segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Fundo do poço

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 23/01/2024, no Portal TánoTipo em 06/03/2024, e publicado no Jornal Página Um em 26/01/2024.

A vida já foi muito mais difícil do que é hoje, quando não havia água potável encanada tampouco saneamento básico para as populações de periferia na cidade. Desafortunadamente, algumas pessoas ainda convivem com a falta desses serviços imprescindíveis à saúde.

Nasci e me tornei adulta em Ponta Grossa, no bairro Órfãs, vivendo com água de poço artesiano de onde o líquido precioso era retirado balde por balde amarrado a uma corda. Uma manivela fazia a rotação de um rolo de madeira que baixava o balde até a água e depois de cheio, através da mesma manivela, subiam a corda e a caçamba.

Pelas mãos do destino um dia fui morar em Castro e a situação da água seria a mesma que vivi na infância, porém o poço ainda não existia. Iniciamos a perfuração que naquele terreno, por sua constituição, não facilitava alcançar o lençol freático. Um profissional encontrou o melhor lugar para a perfuração usando a técnica rudimentar do galho de pessegueiro. O poço foi sendo perfurado, mas só encontravam pedras. O supervisor da obra decidiu usar dinamite para retirá-las e facilitar o acesso à água. Os vizinhos foram alertados, todos se fecharam em suas casas e a detonação ocorreu. O estrondo enfureceu um enxame de vespas fazendo com que se alvoroçassem e atacassem. Onde estariam elas que nunca foram vistas antes?

A obra era executada por três operários: dois na superfície içando os baldes cheios de terra e pedras e os devolviam vazios para o colega que se encontrava no buraco. No dia da detonação todos estavam na superfície, distanciaram-se o suficiente por segurança e aguardavam. No momento do ataque das vespas, todos buscaram abrigo e um deles adentrou ao buraco julgando ser o melhor esconderijo. Contudo as vespas atacaram-no mesmo no subsolo. Gritando, defendia-se dos ferrões como podia. O vizinho ao lado criava galinhas. Assustado convocou os bombeiros para atender a situação criada pelo explosivo e constataram a perda de todas as galinhas. O poceiro foi atendido no PS, sem gravidade. Meu marido voltava do trabalho naquele momento e de longe avistou o carro dos bombeiros. Logo imaginou um incêndio em nossa casa. Um grande susto! O giroflex colaborou para que o evento se tornasse cinematográfico no bairro Santa Cruz. Literalmente chegamos ao fundo do poço. Desistimos de novas tentativas. Mudamos de endereço sem jamais saber se alguém tomou um gole de água daquele poço que marcou nossa história na cidade.

17 comentários:

  1. A vida sempre nos leva a cavar mais, mas algumas vezes é necessário buscar outros caminhos. Parabéns, Sueli, mais uma crônica maravilhosa!

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    1. Obrigada, Mário. Você é sempre generoso em seus comentários.

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  2. Gosto muito de ler suas crônicas .
    Parabéns! Abraços! Madalena

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    1. Adorei saber que você é minha leitora, Madalena! Obrigada, querida.

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  3. Kkkkk adorei, fiquei curiosa, imagino o fervo na rua, na época ...crônica maravilhosa, deu pra atiçar a imaginação...parabéns

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    1. Se meu texto atiçou sua imaginação o objetivo dele foi cumprido.Gratidão por seu comentário tão simpático, amiga.

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  4. Sueli ótima crônica! Esses dias a praça central de Tibagi foi "alvo" de abelhas, e minha prima Isabella Bogdanovicz foi uma das vítimas. Apareceu em uma reportagem da RPC. Gilmara Bittencourt de Souza

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    1. Quando a pessoa tem alergia por picadas de inseto é muito perigoso. Eu sou alérgica. Já imaginou se naquele dia algumas delas me atingissem? Obrigada pelo testemunho, Gilmara. Apareça sempre.

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  5. Muito interessante seu relato. E também muito bem escrito. Parabéns, Sueli, pela seleção.

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    1. Nossa! Fiquei toda prosa com seu comentário, amiga! É bom demais!

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  6. Engraçado, eu só não escrevi uma crônica esta semana envolvendo um poço, porque meu computador foi infectado e tive que levá-lo para um TI cuidar dele, e não gosto de escrever no celular. O tema surgiu numa conversa sobre as dificuldades das nossas mães, com muitos filhos, tendo que lavar roupas no tanque, tirando água do poço.

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  7. Teria sido muito engraçado nós duas sermos selecionadas com o mesmo tema. A sua crônica seria selecionada pela qualidade da sua escrita.

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  8. Minha nossa... um susto atrás do outro!!! Ótima crônica Sueli! Um prazer ser selecionada contigo nesta semana. Abraço!

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  9. Cadê você, Luiz Murilo? Senti sua ausência.

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    1. Tardo, mas não falho, cara Sueli. Em algum momento emerjo dos papéis e carimbos e venho ler seus textos.

      Um dos meus escritores favoritos, injustamente esquecido embora nós brasileiros tenhamos a obrigação de nos orgulhar dele, é o Cyro dos Anjos, mineiro da mesma geração de Drummond e autor de somente três romances ("O Amanuense Belmiro", "Abdias" e "Montanha") e um livro de memórias ("A Menina do Sobrado").

      Seu texto tem tudo de "A Menina do Sobrado". A exploração elegante das memórias, o fato privado sutilmente colocado como bandeira de um mundo em mudança... eu leria suas memórias. Abraço.

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    2. Notei tua ausência e evoquei-o pois não poderia prescindir do seu comentário sempre positivo. Contudo o de hoje foi além e te agradeço por isso. Vou ler "A menina do sobrado". Me inspirou a escrever um livro de memórias. São muitas. Abraços.

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