segunda-feira, 29 de maio de 2023

Na memória do Outro

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 30/05/2023, e publicado no Jornal Página Um em 02/04/2024.

Muito do que nos chega por acaso rende crônica, e esta ficaria bem melhor se redigida pelo seu protagonista. Como se verá, porém, ele teve suas razões para não concluí-la.

          Eu era estudante e, para preencher as disciplinas práticas da faculdade, volta e meia ficava à paisana no Fórum Estadual (aquele das escadarias, em Oficinas), geralmente próximo às Varas Cíveis, rezando para sair uma audiência de instrução e lendo o manual de direito administrativo do Hely Lopes Meirelles, para tudo na vida há voragens estranhas e vocações arqueológicas.

          Numa dessas, interpelou-me nosso personagem, patrono de uma das partes na audiência de logo mais, dizendo-me que, em aluno, lera uma das primeiras edições do livro – na década de 60, o que Meirelles dizia não era lei, coisa morosa de editar e muito democrática para o paladar da época; era Decreto-Lei, canetada.

          Disse-me que por algum tempo praticou a advocacia em Ponta Grossa – “na época, o que amparava os moços como você era Direito Fundiário” –, mas mudou-se logo para outro Estado.  Ultimamente, quase aposentado e num discreto movimento de retorno, dera pra captar algumas causas na região, almejando serenar a falta que lhe fazia a memória nítida do tempo em que cá se radicara, período findo quando (sentindo abertura, foi narrando), desmanchado um noivado contraído pouco antes, desmanchou-se junto a vontade de viver nos Campos Gerais e de viver, mesmo. Agora, sentindo a vitalidade entrar firme na fase crepuscular, meio adoentado que estava, dera para redigir as memórias (“ajuda a me acertar comigo mesmo”) e a voltar para a origem, produzindo prova viva e escrita de que o indivíduo em declínio pode, em plena queda livre, deparar-se com alguma verdade insuspeita que passara despercebida quando ele, tudo pela frente, trilhou o mesmo caminho em sentido inverso.

          Depois de anos, encontrei-o por acaso em outro local. Ao vê-lo remoçado e surpreendentemente disposto, perguntei-lhe em que pé estavam as memórias do noivado pretérito. “Estão assim”, ele me respondeu apontando não para algum encadernado que levasse debaixo do braço e sim para seu carro, onde uma senhora sorridente e bastante simpática o esperava.

          Não pedi explicações – hoje vejo que, sem elas, a crônica fica melhor.

2 comentários:

  1. Não contou nem o milagre nem esclareceu sobre os santos... Um jeito bem interessante de contar memórias do outro, sem declará-las..., e sem explicar por que não as declarou... Mas, desde quando uma boa crônica precisa desses apontamentos, não é mesmo? Pra lá de gostei!

    ResponderExcluir
  2. Como a vida é cheia de mistérios e incertezas, não é Rosicler? E de desvãos, descaminhos e lacunas que nunca serão tapadas, de frustrações que um dia podem se resolver ou não. Gosto muito de seus textos, abração.

    ResponderExcluir

Pedimos aos leitores do blog que desejem fazer comentários que se identifiquem, para que os autores conheçam sua origem.

Abrindo a página

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho , servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa. "Àqueles que pa...