Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa
Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa.
Aconteceu segunda, 5, em Olarias. A corrente de êxtase, que percorre o
ar quando a Seleção Brasileira goleia em jogo de Copa do Mundo, já havia se
dissipado e eu estava na frente do meu prédio cavucando os bolsos para achar as
chaves quando uma voz me interpelou chamando-me de "moço".
Era um senhor de seus quarenta e
poucos, cinquenta anos de idade, que se aproximou identificando-se, com
delicadeza, como agente do Censo e solicitando-me que o colocasse em contato
com o síndico.
– "Mas estou largando, esse vai
ser o meu último prédio", ele disse logo.
A expressão que fiz foi de quem
anteviu aonde aquilo ia dar, mas ele deve ter lido nela uma dúvida que não
havia, pois esclareceu depressa:
– "Não dá mais para fazer o Censo
em Ponta Grossa. Maltratam, não querem atender, chamam de Iluminatti,
globalista, Nova Ordem Mundial, funcionário daquela emissora. Esses dias fui na
casa de uma senhora de cabelo branquinho e ela soltou os cachorros dela para
avançarem em mim. Uma senhora de cabelinho branco!"
Esse vocabulário, vocalizado por uma
pessoa real e não na internet, tem outra textura.
– "Que coisa...", eu disse,
olhando para o chão, à procura de algo consolador para dizer (e, a bem da
verdade, não encontrei até agora, caro recenseador, se este texto chegar a tuas
mãos – pelo menos não algo à altura da dignidade das tuas funções).
Para quem não sabe, o Censo iniciou no
século XIX, deve ser realizado a cada 10 anos e se reveste de elevada
importância na compreensão do perfil demográfico do povo brasileiro, orientando
a alocação de recursos e a formulação estratégica de políticas públicas. É o
microscópio pelo qual se enxergam os cromossomos da Nação.
Coloquei o agente público em contato
com o síndico, ouvi de novo a promessa de que aquele prédio seria o último e
lhe desejei que ali, morada de pessoas gentis – parece-me, eu que as conheço
superficialmente –, o tratassem bem. Ele fez o gesto desalentado de quem não
possuía a menor esperança de que isso acontecesse.
– "Veja bem", disse-me na
mesma noite um amigo a quem narrei o acontecido, "alguém que sofre na pele
essa loucura encontrou um desconhecido que sabe disso, e isso é uma forma de
resistência. Logo as pessoas vão se incomodar, se perguntar o que está acontecendo,
que viagem é essa, e o trator dos fatos vai arrebentar o arame farpado".
Quando este texto for publicado,
provavelmente, o Brasil terá se classificado, diante da Croácia, para as
semifinais da Copa. Bandeiras cobrem as janelas.
(A presente crônica foi enviada e avaliada em data anterior ao jogo do Brasil e Croácia, no dia 9/12, onde o time brasileiro foi desclassificado da Copa do Mundo 2022).
Comentário adicional do autor: abstraindo o fato em si da desclassificação, acontecimento sempre traumático para nosso povo apaixonado por futebol, integra a essência da crônica versar sobre os assuntos do dia, correndo o risco de dar uns tiros no escuro como esse meu no finalzinho. Levo como um despretensioso suvenir histórico (e não darei mais vitórias de barato kkkk).
ResponderExcluirMas fora o tema da desclassificação, o tema do censo é muito relevante. Parabéns
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