Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.
A cada mês de janeiro, a Universidade Estadual de Ponta Grossa atualiza
os valores da cesta básica local; a cada mês de janeiro esses valores fazem os
despossuídos tremerem dentro das blusas gastas.
A cada mês de janeiro, José Marcos – que além de não ter frequentado a
Universidade, no dezembro último não conseguiu emplacar nela o filho mais velho
– fica sem compreender a desvairada alta do preço de viver, mas ultimamente tem
sido pior, pois é tudo muito confuso no ambiente da espiral inflacionária.
Contam que, após percorrer todos os Núcleos e Jardins da cidade sem
obter o encaixe do mês no orçamento, ele obteve audiência com a autoridade
soberana para disciplinar casos como o seu: uma figura de 100 cabeças, que se
expressa por manchetes, chamada Mercados.
Bloquinho na mão, Zé (para não gastar nome) balbuciava os itens
necessários: produtos de limpeza (Mercados suspirou resignado), uns hortifrutis
modestos (as cabeças de Mercados debateram e mandaram apertar o cinto), um
pouquinho de proteína animal (Mercados crispou as 100 faces inconformadas),
frutas para o filho doentinho – Mercados não liga para a Primeira Infância.
As Escrituras têm o Leviatã, Ponta Grossa, parte do mundo, Mercados.
Em sua aflição, Zé fazia o que podia, tirava artigos, negociava. Três
quartos das cabeças de Mercados pareciam aéreas, pensando em helicópteros,
enquanto as demais diziam coisas que o Zé não entendia, flutuação de juros,
variação positiva. Algumas das cabeças de Mercados eram coléricas, negavam com
veemência; outras eram dissimuladas, buscavam envolvê-lo no arame farpado da
linguagem técnica.
Volta e meia as cabeças de Mercados deliberavam e lhe apresentavam
alguma solução complicada, com resultados a perder de vista, longe dos
Distritos e dependente de flexibilizações, cortes e outras abstrações que, sob
o céu da espiral inflacionária, adquiriam os contornos de bigornas e
calabouços.
Perdido na alameda que se instalou entre o que possuía em mãos e a
dignidade distante, Zé teve o lampejo salvador. Palerma, pensou, como não
percebera que o problema jamais fora os produtos que havia escrito no bloquinho
de anotar? Nem os necessários, nem os supérfluos, nem mesmo a cachacinha. O
problema mesmo era apenas e unicamente um: ele. José Marcos, agora novamente dono
até do próprio nome, riscou-se orgulhosamente da lista, desintegrou-se e foi
para o céu dos miseráveis.
Todas as cabeças exultaram e Mercados vestiu-se de luz. Mal sabia que
não lhe cabe o mesmo ou outro céu.
Muito bom!! É preciso pensar mesmo, criticamente, na relação dos indivíduos e da sociedade com o tal "mercado"!
ResponderExcluirÓtima e necessária reflexão;
ResponderExcluirAdorei o texto.
ResponderExcluirFiquei imaginando as 100 cabeças de Mercado a se importarem com a listinha do Zé. Se, ao menos, se importassem em Português... Mas a linguagem do mercado se chama Dólar. Excelente crítica! Parabéns!
ResponderExcluirO comentário acima é meu...
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