segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

As coisas

Texto de autoria de Rosana Justus Braga, revisora, Curitiba (natural de Ponta Grossa).

Publicada no Portal Clic Navegantes em 01/03/2020, postada no Portal aRede em 11/03/2020, lida na CBN Ponta Grossa em 18/08/2020, publicada no Correio Carambeiense em 26/12/2020.

Olho em volta e estou cercada de coisas. Imprescindíveis, eu diria.
Esta poltrona, sem dúvida, me é indispensável, os móveis e estes objetos todos também o são; os quadros... ah, como vestem bem as paredes do meu mundo; os livros a despencar das estantes são vozes que me falam; os adornos contam um pouco das histórias que foram. E este abajur, então, quantas sombras dissolveu no fluxo sem refluxo das horas.
Precisei de todas estas coisas para chegar até aqui. Foram-me essenciais, chego a pensar. Como seria viver sem elas?
É que reflito, neste instante, sobre desapego e impermanência, fruto de leituras feitas e refeitas que hoje despertam e vêm me cutucar o espírito. Conceitos incontestáveis, mas quão distantes das aspirações humanas.
Não, não desatamos vínculos com facilidade; olho para a mesinha de canto e é como se ela me contasse um pouco de tudo que observou, caladamente, de seu ponto de vista. E o pequeno vaso que ela sustenta tem também suas teias e me aprisiona; é de um verde pálido, ornado com filigranas de prata, sugere mistérios do Oriente e me remete a tudo que não sei.
Gosto da neutralidade das coisas, da cumplicidade que emanam, de seus olhos cegos. Estar entre elas é estar só e estar acompanhado. Não incomodam, não julgam, não aplaudem, não condenam. Testemunhas mudas que são, nada terão a revelar ao mundo além de seu próprio tempo.  
Faço meu inventário particular. Se pretendo desatar-me, urge saber de quê. Listo as prescindíveis, que são inúmeras, as banalidades que me cercam; ao lado, relaciono aquelas que não me podem faltar. Sobre elas é que devo praticar meus exercícios filosóficos.
Frágil criatura, parece que me falto se abro mão das coisas que gosto. Pura tolice, quero crer, a verdadeira alegria dispensa claros motivos, assim dizem os que sabem, os que venceram a luta contra os sortilégios da matéria.
Mister aprofundar as leituras se a pretensão é evoluir, porque só há, de fato, uma verdade: nós passaremos, mas as coisas... estas, ficarão.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Águas de junho


Texto de autoria de Fábio Antonio Gasparelo, Professor de Língua Portuguesa, São João do Triunfo.

Publicado no Portal aRede em 26/02/2020.

Parecia ser apenas a emoção da expectativa de uma semana que antecedia mais uma Copa do Mundo em nossas vidas. Mas a manhã de 8 de junho, mês do padroeiro de nossa cidade, reservava um dos capítulos mais tristes dos 124 anos de nossa história.
            Quando vi pela primeira vez a imagem dos estragos, veio a lembrança de um menino que aos cinco anos, no início dos anos 80, tinha assistido a um filme muito parecido. Ao lado de meu filho, coincidentemente com a mesma idade que eu tinha na época, revi fatos e imagens que imaginava nunca mais observar.
            É estranho como uma tragédia como esta desperta os mais diferentes sentimentos no ser humano. Primeiro, o da angústia, quando não se tinham passado duas horas da queda da cabeceira da ponte e várias pessoas já faziam filas no posto de combustível e outras corriam ao supermercado para garantir o estoque de água potável para o tempo do “isolamento” necessário.
            Depois, vem o sentimento da dor, ao vermos pessoas saindo de suas casas, sofrendo, desesperadas por não saberem o que lhes sobraria quando o pesadelo passasse e as águas baixassem.
            Por último, surge o sentimento que une os indivíduos depois da dor e do choque: a solidariedade. E foi aí que entendi o verdadeiro significado de uma frase do livro “A culpa é das estrelas”, do escritor John Green, em que ele fala pela boca de um de seus personagens que “o problema da dor é que ela precisa ser sentida”.  Quando sentimos a dor do outro, quando vemos que não há classe social, ideologia política ou status social que seja capaz de fazer-nos sentir a dor de forma diferente de nosso semelhante é que percebemos que só a ajuda mútua, o companheirismo e a solidariedade permitem que a existência neste mundo seja realmente válida.
            Fica a esperança de que não precisemos “sentir” a dor, de que não precisemos de tragédias repetidas para enfim enxergarmos que o mundo necessita cada vez mais de atitudes de respeito e de amor ao próximo, de gestos de solidariedade e de muita união!

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A gralha que queria ser menina


Texto de autoria de Alfredo Mourão de Andrade, ator e aposentado do Serviço Público Municipal de Ponta Grossa nas áreas de teatro e literatura.

Publicado nos portais aRede em 10/02/2020 e Clic Navegantes em 12/02/2020 e no Diário dos Campos em 04/03/2020, lida no programa CBN Esportes - Ponta Grossa em 14/04/20.


