segunda-feira, 11 de novembro de 2019

De que família você é?


Texto de autoria de Marivete Souta, Professora, Ponta Grossa.

Publicado no Portal aRede em 27/11/2019.

— De que família você é? — a pergunta vem de uma senhora bem vestida, pele alva, aparentando uns 70 anos, que parece ter sido pinçada de 1985, época em que cheguei por essas plagas. Sabores, imagens, cheiros, sons podem nos remeter ao passado. Palavras também.  Essas fizeram-me voltar no tempo.
Eu contava 16 anos. Estava tão longe dos amigos! Viemos aos Campos Gerais por necessidade. Era a última chance de papai, que perdera tudo com negócios malsucedidos numa pequena cidade do oeste do Paraná. Estranhei tudo aqui. Era uma cidade austera, eu diria que era carrancuda, nada simpática, principalmente para os recém-chegados.
Àquela pergunta vinham adicionadas muitas outras do tipo: “Você tem posses? Teu sobrenome é de alguma família tradicional? Você é um vira-lata ou tem pedigree?”.
Ser da família tal era ser rico de berço, ser naturalmente chique numa Ponta Grossa que não existe mais.  Naquele tempo, a maioria dos ricos era de famílias tradicionais, com sobrenomes pomposos, talvez até com títulos nobiliárquicos.
Até a tal família tradicional, que vira e mexe renasce das cinzas na célebre frase “temos que valorizar a família tradicional”, não existe mais.  Afinal o que é ser de família tradicional em tempos modernos? O formato da família mudou, temos muitas famílias que não seguem mais os padrões: pai, mãe e filhos.  Assim também os sobrenomes que traziam em seu bojo uma herança de “ser de berço”, hoje já não têm importância, pois o grosso do dinheiro está nas mãos dos novos, e pouquíssimos, ricos.
Hoje quase não ouço essa pergunta e, quando isso acontece, sempre vem de um retrato do passado.  Novas personagens entraram na nossa história, na minha e desta cidade. Transformamo-nos, tanto ela (a cidade) quanto eu. Ela cresceu em extensão e essência, assim como eu que também cresci, me conheci, me reinventei. Adotei como minha a Princesa dos Campos Gerais, que abriga uma natureza exuberante que traz visitantes de todos os lugares.  Aqui criei raízes.  Nesses Campos, transmutei-me em poesia.
Abruptamente, outras palavras me trazem de volta a 2019.
— Eu sou da família tal...
Em respeito às suas cãs, sorrio e sigo meu caminho. Há identidades tão arraigadas que nem mesmo o tempo, nem mesmo a morte da aristocracia faz mudar o modo de pensar.  Talvez, aquela senhora não entenda que o glamour genuíno está na simplicidade, nas atitudes generosas, na empatia, na luz própria capaz de iluminar outrem... Que o “chique” mesmo é ser feliz.

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