segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O menino que vi

Texto de autoria de Rosana Justus Braga, revisora, Curitiba (natural de Ponta Grossa).

Publicado na Folha Paranaense (Jaguariaíva) em 10/12/2019 e no Diário dos Campos em 14/02/2019, postado no Portal aRede em 05/08/2020.

 Na primeira vez que o vi, teria minguados três ou quatro anos, e vinha na esteira dos pais, catadores de papel. Com ele, alguns outros, todos nascidos do casal esquálido que puxava a procissão de devotos mirins. Regularmente surgiam no bairro, à cata do lixo limpo, como diziam.
         Ele, o menorzinho, entrava na loja e puxava a ladainha com sua voz de pássaro canoro. Levava, além de caixas e papéis, minha gratidão sem medida, pois me permitia reparar injustiças com pequenos mimos, algumas roupas aposentadas, brinquedos cansados e um convite para ir à lanchonete do outro lado da rua.
         Ficávamos ali, enquanto a família se espalhava catando o que pudesse carregar. Em questão de segundos, ele escalava a banqueta de pernas altas, apoiava-se no balcão com os cotovelos, pedia logo uma coxinha e fartava-se de ketchup e mostarda.
Eu registrava detalhes, os pés descalços balançando no ar, a expectativa ansiosa, a avidez da boca cheia, o inusitado bigode, o olhar de criança ainda intacto, milagrosamente.
Quantas vezes coloquei de lado minha rotina de trabalho pelo prazer de dividir com ele o balcão da lanchonete. 
         Foram muitas, incontáveis, até que notei a penugem em seus lábios e me dei conta do adolescente à minha frente. O pardalzinho crescera, já vinha sozinho no ofício de catar papel, empurrando ele próprio o carrinho muitas vezes recauchutado. Era o menino de sempre, ainda que mudado. Vinha buscar um pouco do muito que lhe faltava.
          Mas eis que um dia, ele me surpreende com uma visita inesperada: uma garota esmirrada ao seu lado e um bebê recém-nascido. “Minha esposa” – anunciou, com gravidade na voz. Mal pude acreditar.
Desviei o olhar pasmo para a menina encardida que me sorria, e logo para o embrulho de parcos panos que ela segurava como se fora a boneca que nunca tivera. Ele, orgulhoso, saboreava meu espanto.
         Desconcertei-me. Gaguejei palavras tolas, tímidos votos de saúde, prosperidade e vida longa, vejam só, ao desvalido casal; ao pardalzinho adormecido, que não se sabia semente plantada em solo adverso, fiz reza forte no meu silêncio.
Depois, fiquei a vê-los descer a rua, curvados sobre o menino, iluminados por uma alegria que eu não era capaz de entender.

2 comentários:

  1. Um belo texto, me senti na pele da autora.

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  2. Me emocionei muito, lindo texto, cheio de sentimentos que a gente se conecta fácil

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