          Azulada acordou àquela manhã de outono cheia de ideias azuis. Manhã de nevoeiro nas terras do Paraná. Logo, logo, o sol mostrou sua carona brilhante, iluminando as araucárias e os Campos Gerais. Árvores gigantes de longilíneos braços abertos – querendo abraçar o sol - despertavam felizes da vida, pois as gorduchas pinhas marronzinhas, agarradas aos galhos mais altos, estavam prontas para explodir em deliciosos pinhões. Azulada grasnava... E sua cabecinha de gralha azul curiosa matutava: - “Pinhões!... Uauuuuu!... Gordinhos!... Gostosinhos!”
          Como sempre fazia, voou pelos campos ondulados a perder de vista, pelos capões de cambuís e suas frescas fontes d´água, onde a passarada se refrescava. De olho neles, a cobra d´água, que se escondia, onde também bebiam o lobo-guará, a onça pintada, o porco-do-mato, a jaguatirica...
          Um tufo de fumaça subia do Capão da Ponta Grossa, onde os últimos tropeiros tomavam perfumoso café mexido com tição de brasa, ovos mexidos, torresminho frito, virado de feijão com linguiça. – ‘Hum! Parecia delicioso!’
          Azulada parecia menina faceira naquela manhã de outono, saracoteando, bisbilhotando e cantando entre as árvores. Então se lembrou da doceira Nhá Maria, moradora do Vale do Tibagi, e seus tachos fervendo gostosuras de abóbora, marmelo, banana... – ‘Hum! É de lamber o bico!’
          A gralha de ideias azuis sonhava. Sonhava em ser uma chinoca. Vestido longo de babados – em tons de azul, é claro. Uma flor vermelha nos longos cabelos pretos. Só pra saborear aquelas gostosuras. Só pra dançar nas animadas festas de São João. E ouvir as histórias cabulosas contadas por Nhô Juca: o tesouro da Pedra Grande de Itaiacoca; Itacueretaba, a cidade que virou pedra; o fogo de Minarã que queimou quase tudo nos Campos Gerais; as casas assombradas; as visagens dos caminhos; os boitatás... Mas Tupã, o grande deus, reservou a ela outra missão: plantar a natureza do Paraná. 
          Entre idas e vindas, o sol se foi e a noite chegou. Hora de passarinho se proteger e não ficar perambulando por aí.  Mas Azulada era assim curiosa.
          E lá do alto do céu, onde brilhavam as Três Marias, Tupã divertia-se com aquela gralha tão especial, feito gente, cheia de histórias azuis.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O fim do mundo é toda criança com fome


Texto de Juliano Lima Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.

Postado no Portal aRede em 06/02/2020, publicado no Diário dos Campos em 18-03-20, lido na CBN Ponta Grossa em 11/08/2020.

Há gente em abundância. Saem dos ônibus, batendo-se umas nas outras, corpos bem vestidos, com conduta, limpos. Entram em confronto nessa cidade sem deuses. Meu corpo pequenino e mulato, continua encardido. Meu ranho, minha remela, minha raiva, ninguém os rouba. Passa um senhor engravatado e usando óculos. Peço dinheiro, ele passa reto. Óculos programado para não ver menino em situação de rua. Nos terminais de Ponta Grossa, repouso a cabeça no colo de minha mãe. Mamãe também é mulher, olham para ela como se fosse outra coisa. Menor em situação de rua não tem estatuto de criança, somos ameaças.
Gente que passa aqui, sempre tá de saída, de entrada. Nós aqui, no acostamento, somos intrusos. Colega de rua vende verso. Minha mãe vende bala. Um índio vende balaio, ele não é índio, é caingangue, me disse. Também falou que existem vários povos no Paraná e índio é um nome que não serve. Dia desses perguntei para o índio se eu podia entrar dentro do balaio, era imenso. Ele não queria deixar. Especulei que era escondedouro da retina dessa gente que passa.
Esses olhares vingativos nesses rostos caretas vigiam-interrogam: pupila-tribunal. Já pensei em roubar, não é por ser criança má, é critério de barriga, ela ronca de noite, não me deixa dormir. A fome se alimenta do sono, brota a insônia azeda, com ela o devaneio. Essa estranha anorexia dos sonâmbulos maltrapilhos. Sono é coisa de gente bem alimentada, gente que tem outro dia pela frente.
Tem dias que penso pelo estômago, reflexões digestivas, memórias gástricas. Arrasto os pés pelados, pedindo moeda. Queria brincar de esconde-esconde: mãe por favor me esconda desses olhares. Não curumim, responde ela. Num dia desses perguntei para mamãe: no céu existe fome? Há uma valeta na minha barriga, dia passa e ela fica mais esticada.
Outro dia um senhor falou que eu não era criança, perguntei: quem roubou minha infância? Ele atravessou a catraca, foi embora. Ninguém responde essa pergunta que escapa dessa boca banguela: quem roubou minha infância?

O tempo é o senhor da razão

Texto de autoria de  Sílvia Maria Derbli Schafranski , advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa. Dies po...