estação, pois sua
continuação terminava num beco próximo ao terminal da Rede Ferroviária, onde
havia alguns hotéis suspeitos e à noite um trottoir mais suspeito ainda.
Para
as mães do bairro pobre em que eu morava, era a rua dos Turcos, por conta das
lojas de roupas simples e baratas que ali eram vendidas. Saíamos do Olarias
sonhando com calça Lee e tênis All Star e voltávamos emburrados para casa com
Brim Coringa e Conga. Estávamos em fase de crescimento e como o dinheiro era
curto, tivemos de passar algumas primaveras por esse dissabor na hora de
renovar o guarda-roupa.
Alguns
filhos dos donos das lojas estudavam conosco no São Luís. Assim como nossas
mães, erradamente chamávamos todos de turcos, mas na verdade a maioria era de
descendência libanesa e havia um, vamos chamá-lo de Marquinhos, embora esse
fosse realmente seu nome, cujos pais eram judeus. A convivência era pacífica,
só quebrada quando explodiam escaramuças futebolísticas.
Numa
manhã chuvosa de outubro de 1973, fui mandado à rua dos Turcos comprar um par
de luvas para uma viagem. Lembro disso não porque tenha boa memória, mas porque
estávamos nos preparativos para visitar Aparecida no seu dia, pagamento de uma
promessa que minha mãe fizera.
Depois de afrontar o mau tempo daquela manhã,
cheguei à loja da família do Marquinhos e presenciei na entrada uma cena que me
consternou. O pai dele, cabelos brancos,
mais de 100 quilos, chorava copiosamente abraçado ao turco magro, alto, nariz
adunco, dono da loja ao lado. Eu nunca vira homem chorar, muito menos nos
braços de outro homem.
À tarde, na sala de aula, perguntei ao Marquinhos o que havia acontecido. Ele me explicou que os dois, além de vizinhos, eram bons amigos, mas estavam rompendo a amizade por causa da guerra no Oriente Médio. Não entendi nada. Sim, havia ouvido falar da tal guerra no telejornal da TV Esplanada. Nomes como Sadat, Yom Kippur, Golda Meir, Sinai, apareciam diariamente na tela da nossa Semp, mas não conseguia atinar como aquilo podia se refletir na rua dos Turcos.
Vendo ultimamente o noticiário da TV, com o rosto sulcado e envelhecido, caminhei 50 anos para trás numa rua que não existe mais e da qual não tenho saudade. As velhas lojas receberam fachadas e vitrines modernas, coloridas. Há uma iluminação vintage, sem fios. O asfalto foi substituído pelo belo petit pavê para uso exclusivo de pedestre. Chamam-na agora de rua do Calçadão. É a rua mais bela da cidade. Se fosse minha, mandaria colocar um banco de madeira maciça para vasculhar minhas memórias, tomar sorvete da Polar e entalhar um nome no qual ficaria retido um pouco do amor adolescente à homenageada.
Excelente texto, com atualização de memórias. Um modo brando, porém contundente, de contemplar a dureza da guerra.
ResponderExcluirObrigado, Rosicler, pelas palavras.
ExcluirParabéns pela excelente crônica.
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirNarrativa envolvente que desperta memórias e faz com que a gente se projete na história ( principalmente na passagem do conga kkkk). Muito boa mesmo! Silvia Schafranski!
ResponderExcluirObrigado, Silvia!
ExcluirEu frequentei muito a Rua da Estação, as lojas dos turcos. Era de mão dupla e bem movimentada. Seu texto conta a história de muitos ponta-grossenses da mesma classe econômica que a nossa, que passaram por ali comprando Conga à revelia. Amei o texto, Luso!
ResponderExcluirObrigado, Sueli! Como escreveu o William Faulkner "O passado não tem fim. Sequer passou." Acho que nem o Conga passou pra mim...rsrsrs
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