segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O fim do mundo é toda criança com fome


Texto de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 06/02/2020, publicado no Diário dos Campos em 18-03-20, lido na CBN Ponta Grossa em 11/08/2020.

Há gente em abundância. Saem dos ônibus, batendo-se umas nas outras, corpos bem vestidos, com conduta, limpos. Entram em confronto nessa cidade sem deuses. Meu corpo pequenino e mulato, continua encardido. Meu ranho, minha remela, minha raiva, ninguém os rouba. Passa um senhor engravatado e usando óculos. Peço dinheiro, ele passa reto. Óculos programado para não ver menino em situação de rua. Nos terminais de Ponta Grossa, repouso a cabeça no colo de minha mãe. Mamãe também é mulher, olham para ela como se fosse outra coisa. Menor em situação de rua não tem estatuto de criança, somos ameaças.
Gente que passa aqui, sempre tá de saída, de entrada. Nós aqui, no acostamento, somos intrusos. Colega de rua vende verso. Minha mãe vende bala. Um índio vende balaio, ele não é índio, é caingangue, me disse. Também falou que existem vários povos no Paraná e índio é um nome que não serve. Dia desses perguntei para o índio se eu podia entrar dentro do balaio, era imenso. Ele não queria deixar. Especulei que era escondedouro da retina dessa gente que passa.
Esses olhares vingativos nesses rostos caretas vigiam-interrogam: pupila-tribunal. Já pensei em roubar, não é por ser criança má, é critério de barriga, ela ronca de noite, não me deixa dormir. A fome se alimenta do sono, brota a insônia azeda, com ela o devaneio. Essa estranha anorexia dos sonâmbulos maltrapilhos. Sono é coisa de gente bem alimentada, gente que tem outro dia pela frente.
Tem dias que penso pelo estômago, reflexões digestivas, memórias gástricas. Arrasto os pés pelados, pedindo moeda. Queria brincar de esconde-esconde: mãe por favor me esconda desses olhares. Não curumim, responde ela. Num dia desses perguntei para mamãe: no céu existe fome? Há uma valeta na minha barriga, dia passa e ela fica mais esticada.
Outro dia um senhor falou que eu não era criança, perguntei: quem roubou minha infância? Ele atravessou a catraca, foi embora. Ninguém responde essa pergunta que escapa dessa boca banguela: quem roubou minha infância?

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