domingo, 15 de dezembro de 2019

Afetos de uma casa

Texto de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.

Postada no Portal aRede em 18/12/2020, publicada no Diário dos Campos em 25/05/2022.

Na casinha de dois cômodos, daquelas de alguma cidadezinha do interior do Paraná, São João do Triunfo, para ser mais exato, com cozinha e quarto de madeira, buracos decorando a ausência de forro, o varal dependurado no teto... levantava-se cedo, batia-se a cabeça na roupa úmida e no forro baixo. O podre da madeira sinalizava um tom arcaico no assoalho, cupins e minhocas em uma mistura barroca; havia uma dimensão sagrada – de revolta – naquela pobreza. Panos floreados, com figuras geométricas, com animaizinhos, eram usados para esconder algumas tábuas estragadas e pouco pintadas. O resto da pintura baseava-se em fuligem de lesmas, teias de aranha e casas de cigarra, vez em quando, rastros de vaga-lumes.
O vento-ventania passava pelas frestas, fazia rilhar o telhado, algumas telhas quebravam; mais uma goteira. Rachaduras e goteiras eram hóspedes prematuros da casa, hóspedes ocupando estadia comprida. Os dois moradores da casinha possuíam diligência e feição no trato ao limpá-la, remendá-la, casa-tricô. Tornou-se costume habitar entre fissuras. O teto estava sempre a um passo de desmoronar, mas sempre ficava firme, fazendo uma barriga sobre a cama, decerto tábuas dilatadas, sonho dos dois era barriga dilatada de comida. Tudo estava a um passo do desmoronamento: casa-intempestiva.
Paredes estalavam-sacolejavam, uma dor antiga havia feito morada naqueles cômodos, por outro lado, o barraco desempenhava um espaço lenitivo; esparadrapo de madeira, farrapos assépticos de tecidos improvisados. Quando chovia, logo embrutecia a enchente, arrastando tudo, a correnteza açoitava as palafitas, a água marrom comia tudo, a garganta da água suja engolia tudo: paredes, tinta, telhado, janela, a força daquela gente.
“Araã” é sentimento de distância em tupi, pensou o senhor, ouvira a palavra dos lábios de um velho índio caingangue. Da casinha sobraram algumas tábuas, muita lama da água, não havia mais goteiras, mas o vazio intermitente.

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