segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Leviatã, Mercados

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 01/02/2023, no Portal CulturAção em 21/03/2023, e publicado no Diário dos Campos em 30/05/2023.

A cada mês de janeiro, a Universidade Estadual de Ponta Grossa atualiza os valores da cesta básica local; a cada mês de janeiro esses valores fazem os despossuídos tremerem dentro das blusas gastas.

A cada mês de janeiro, José Marcos – que além de não ter frequentado a Universidade, no dezembro último não conseguiu emplacar nela o filho mais velho – fica sem compreender a desvairada alta do preço de viver, mas ultimamente tem sido pior, pois é tudo muito confuso no ambiente da espiral inflacionária.

Contam que, após percorrer todos os Núcleos e Jardins da cidade sem obter o encaixe do mês no orçamento, ele obteve audiência com a autoridade soberana para disciplinar casos como o seu: uma figura de 100 cabeças, que se expressa por manchetes, chamada Mercados.

Bloquinho na mão, Zé (para não gastar nome) balbuciava os itens necessários: produtos de limpeza (Mercados suspirou resignado), uns hortifrutis modestos (as cabeças de Mercados debateram e mandaram apertar o cinto), um pouquinho de proteína animal (Mercados crispou as 100 faces inconformadas), frutas para o filho doentinho – Mercados não liga para a Primeira Infância.

As Escrituras têm o Leviatã, Ponta Grossa, parte do mundo, Mercados.

Em sua aflição, Zé fazia o que podia, tirava artigos, negociava. Três quartos das cabeças de Mercados pareciam aéreas, pensando em helicópteros, enquanto as demais diziam coisas que o Zé não entendia, flutuação de juros, variação positiva. Algumas das cabeças de Mercados eram coléricas, negavam com veemência; outras eram dissimuladas, buscavam envolvê-lo no arame farpado da linguagem técnica.

Volta e meia as cabeças de Mercados deliberavam e lhe apresentavam alguma solução complicada, com resultados a perder de vista, longe dos Distritos e dependente de flexibilizações, cortes e outras abstrações que, sob o céu da espiral inflacionária, adquiriam os contornos de bigornas e calabouços.

Perdido na alameda que se instalou entre o que possuía em mãos e a dignidade distante, Zé teve o lampejo salvador. Palerma, pensou, como não percebera que o problema jamais fora os produtos que havia escrito no bloquinho de anotar? Nem os necessários, nem os supérfluos, nem mesmo a cachacinha. O problema mesmo era apenas e unicamente um: ele. José Marcos, agora novamente dono até do próprio nome, riscou-se orgulhosamente da lista, desintegrou-se e foi para o céu dos miseráveis.

Todas as cabeças exultaram e Mercados vestiu-se de luz. Mal sabia que não lhe cabe o mesmo ou outro céu.

5 comentários:

  1. Muito bom!! É preciso pensar mesmo, criticamente, na relação dos indivíduos e da sociedade com o tal "mercado"!

    ResponderExcluir
  2. Ótima e necessária reflexão;

    ResponderExcluir
  3. Adorei o texto.

    ResponderExcluir
  4. Fiquei imaginando as 100 cabeças de Mercado a se importarem com a listinha do Zé. Se, ao menos, se importassem em Português... Mas a linguagem do mercado se chama Dólar. Excelente crítica! Parabéns!

    ResponderExcluir
  5. Rosicler Antoniácomi Alves Gomes31 de janeiro de 2023 às 16:31

    O comentário acima é meu...

    ResponderExcluir

Pedimos aos leitores do blog que desejem fazer comentários que se identifiquem, para que os autores conheçam sua origem.

O tempo é o senhor da razão

Texto de autoria de  Sílvia Maria Derbli Schafranski , advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa. Dies po...